O cinquentenário de Brasília será celebrado com panetones trazidos por José Roberto Arruda nas meias. O ano festivo coincide com o escandaloso caso de corrupção do Governador cassado e sua passagem de dois meses pela prisão – um motivo de tristeza e outro de efusiva celebração: finalmente um sinal de que a justiça começa a funcionar minimamente também para os engravatados.
Despontam análises da grave realidade política, que Arruda representa e expia, a despeito da beleza arquitetônica e do projeto moderno da capital. Em artigo de janeiro deste ano, na Carta Capital, Mino Carta contrapõe a modernidade das linhas arquitetônicas de Brasília a uma “prática política digna dos grotões mais atrasados do país”. Na sua coluna desta semana na Folha de São Paulo, Fernando Barros e Silva traça, com menos espaço e mais refino, os contornos da sabotagem do projeto moderno da cidade pelo Brasil real – “a promessa do progresso com integração social”, de uma capital cosmopolita e democrática enterrados de vez pelo atraso da corrupção e o progresso da especulação imobiliária.
Mas o que não se diz com freqüência é o quanto a vocação anti-pública de Brasília estava desenhada, justamente, na prancheta de Lúcio Costa e Oscar Niemeyer. Pois vem daí a organização de uma cidade intensiva, extensiva e ostensivamente voltada para o capital e o poder: mais que outras metrópoles, Brasília reafirma todo o tempo as diferenças de classe, contrapondo-as por privilégios que se concedem a uma e não a outra.
Para as classes altas, oferece uma das melhores qualidades de vida do país, para as baixas, uma das piores. Os automóveis fluem rapidamente nas avenidas enormes, nas incontáveis asas de borboleta e na ausência de interrupções; já os “sem-carro” oscilam entre o pouco transporte público e a falta de caminhos factíveis a pé, criando passagens no mato, sob o sol esturricante, ou arriscando a vida para atravessar as grandes avenidas. Nas super-quadras os apartamentos são generosos, os pilotis ventilados, os espaços abertos arborizados, a localização estratégica para serviços e comércio a pé; já os que habitam as cidades-satélite tomam horas de transporte para ir ao trabalho, em bairros geralmente áridos e precários, onde se investe pouco em melhorias de infraestrutura, arborização etc.
Pode-se tentar salvar os planejadores argumentando que estavam previstas habitações populares no Plano Piloto. Mas não é preciso olhar tão atento para perceber o quanto esta proposta carecia de instrumentos concretos que não foram implantados, e que, pelo contrário, pouco se tenha feito para evitar o surgimento das cidades-satélite já antes da inauguração. À parte este deslize, basta se olhar para os espaços públicos da cidade para ver uma lógica urbana voltada aos privilégios da grana e do poder: a vida é uma beleza indo de carro para o trabalho, o clube, o cinema e o restaurante, e um desalento no ônibus, nas ruas, nas praças.
Tal ênfase privada de Brasília – expressa na desproporção abismal entre os números de veículos e de pedestres nas ruas – é a matriz geradora de um espaço público relegado, ermo, estranho, inóspito, pano de fundo cenográfico para as ‘linhas arquitetônicas ousadas’. Nascida no projeto da capital, a ênfase privada parece não ter saído da pauta dos governos locais. Vê-se novos museus e bibliotecas projetados por Oscar Niemeyer Filho, edifícios envidraçados gigantescos sendo construídos, mas nenhuma perspectiva de adequar os passeios para pedestres, construir travessias seguras e confortáveis nas grandes avenidas, e, menos ainda, de implantar um transporte público abrangente, rápido e de qualidade.
Em janeiro deste ano, o artista Rubens Mano abriu, no Museu Nacional, a exposição Futuro do Pretérito. Sua retórica não tem firulas: uma câmera parada capta paisagens urbanas em Brasília por 20 a 30 segundos. Em certos momentos as tomadas parecem fotografias, nada acontece. Às vezes passa um carro, um pedestre, uma ave, uma folha balança – tudo com um certo desolamento e lentidão, como se fossem ações fora do lugar e que demandam grande esforço. Estas fotografias videografadas trazem à tona o clima inóspito da cidade, sua escala pouco humana e sua vocação anti-pública. Pelas lentes do artista, o belo plano de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa não parece tão estranho ao coronelismo tardio da política local.
Sobre o autor
Roberto Andrés é professor na Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais, artista residente no JA.CA e editor da revista PISEAGRAMA.
Roberto Andrés, Belo Horizonte MG Brasil