As cidades estão hoje no centro da discussão internacional. O mundo se urbanizou de forma rápida e avassaladora, as cidades incharam, tornaram-se infinitamente mais complexas, e a ciência responsável por refletir sobre esses processos e regrar os caminhos de seu crescimento – o urbanismo – entrou em colapso.
Desacreditado o modelo ocidental para o desenvolvimento urbano após a crise financeira de 2008, cidades que cresceram em meio a crises sistêmicas fora do centro, como São Paulo, Rio de Janeiro, Lagos e Shenzhen, assumiram relevância em função dos problemas e das complexidades para os quais apontam. Se nos anos 1990 vivíamos uma espécie de fatalismo, segundo o qual as cidades pareciam não ter alternativa a não ser entregar-se inteiramente ao capital financeiro e globalizado, hoje as experiências bem-sucedidas (ainda que contraditórias) de cidades como Medellín, somadas à força contestatória dos diversos “occupy”, demonstram que os centros urbanos não podem ser apenas “máquinas de produzir riqueza”, segundo a definição de Harvey Molotch e John Logan.
Mas o próprio lugar do Brasil como país emergente também já está posto seriamente em dúvida e o otimismo acrítico frente ao futuro de nossas cidades diante dos megaeventos que se aproximam foi definitivamente rompido pela “voz das ruas”. Vivemos, certamente, um momento de quebra de paradigmas. E é sobretudo nos momentos de crise que temos a chance de mudar as coisas.
Hoje fica mais evidente que o espaço público não é o lugar apaziguado do encontro, e sim do conflito, do atrito. É na esfera pública que as diferenças, inerentes à vida nas cidades, são negociadas. Ocupar, tensionar, protestar, resistir são ações vitais nos centros urbanos do mundo hoje – como Nova York, Istambul e muitas cidades brasileiras –, mostrando que as práticas sociais ligadas ao uso do espaço público podem se contrapor de forma relevante à especulação imobiliária, ao consumismo exacerbado e à predominância dos interesses privados.
“Fazer” e “usar” a cidade parecia ser, até pouco tempo, um par dicotômico, que aludia, de um lado, às forças políticas e econômicas que constroem a cidade junto ao desenho do arquiteto e, de outro, ao uso dos espaços urbanos pela população. Hoje, no entanto, está claro que esses polos não se separam, pois usar é fazer e vice-versa, e não daremos conta da complexidade crescente das cidades sem arquitetarmos seus fazeres e usos de maneira dialógica.
São inúmeras as questões que hoje retornam a partir do arco de problemas levantados de forma experimental nos anos 1960 e 1970. Entre eles estão o papel ativo conferido ao uso das cidades e a emergência de práticas colaborativas que ensejam as redes horizontais de trabalho no mundo contemporâneo. O mottolefebvriano do “direito à cidade” está, de novo, na ordem do dia, pois o cidadão que usa o espaço urbano reivindica o direito de participar de sua construção. E esse direito inclui não apenas a satisfação de necessidades básicas, como transporte, habitação, saúde e educação, mas também a realização de desejos, sobretudo o desejo, múltiplo e difuso, de cidades melhores para fazer e usar na vida cotidiana. Isto é, cidades que sejam verdadeiramente lugares para a ação.
notas
NE1
Texto curatorial da X Bienal de Arquitetura de São Paulo.
NE2
Saiba a programação completa da X Bienal de Arquitetura de São Paulo.
sobre os autores
Guilherme Wisnik é arquiteto, formado pela Universidade de São Paulo (1998), mestre em História Social (2004) e doutor em Arquitetura e Urbanismo (2012) pela mesma Universidade; professor da Escola da Cidade e da Universidade de São Paulo, curador da X Bienal de Arquitetura de São Paulo.
Ligia Nobre é arquiteta, mestre pela Architectural Association School of Architecture (AA, Londres). Co-dirigiu a plataforma Exo Experimental, em São Paulo. Assistente de pesquisa e de ensino dos arquitetos Jacques Herzog e Pierre de Meuron no Studio Basel – ETH (Basileia, Suíça). Curadora adjunta da X Bienal de Arquitetura de São Paulo.
Ana Luiza Nobre é arquiteta, crítica e historiadora da arquitetura. Membro do Comitê Internacional de Críticos de Arquitetura (CICA). Professora do Curso de Arquitetura e Urbanismo da PUC-Rio e coordenadora do programa de pós-graduação em Arquitetura da mesma universidade. Curadora adjunta da X Bienal de Arquitetura de São Paulo.