A Bienal de Arquitetura de São Paulo bem que poderia ser chamada de Bienal da Cidade. Mais do que apresentar intervenções exemplares, obras edificadas, pequenas e múltiplas soluções para ínfimos problemas, formando aquela tradicional procissão enfadonha de arquiteturas banais e desinteressantes justapostos à salas especiais de homenageados, a curadoria optou por apresentar uma pauta de temas sobre a cidade. Afinal, se algum consenso há nos dias atuais é a recolocação do tema da cidade no centro dos debates.
Ideias, situações, discussões, ações são disparadas, para demonstrar que a cidade é muito mais do que pensamos, mais do que podemos conceber, que ela está muito além do que a arquitetura pode imaginar. Mais rica, problemática e paradoxal.
A opção de espalhar núcleos da Bienal pela cidade, ao invés de contê-la num único espaço me parece decorrente dessa dupla constatação: o reconhecimento dos limites atuais de profissão e a consciência da complexidade crescente da cidade.
Mas também decorre de uma atitude teórica, ou mais precisamente, de certa visão da contemporaneidade: a da condição do nomadismo como inerente à experiência metropolitana. Nessa deriva programada temos a chance de atravessar territórios, paisagens, fluxos; temos a oportunidade de nos deixar olhar a cidade, mas também ser olhados por ela. Entre um trânsito e outro, atravessamos as estruturas “expositivas” espalhadas ao longo desse percurso circular.
Essa estratégia tem algo da dialética site/non site de Robert Smithson, no qual estando num lugar se remete ao outro e vice-versa, mas também há algo do conceito site specific já que em cada espaço institucional escolhido, o que se “expõe” tem algo a ver com o lugar expositivo.
O centro nervoso, a meu ver, é o Centro Cultural São Paulo, onde os caminhos se cruzam. Vou me concentrar fundamentalmente nesse local. Lá a mostra “Modos de Agir”, se espalha num espaço que se encontra em situação intermediária: entre o mecânico e o orgânico, entre arquitetura e paisagem, entre edifício e equipamento urbano. Ali, entre passarelas e plataformas, cidades mais diversas são discutidas. Das insólitas e inesperadas experiências orientais (a escala gigantesca, a velocidade das transformações, os lugares novos abandonados, a reversão da modernização em favor da volta ao “natural”) à crise dramática e assustadora de Detroit (o fracasso do modelo de modernização e da cidade industrial moderna), a questão de que tipo de cidade estamos construindo se impõe. E para demonstrar que as coisas estão longe de se reduzirem à fáceis posições dicotômicas, o caso de Los Angeles, outro exemplo de cidade-automóvel igualmente impõe a contra-pergunta do caso Detroit: nesta luta entre pessoas e carros, realmente em cidades como as nossas, podemos abrir mão de viver sem o automóvel? A título do pensar, a pergunta é tão ou mais necessária que simplesmente decretar a máquina como o vilão de nossas violentas realidades urbanas.
Nesse módulo – Carrópolis (carville) – não pude deixar de ficar agarrado pela penetrante observação de Jean Baudrillard, num dos painéis expostos:
“Algo da liberdade da circulação nos desertos se encontra aqui; Los Angeles, por sua estrutura extensa, nada mais e do que um fragmento habitado. Portanto, as freeways não desfiguram a cidade nem a paisagem; atravessam-na e desatam-na sem alterar o caráter desértico dessa cidade e expandem idealmente ao único prazer profundo, que é circular”.
A X Bienal, como vimos, foi tomar exemplos longínquos para colocar problemas que nos são comuns. Mas também trouxe realidades locais, que o Brasil, ou mais explicitamente, o eixo dominante sul-sudeste desconhece. É desconcertante o que vemos em “Brasil: o espetáculo do crescimento”. Ali, pelo visto, uma violenta urbanização/industrialização está em curso, da qual pouco sabemos. Belo Monte, Carajás, São Francisco, Agro-Negócio, Pré-Sal, todos estes fenômenos estão mobilizando e transformando as regiões Norte/Nordeste/Centro-oeste. Redes de energia, transporte, portos e aeroportos, cidades, tudo surgindo a uma velocidade inédita, formando um caldeirão imponderável de economias, urbanidades, sociabilidades e culturas. Coisas que acontecem no Brasil que o Sudeste desconhece mas que não escapam de um investigador atento e arguto como Eduardo Viveiros de Castro, em outra citação exposta na exposição:
“A Amazônia hoje é o epicentro do planeta. Do Brasil, é o epicentro, o alfa e o ômega. O Brasil se desloca para a Amazônia (...) Tudo acontece lá, o tráfico de drogas passa por lá, os interesses econômicos estão lá, os grandes capitais estão fluindo para lá, as questões da ecologia, o olhar do mundo, a paranoia e a ilusão do paraíso, tudo esta lá, ou voltando para lá. Para o bem ou para o mal, a Amazônia virou o lugar dos lugares, natural como cultural; aliás, é lá que se esta sendo cozinhado um gigantesco guisado cultural, e que daqui nós não temos a menor ideia do que esta se passando”.
Porém, esse Brasil distante faz eco mais ao Sul. Tal qual um sismógrafo, uma linha do tempo (Rio Now), novos mecanismos para flagrar as transformações em curso (Novas Cartografias) e uma imaginação dos novos tempos em tempo de regressão (Rio Futuro – Sergio Bernardes) nos alertam para a antiga Capital Federal que está passando por um processo de transformação profundo, cuja direção parece muito desconectada de qualquer conceito ou visão do que seja efetivamente a dimensão pública ou de um processo de discussão crítica. E ainda que São Paulo não esteja diretamente representada na mostra (exceto pela esclarecedora história do “minhocão”), está implicitamente (ou talvez explicitamente) envolvida uma vez que a proposta do novo Plano Diretor coincide com a Bienal.
E não nos esqueçamos de que o fenômeno das multidões nas ruas aponta, em escala nacional, para o debate sobre “o direito à cidade”.
Antes de passar para os próximos núcleos, não posso deixar de apontar a bela e tocante homenagem ao “Robin Hood Gardens” projeto extraordinário e visionário dos Smithsons, em emocionante depoimento do casal sobre a história do projeto e com imagens históricas e esclarecedoras de uma obra de habitação exemplar. Uma experiência a ser, sem dúvida, recuperada e valorizada.
No MASP, os expoentes do “brutalismo” – Artigas, Paulo Mendes da Rocha e Lina Bo Bardi – se alinham a artistas como Hélio Oiticica e Cildo Meireles, numa aproximação incomum entre arquitetura e artes plásticas, o que abre perspectivas inesperadas de diálogos plásticos, exorcizando o sempre presente provincianismo que provoca o desdém mútuo entre as duas esferas. Há, sim, muito em comum entre arte e arquitetura do período, pois o brutalismo apesar de sua densidade e consistência nunca deixou de incentivar o livre percorrer dos espaços e a arte de Oiticica e Meireles sempre esteve atenta e participante do urbano, mesmo nos interiores do Museu.
Desdobrando a lógica curatorial de correlacionar espaços institucionais e mostras expositivas, temos no Sesc Pompéia o lugar para as propostas colaborativas e coletivas, do mesmo modo que no Museu da Casa Brasileira experiências iconoclastas do habitar desde a década de 1970 são apresentadas (Casa Bola de Eduardo Longo, Casa Moriyama de Ryue Nishizawa e o programa Minha Casa, Minha Vida), não sem um viés crítico lançado contra o modo paternalista e medíocre das propostas edilícias e políticas habitacionais em curso no país.
Assim, nos diversos e dispersos núcleos temáticos (os “modos de ...”) espalhados por São Paulo, abrem-se discussões, problemas são explicitados e aí sim algumas intervenções de arquitetura e urbanismo, pontuais mas estratégicas, são apresentadas. Não à título de soluções ideais para os problemas levantados, mas pela convicção de que projeto é, de fato e de direito, uma forma de discutir não só os problemas metropolitanos, mas também de se refletir as condições de possibilidade e as especificidades da própria disciplina da arquitetura.
Estas e tantas outras atividades compõem a programação da X Bienal. Podemos concluir dizendo que esta se concebeu como uma série de eventos (exposições, debates, música, cinema, ocupações, intervenções artísticas, caminhadas), como acontecimentos na vida pulsante da Metrópole, de modo algum à parte, antes participante. O seu modo de ser, portanto, não se reduziu ao exclusivamente visual, típico das exposições de arquitetura, antes mergulhou numa multiplicidade de sentidos e sensorialidades, em clave verdadeiramente sinestésica, no qual a percepção intelectual e deslocamento corporal não se separam. E tal ordem de sinestesia seria o próprio da experiência metropolitana da transitividade, do jogo descontínuo entre o fixo e o fugidio, entre o eterno e o transitório, entre a dissolução da experiência na dispersividade contemporânea e a tentativa dramática de reconstituí-la, ainda que apenas por um breve instante. O tema baudelairiano das correspondências surge de modo a articular distâncias e a nos lembrar de que percepção é atenção, mas uma atenção que não impõe interpretação definitiva ou se contenta com a mera imagem superficial. É propriamente um continuo retornar, um perpétuo rodear por diversos meios e vias, sem pretender esgotá-la.
Para ver, percorrer, pensar...
nota
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O artigo foi originalmente publicado no blog Cumulus Nimbus.
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Saiba a programação completa da X Bienal de Arquitetura de São Paulo.
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Tradução de Ivan Junqueira. In: Ivo Barroso (org.), Charles Baudelaire - Poesia e prosa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1995.
sobre o autor
João Masao Kamita é professor da PUC-Rio e coordenador do Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, no curso de graduação em História e no curso de Arquitetura.