Durante os últimos 15 anos mudei seis vezes de pais, morei em três continentes e passei por varias culturas diferentes durante viagens de lazer, trabalho e pesquisa. E tenho a sensação de que existe sempre uma diferença na maneira com que as pessoas se olham ou deixam de se olhar, se observam ou se evitam e, consequentemente, na maneira com que se retratam.
O princípio desta mostra se baseia na série de retratos do ilustrador, pintor e artista paulistano Marcelo Cipis. Ao longo dos últimos anos, em que ele também tem feito ilustrações para revistas e textos de outros escritores, Cipis desenvolveu um corpo de obras que forma a base para esta mostra na galeria da Funarte em São Paulo sob o título Marcelo Cipis: rostos a procura de um rosto.
Quando o artista participou na 21a Bienal de São Paulo (1991) com uma grande instalação, ele partiu dos desenhos do ‘império’ Cipis Transworld, apresentando a logomarca da empresa ao lado de seus produtos imaginários como pneus, sabão, cera para pisos, charutos e até cadeiras cromadas. Cipis Transworld seguiu uma lógica empresarial publicitária, de vendas e catálogos. Amplamente inspirado nos catálogos da loja de conveniência Sears e balizado pelo amparo técnico de seu pai que possuía uma gráfica, Cipis desenvolveu uma sucessão de trabalhos que se apropriam dessa temática como o Perfil Publicitário (1990); os Objetos para Franchising (1991) ou na série frenética de Exército de rostos a procura de um rosto (2013) que deu titulo para esta mostra. Os rostos presentes nesta mostra, são personagens que o artista encontra na vida real, que passam em frente dele, ou que representam apenas uma memória, numa combinação entre imaginação e sonho como o Pequeno pesadelo infantil (1988), ou neologismos de artistas como as telas Pablo Picasso / Diego Rivera (1987), ou Reinhardt Newman pintou (1987). Todos esses trabalhos demonstram uma sensibilidade extraordinária em relação ao ‘outro’ e na maneira de retratrá-lo.
O artista usa vários suportes para dar forma aos rostos, atuando entre a produção íntima no estúdio e a apresentação publica, adota como veículo cadernos, exposições ou transmissões televisivas. Reunindo trabalhos do final dos anos 1980 até hoje, a mostra inclui obras em tinta óleo ou acrílica sobre tela, impressão digital sobre metacrilato, fibra de vidro pintada e até bordado sobre tecido. No seu estilo e na seleção de cores, algumas pinturas evocam o período da arte pop, outras, mais recentes foram desenvolvido em preto e branco. Estas, da serie Os raio X (2013) e da serie Exército de rostos a procura de um rosto (2013), parecem mais como mascaras do que ilustrações de caracteres ou personagens. Máscaras como expressões e caretas que vestimos em nossos encontros do dia a dia - as vezes sem querer; máscaras de carnaval ou até de protesto, pois algumas obras lembram a mascara Guy Fawkes, usado no Occupy e outros protestos recentes no mundo árabe. Une estas obras, de variadas décadas, o traço fino que da corpo aos personagens, e sempre um humor delicado. Além das esculturas e das obras em tela e papel estão presentes animações em televisões pequenas. As vinhetas animadas Locução, Dial, Vinil e Vampiro orthogonal foram produzidas para o programa Planeta Cidade da TV Cultura em 2005. Atingindo o universo de produção audiovisual, nestas obras o artista transforma a cara de um apresentador ruivo em um rádio FM em cores pastel e pop ou coloca discos de vinil na ponta da língua da ‘apresentadora vitriola’. Enquanto estas animações sintéticas se repetem em loop, as obras com rostos bordados evocam a sensação da criação mais doméstica. Emitindo comoções como conforto e bem-estar, essas obras são expostas em sofás trazido do estúdio do próprio artista.
O desenvolvimento dos aparatos para esta mostra de Cipis, tem se beneficiado de uma colaboração da arquiteta, poeta e escritora paulistana Joana Barossi. A partir do modo com que as obras são montadas nas janelas do estúdio do artista, onde funcionam como membrana entre o espaço público e o privado, Barossi desenvolveu uma estrutura divisora que permite ao visitante a experiência da série de obras Os raio X (2013) de ambos os lados. Assim, as obras da série ganham forma tridimensional e constam como uma presença corporal constante dentro do espaço.
Em vez de ilustrar textos, as obras visuais de Cipis, nesta ocasião, terão textos que foram comissionados para trabalhar em analogia a elas. Barossi acompanha as peças selecionadas para esta mostra com textos poéticos, textos que surgiram durante as muitas conversas com o artista. Assim se desenvolve uma leitura literária em paridade com as obras e os personagens de Cipis. As peças literárias são apresentadas no espaço expositivo e formam parte integral desta publicação.
Há portanto ocasiões duplas em que os rostos encontram e ‘conversam’ com outro rosto: Por um lado estão os textos de Barossi que acionam os rostos com uma leitura que complementa e diverge os títulos das obras. Por outro, se agencia o diálogo imaginário no momento em que o visitante se enfrenta com os retratos de Cipis e os encara face a face.
nota
NE
Texto curatorial da exposição “Marcelo Cipis: rostos a procura de um rosto”, Complexo Cultural Funarte SP, Galeria Flávio de Carvalho, São Paulo, de 17 de novembro a 19 de dezembro de 2013.
sobre o autor
Tobi Maier é curador e crítico de arte. Vive e trabalha em São Paulo.