Desde a madrugada os helicópteros não param de sobrevoar o centro de São Paulo atrás de imagens impressionantes e em minha timeline do Facebook vejo multiplicarem-se duas narrativas sobre o incêndio do edifício Wilton Paes de Almeida: o lamento de arquitetos e preservacionistas pelo desaparecimento da cidade de uma bela obra arquitetônica, de autoria de Roger Zmekhol; e a indignação dos militantes e simpatizantes dos sem-teto pelo descaso com que a questão da moradia e o destino da população mais pobre são tratados. Nem sempre elas se opõem uma a outra, mas quase nunca se dão conta do que deixam de fora em suas ênfases.
Não quero me deter, deliberadamente, sobre o discurso cínico da grande imprensa e das autoridades que aproveitam o fato para faturarem com a criminalização dos movimentos sociais como responsáveis pelas condições desumanas contra as quais eles vem se organizando e resistindo. Não porque eu ignore a força avassaladora desse discurso, mas porque ele me dá enjoo. E porque felizmente muitos outros vem sublinhando com grande competência suas falácias. Como as da fala mansa e violentíssima do governador Marcio França esta manhã ou do gesto calhorda – porque gestos também são discursos – de Michel Temer em visitar o sítio, como se nada tivessem a ver com a explosão da pobreza extrema em São Paulo e no Brasil nos últimos dois anos.
Dirijo-me tão somente ao lamento e à indignação sinceros de tantos colegas arquitetos e urbanistas pelas perdas e riscos que o evento simboliza. É que não sinto a ascensão e o ocaso do arranha-céu de vidro como algo separado da tragédia urbana que nos rodeia. Inclusive porque a sensibilidade modernista que consagrou o edifício constituiu-se em grande parte meio à afirmação do compromisso social no imaginário dos arquitetos da geração de Zmekhol. Lembre-se, a propósito, en passant, que, formado na primeira turma da FAU USP em 1952, ele foi contemporâneo de Domingos Theodoro de Azevedo, Clementina de Ambrosis, Flávio Villaça, José Cláudio Gomes, Jon Maitrejean, Ruy Gama, Celso Lamparelli e vários outros.
De fato, ainda que esforços arquitetônicos de inovação e polarização como esse do Paes de Almeida, ao projetar-se para além da cidade, tenham frequentemente constituído enclaves de autossuficiência, o destino que o prédio seguiu – de sede de grande conglomerado empresarial a delegacia da Polícia Federal, de estrutura abandonada no centro a ocupação de sem-teto, e finalmente ao fogo e à ruína – é emblemático do quanto essas duas facetas da tragédia estão imbricadas. A instabilidade entre a pretensa autonomia da estrutura miesiana e o capital coletivo que produz e reproduz a cidade como uma ilha de especulação equilibrada – para usar uma expressão do velho Tafuri – finalmente se rompeu.
Para atiçar as controvérsias, quero declarar que gosto muito daquele projeto, ao meu ver até ontem um dos mais belos exemplares de arranha-céus de escritório de São Paulo em todas as épocas. Mas sua fachada de vidro tatuada pelos grafites e adornada pelas bandeiras e faixas que sucederam à ocupação, me despertava igual interesse. São as duas faces de um só e mesmo evento anárquico que constrói e destrói coisas belas, sejam elas prédios, vidas ou direitos!
nota
NE – Texto originalmente publicado na página Facebook do autor.
sobre o autor
José Tavares Correia de Lira é professor titular do departamento de história da arquitetura e estética do projeto da FAU USP e ex-diretor do Centro de Preservação Cultural da USP. É autor de Warchavchik: fraturas da vanguarda (Cosac Naify, 2011) e O visível e o invisível na arquitetura brasileira (DBA, 2017), e organizador, entre outros, de Caminhos da arquitetura, de Vilanova Artigas (Cosac Naify, 2004, com Rosa Artigas).