O Museu Iad Vashem em Jerusalém é um dos logradouros que compõem o austero e impressionante conjunto erguido em memória do Holocausto – a criminosa e premeditada matança dos judeus da Europa pelo regime nazista.
Além da exposição permanente, que por meio de fotos, objetos e documentos (dispostos segundo um roteiro histórico e cronológico) transmite ao visitante um conhecimento palpável da inexplicável tragédia, o museu também oferece exposições temporárias que focalizam aspectos específicos, testemunhos ou episódios inéditos.
Nestes dias, inaugurou-se no museu uma exposição de projetos de arquitetura: plantas, cortes, fachadas, detalhes – tudo num caráter essencialmente técnico e profissional. Mas os projetos estão longe de ser uma inocente apresentação de empreendimentos de normal construção civil, que fugiria aos propósitos da instituição promotora.
Trata-se das plantas de execução para as obras do campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, cedidas ao Iad Vashem pela Fundação alemã Axel Springer, em ocasião do 27 de Janeiro – data da libertação do campo e agora declarada “dia internacional da memória das vítimas do Holocausto”.
Os desenhos denotam a precisão e a seriedade que não poderia deixar de figurar no trabalho de responsáveis profissionais alemães: engenheiros, arquitetos, técnicos e desenhistas. As cotas e números baseiam-se declaradamente nos padrões do Neufert, que já antes da 2ª Guerra Mundial era o manual muito difuso que orientava o dimensionamento das edificações. O nível gráfico expressa o “respeito” com que o trabalho de projeto era encarado, como cabe à apresentação de serviço para um “ente oficial”.
A SS, polícia política nazista, recrutou para a obra o pessoal mais "recomendado", dentre os quadros que já havia se destinguido entre os formandos de conceituadas escolas e universidades alemãs (dentre elas, triste é salientá-lo, também a Bauhaus, cujos líderes foram, é verdade, expulsos pelo nazismo – mas cujos alunos nem sempre absorveram os ensinamentos da orientação democrática, aberta e liberal promulgada pela escola, que continuou a funcionar durante certo tempo durante o regime, até ser por este finalmente dissolvida).
À parte o interesse lugubremente documentário despertado pela mostra, cabe dedicar um pensamento ao aspecto ético e moral contido nesses documentos: ao mesmo tempo em que eles retratam uma atitude supostamente indiferente e exclusivamente técnica, eles espelham uma cínica posição de falsa ignorância dos autores quanto à verdadeira natureza dos objetos do trabalho: poderiam eles não saber – com todo o know-how infraestrutural envolvido – que o que se denomina no projeto "duchas especiais" destinava-se na verdade a câmaras de gás? Poderiam eles não compreender o destino que se daria aos barracões de "moradia" isentos de janelas, dispostos em blocos de esmagadora uniformidade? A planta de situação (em escala 1:2000) assinala com descarado cinismo "jardins" decorativos na cabeceira de cada bloco; mas define abertamente como “Appel Platz” (praça da chamada) o espaço aberto onde se levava a cabo a cotidiana contagem dos prisioneiros. E que dizer das instalações de vigia e de segregação; do ramal ferroviário que penetrava no recinto para descarregar a carga humana sobre cuja proveniência e destino ninguém poderia deixar de indagar?
A exposição é mais um testemunho da tremenda singularidade do genocídio dos judeus da Europa: pois não se tratou “somente” de chacina em massa, típica de operações bélicas ou situações de repressão sob o fundo de conflitos políticos. Tratou-se sim de um programa ideologicamente enunciado e planejado em seus aspectos logísticos, com uma macabra estrutura técnica e burocrática organizada para movimentar uma indústria da morte que funcionasse com a máxima eficiência.
Em um momento em que arquitetos de todo o mundo competem entre si para chegar a extremos de arbitrariedade conceitual e formal em suas obras cada vez mais afastadas de um objetivo significado social, e em que o simbólico e o expressivo se sobrepõem a qualquer consideração de utilidade e funcionalidade, é tristemente significativo que uma exposição secamente profissional de arquitetura e construção nos leve a refletir sobre os limites da legitimidade do argumento funcional no atuar do arquiteto, e transporte o “funcional” para um grau de simbolismo celebrativo que é mais eloquente do que qualquer gesto espacial e do que qualquer retórico vocabulário figurativo.
sobre o autor
Vittorio Corinaldi é arquiteto formado na FAU-USP e correspondente Vitruvius em Tel Aviv, Israel.
Vittorio Corinaldi, Tel Aviv, Israel