Passava das 10 da noite e a galera ainda discutia o resultado do futebol. A birosca do “Beco da Fome” havia se transformado em ponto de encontro da rapaziada que morava na favela do “Deus me Livre”. Pacificada recentemente, ainda se podia ver a policia militar circulando pelas suas ruelas e becos que antes eram controlados pelos “donos do morro”. Naquela noite, no entanto, o clima parecia mais tenso do que o habitual em virtude de um tiroteio ocorrido no dia anterior. A conhecida lei do silêncio voltara a vigorar na comunidade.
Indiferente às discussões dos torcedores de futebol, uma dupla de policiais bebia, como de costume, um refrigerante discretamente “batizado” com uma dose de pinga bem caprichada. Nada de novo acontecia na birosca até que, quando ninguém esperava, despontou da escuridão um cara sinistro acompanhado de dois “seguranças” fortemente armados e visivelmente drogados. Por instantes fez-se um silêncio aterrorizador, logo rompido pela estridente ameaça feita pelo marginal ao policial mais graduado:
— Te cuida, marechal! Tá pensando que por usar farda tu é dono do pedaço e pode fazer tudo que quer? Até se meter em briga por mulher e mandar baixar porrada em quem atravessa o teu caminho? Tá quebrando o nosso trato? Tô te estranhando, marechal!
Subitamente um corre-corre tomou conta do lugar e vários estampidos foram ouvidos na favela. Eram cenas que não se viam desde a implantação da UPP naquela comunidade. Quanto ao final desse entrevero, já que os depoimentos nem sempre reproduzem a veracidade dos fatos, deixo para cada leitor especular sobre o seu imaginável desfecho. Afinal, nesta história, qualquer semelhança com os fatos reais não é mera coincidência.
No momento em que a sociedade reflete sobre as barbaridades cometidas durante o regime militar é necessário, também, voltar as suas atenções para a violência recorrente nas favelas brasileiras praticadas por traficantes e por policiais inescrupulosos. O cerceamento da liberdade de circular em segurança por esses locais não pode continuar sendo aceito com a indiferença costumeira da população e com a omissão silenciosa de diversas instâncias do poder público.
Os recentes casos de violência que estão ocorrendo nas favelas cariocas, se não forem enfrentados com inteligência e rigor, poderão contribuir para a derrocada das UPPs, um programa de governo reconhecido, até agora, como o mais bem sucedido plano de segurança pública implantado nessas localidades. Criticar a UPP apenas pelo viés ideológico é uma atitude que reflete o pensamento político da vanguarda do atraso. A retomada da violência na cidade tende a transformá-la em um território dividido, acirrando a discriminação social, os preconceitos das mais diferentes espécies e o desapego da população pelo convívio nos espaços públicos.
As grandes intervenções que estão sendo feitas para valorizar a imagem do Rio só serão plenamente reconhecidas pela sociedade se elas propiciarem uma melhoria significativa nos padrões de qualidade de vida da população, principalmente das camadas menos favorecidas. Não basta construir obras suntuosas e edifícios esplendorosos se entre eles continuarem existindo áreas desprovidas dos mínimos requisitos de habitabilidade. Nesse contexto, é compreensível o descontentamento e a revolta daqueles que se vêem excluídos dos benefícios urbanos e sociais distribuídos desigualmente pela cidade.
Não há crime maior do que ignorar a miséria e a pobreza que existem nos guetos urbanos espalhados pela cidade. É imperativo, portanto, dotar as favelas com os mesmos serviços – urbanos e sociais – que são oferecidos no restante da cidade, isto é urbanizá-las. Afinal, não se faz cidadania apenas com ocupação policial e, muito menos, com a presença constrangedora de um tanque de guerra estacionado na porta de casa.
nota
NE
Publicação original: JANOT, Luiz Fernando. Te cuida, Marechal. O Globo, Rio de Janeiro, 12 abr. 2014.
sobre o autor
Luiz Fernando Janot, arquiteto urbanista, professor da FAU UFRJ.