Para o entendimento e a concepção de atividades que visam a projetação de objetos e espaços tridimensionais é fundamental possuir o domínio adequado das formas volumétricas. Por intermédio da organização não normatizada de espaços, procura-se confirmar que a composição bidimensional é uma prática que contribui para o desenvolvimento gradual da experiência compositiva tridimensional (1).
Dessa maneira, trataremos aqui apenas das reflexões sobre os desenhos gráficos em sua etapa inicial, ou seja, circunscritos aos processos perceptivos, ao reconhecimento das qualidades das formas e aos procedimentos que as geram. O seu uso é fundamental para a transmissão dos fundamentos da composição do artefato arquitetônico, não apenas no auxílio à visualização de elementos abstratos, mas também na aplicação e construção de representações tridimensionais, como as maquetes. Entretanto, tal metodologia pode levar facilmente a interpretações imprecisas já que a natureza do sinal bidimensional é relativamente distinta da natureza do sinal tridimensional: essa distinção possibilita várias interpretações diferentes quando são relacionadas, não apenas quando da sua percepção mas também no momento de sua representação.
A imagem gráfica plana representa um “congelamento” estático de uma realidade tridimensional. Na verdade, esse “Campo visual”, característico das manifestações no plano, configura-se como uma seleção realizada por um sujeito desse vasto espaço que o circunda, o “Mundo visual”, percebido de maneira dinâmica, em movimento, sem delimitação de campo (2). Como é uma seleção, então se trata de uma leitura particularizada que elege e fixa a imagem de um objeto ou de um espaço a partir de um determinado ângulo: essa representação, seletiva e congelada, revela apenas uma face do objeto, ressalta algumas de suas qualidades, mas não tem a capacidade de esgotá-lo na sua totalidade. De acordo com Wong, “na maioria dos casos, uma forma tridimensional que parece boa em determinada vista bidimensional pode ser muito comum ou mesmo desapontadora na vida real” (3).
O projeto arquitetônico grafado não significa só uma representação, ele é a expressão do pensamento de um espaço configurado na mente e, para o desenvolvimento de um raciocínio arquitetônico, é necessária a realização de uma série de desenhos que exponham o objeto em sua totalidade; como exemplo, representações como planta, corte e elevação, cada uma delas restrita aos seus limites singulares de informações, não esgotam os processos perceptivos da realidade tridimensional.
De acordo com Henri Focillon, não é possível compreender plenamente a forma no espaço resumido e restrito dos traçados:
“A leitura do plano, seguida do estudo de construção, apenas dão uma ideia muito imperfeita dessas relações.(...) Sem dúvida a leitura de um plano diz muito, pois dá a conhecer o essencial do programa e permite a uma vista treinada abarcar as principais soluções de construção. (...) Mas essa espécie de redução ou, se preferirmos, essa abreviação dos procedimentos do trabalho não constrange a arquitetura no seu todo, privando-a do seu privilégio fundamental que é possuir um espaço completo, e não apenas como objeto compacto, mas como um molde vazio que impõe às três dimensões um valor novo. As noções de plano, de estrutura, de massa, estão indissociavelmente ligadas e é arriscado abstraí-las umas das outras” (4).
Nesse sentido, o entendimento de ambas naturezas, o “campo visual” e o “mundo visual”, requer uma abstração ao se transpor de uma a outra, como o músico o faz ao “ouvir” o que está “visualizado” em um pentagrama. Em nosso caso, as várias representações através de ângulos de visões que congelam essa tridimensionalidade fornecem princípios e paradigmas para a composição espacial: são elas que permitem de maneira competente conceber e determinar a configuração final do objeto real percebido ou a ser projetado.
Nas artes visuais, compor significa organizar diversas coisas numa única totalidade para que sejam percebidas harmonicamente; uma organização formal que aponta para uma determinada direção, que enaltece qualidades e que permite ou impede funções, tanto para a ação corpórea quanto para a satisfação do espírito.
Em arquitetura, compor pode ser entendido como a reunião de seus diversos elementos formais sólidos e dos espaços resultantes visando uma determinada significação. Além da configuração de suas formas, no contexto desse nosso trabalho a composição se efetiva na construção harmônica de estruturas espaciais, no equilíbrio das relações entre luz e sombra, nas suas relações volumétricas, nos seus ritmos e direções, nos cheios e vazios configurados, no uso criativo das características dos materiais, das cores e das texturas, entre outros fatores.
Enquanto representação no plano dessa espacialidade, pode ser considerado aqui a organização de elementos em um campo com a intenção de formar ou construir a partir de diferentes partes ou de várias coisas. Organizar um campo visual bidimensional significa, antes de tudo, ter consciência dele, reconhecer suas formas, suas proporções e seus limites.
A proposta inicial do exercício é a obtenção de uma organização linear efetuada por meio do traçado de linhas retas e curvas em um campo visual retangular.
As linhas traçadas são encaradas não como “objetos reais”, mas como dados que geram tensões no campo imprimindo a ele uma organização singular.
A aparência é a de uma espécie de malha linear, uma estrutura que indica configurações e direções, com o objetivo de criar uma totalidade espacial com determinado equilíbrio e harmonia, Apesar de serem de certa maneira abstratas, essas linhas estruturais criam uma ordem de leitura, indicam tensões, direções, relações de tamanhos e adensamentos e rarefações.
A partir dessa estrutura, são testadas variações por meio da hierarquização de cores, suas relações de luminâncias e contrastes, entre outras qualidades. O resultado são organizações compositivas distintas a partir de uma mesma estrutura formal linear.
Nas imagens acima (colagens realizadas por alunos do 1º semestre da FAU Mackenzie) se verifica que as cores e suas luminâncias constituem fatores que modificam o espaço: são qualidades que indicam possibilidades da produção de distintas hierarquias, variações de composição e novas coerências com a estrutura linear estabelecida anteriormente. Por meio de várias relações entre fundo e figura, transparências e opacidades, planos em profundidade, os alunos experimentam diversos efeitos perceptivos, principalmente o de ilusão de tridimensionalidade.
Sua importância está no fato de que, durante sua realização, os alunos testam uma série de alternativas antes de chegar a uma definição conclusiva: vivenciam que a estrutura formal linear e o conteúdo expressivo ocasionado por novas relações são afetados mutuamente a cada modificação. Dessa maneira, percebem ainda que as linhas não são os únicos elementos que organizam um campo visual.
A organização do campo visual desempenha um papel fundamental na representação do objeto tridimensional percebido, pela influência que exerce na determinação de seu significado e pela qualificação que imprime ao suporte utilizado. Como um fotógrafo que registra um mesmo objeto sob vários pontos de vista, ressaltamos aqui que esses “congelamentos” visuais realizados em vários planos, contribuem de maneira significativa para uma possível semelhança entre o bi e o tri.
A composição bidimensional é um dos paradigmas da arquitetura que precisa ser avaliado, pois o reconhecimento de um campo visual, sua estrutura oculta de ordenação e seus limites indicarão uma melhor disposição dos elementos no espaço, uma maior consciência do domínio de sua singular linguagem, abrindo um campo mais amplo de ação e criatividade.
Os exercícios aqui apresentados, possibilitam desdobramentos em três dimensões testando a sua aplicabilidade no processo de pensamento e concepção de um objeto sólido ou de um espaço, instante em que são acionados conceitos, técnicas, percepções, idealizações e poéticas. Composições e Desenhos possuem competências: são tão mais competentes quanto mais se aproximarem da coisa a ser concebida e a ser representada.
notas
1
Ver ALONSO, Carlos Egídio. Percepção tridimensional, representação bidimensional. Tese de doutorado. São Paulo, FAU USP, 1994.
2
Cf. ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual. São Paulo, Pioneira/Edusp, 1986.
3
WONG, Wucius. Princípios de forma e desenho. São Paulo, Martins Fontes,1998, p. 37.
4
FOCILLON, Henri. A vida das formas. Lisboa, Edições 70, 2001, p.36-37.
sobre os autores
Maria Cristina de Barros Rossi é mestre e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, e professora pesquisadora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie – FAU-UPM.
Carlos Egídio Alonso é Prof. Dr. do curso de Arquitetura e Urbanismo e do Programa de Pós- Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade São Paulo FAU-USP e do Programa de Pós e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie– FAU-UPM.