De um boteco em um canto de praia na cidade de Paraty contempla-se um grupo de cirandeiros – senhores que tocam violão vorazmente ao ritmo de seus esvaziados copos de cachaça. Ao chegar na cidade do Rio de Janeiro, hospedando-se próximo ao centro ou à Copacabana, em qualquer canto, sentar-se em um bar é ver manifestações da cultura como parte da vida e, principalmente, como deleite. O prazer é parte fundamental e um dos motivos, na verdade, da aglomeração urbana.
É comum relacionar historicamente as cidades ao comércio. No entanto, a vida em comunidade é também ditada por formas de prazer. No capitalismo industrial, as cidades se consolidaram em formas particularmente pragmáticas, sem deixar de fora de sua racionalidade os costumes de um prazer comum, seja isso um processo racionalizado na construção e planejamento, seja formalizado na apropriação que os cidadãos fizeram daqueles espaços.
Um exemplo peculiar é o de Manhattan, como descrito e exaltado pelo arquiteto Rem Koolhaas no livro Nova York Delirante. A cidade que assumia a posição de centro do capitalismo já na primeira metade do século XX, mostrava com maestria como uma apreciação lúdica da vida era parte considerável daquele pragmatismo – mesmo sendo voltada para a forma espetáculo, em todos os sentidos que assumia.
Tal fato pode nos levar a uma afirmação de Theodor Adorno de que a indústria cultural é a previsão, nela mesma, de seu desprezo e de suas formas de negação. Ao desprezar a si mesma, contempla suas exceções e se retro alimenta, sem nunca precisar afirmar uma verdade. A Manhattan de Koolhaas parecia já ser assim.
Com isto em vista, pode-se notar diversas formas de vida na cidade, em diferentes lugares: fica desenhada uma relação do espaço urbano com seus usos que vai além das funções determinadas, ou seja, espaços de um uso imponderável, geralmente apropriados por formas de lazer.
Pode-se dizer que no Rio de Janeiro há uma cultura do espaço público devido à praia, mas Manhattan mostra bem como dentro de seu pragmatismo reticulado o lazer, a imponderabilidade, o uso público, estão contemplados – dentro dessa mesma lógica notada por Adorno – vide principalmente as formas de apropriação contemporâneas de estruturas antigas que marcavam uma racionalidade irracional no uso do espaço.
São Paulo parece ser um exemplo de exceção fora das expectativas de um capitalismo pretensamente democrático e “inovador”. São Paulo criou uma tipologia de vivência do espaço privado aparentemente baseado na américa californiana, no sonho da casa própria, na liberdade individual automobilística, e ao mesmo tempo, na concentração e proximidade de serviços e outras facilidades típicas de cidades densas, como as europeias.
Uma cidade construída basicamente por engenheiros, seu pragmatismo parece ser desmedido – como se estivesse contemplando uma única escala da vida, lidando na verdade com a população de um país.
Este pragmatismo provinciano não basta como forma de administração, mas é a marca cultural maior nas formas de apropriação do espaço – seja como geografia, seja como lazer, cultura ou trabalho dos cidadãos que a fazem.
Alguém que se afeiçoa muito aos instrumentos musicais, geralmente, não se reúne com os amigos na rua; utiliza ou a laje recém-batida, ou o studio-garage de seu prédio-bege.
Os espaços de comércio largamente substituídos por shopping centers são a prova consolidada de uma necessidade libidinal de estar, publicamente, em um território privado.
Como arremate inacreditável, podemos lembrar dos grandes espaços de lazer da cidade: clubes privados nos bairros de classe alta, ou um grande parque público rodeado de casarões ocupados por consultórios, agências bancarias, com péssima integração a linhas de transporte público e um estacionamento interno – uma viagem voltada para aqueles que chegam lá dirigindo e muitas vezes tem de optar pelos 20 reais aos flanelinhas lá de fora.
São Paulo parece configurar um ambiente depressivamente interessante para a imaginação dos arquitetos, por outro lado. Chega a lembrar as inusitadas imagens daquele manhattanismo dos anos 1920 – “comer ostras em uma sauna com luvas de boxe” – como situação desesperadora de maximização dos lucros acompanhada de maximização dos prazeres lúdicos de uma população em êxtase.
Aqui, no entanto, parecemos ser reféns de uma maximização dos lucros à qual não conseguimos nos vincular, e que construiu um espaço sem esperanças já consolidado. O território absolutamente sofrido e rigidamente hostil parece ser, ainda, nosso ponto de partida.
O filósofo Vladimir Safatle coloca, sobre os pontos de referência para pensar seu próprio tempo, em seu livro Cinismo e a falência da crítica: se Descartes tinha como paradigma de seu tempo a física pascalina, se para Hegel este paradigma estava em torno da Revolução Francesa, Adorno – para muitos apenas um pessimista – tinha em vista uma ruptura estética (em particular aquela representada pela segunda escola de Viena no campo musical).
Para nós em São Paulo, a estaca zero de uma cidade destruída parece ser o ponto de partida. Não uma cidade do pós-guerra, onde se tem clareza de alguns erros ou do que está destruído, mas uma cidade marcada pelo cinismo (como descrito também por Safatle, e pelo filósofo Slavoj Zizek) de quem não acredita naquilo que enuncia. Não uma cidade a ser reconstruída, mas um território em que o encontro de brechas e a inversão de lógicas se torna impositivo.
Recentemente, parecemos ter situações políticas favoráveis a pequenas mudanças, no entanto, como parte de sua lógica, São Paulo aplica aquilo que vem como urgência e como pressão do modo mais rápido, como quem quer satisfazer algo que lhe é externo.
No lugar onde poderíamos ter uma praia, um boteco e um parque bem inserido, temos nossa imaginação: a antiga linha do trem e seus galpões foram envolvidos por um longo balneário construído de piscinas públicas, uma trincheira de deleite cortando transversalmente a cidade. Um elevado foi apropriado totalmente pelos pedestres (como já é de praxe mundo a fora), continua suportando carros por dentro, trechos dele entram nos edifícios vizinhos que viram galerias e lojas. Os lotes estreitos são todos ocupados por espaços de uso misto, a cidade realmente se adensa, o rio é navegável e volta a correr por toda a cidade; agora ela se estrutura por seus canais, suporta o transporte e o uso intenso daquelas margens…
Nada que parecesse muito aos nova-iorquinos de cem anos atrás, São Paulo tem a poesia de nunca concretizar suas fantasias.
notaNE
O texto foi originalmente publicado no site Suppaduppa.
sobre o autorVictor Próspero é estudante da FAU-USP. Fez pesquisas de iniciação científica pela FAPESP e PRCEU, orientado por José Lira. Estagia no escritório spbr arquitetos.