Desde que concluímos as filmagens do filme Era o Hotel Cambridge seguimos muito de perto as ações da Frente de Luta Por Moradia – FLM e do Movimento Sem Teto do Centro de São Paulo – MSTC, onde a Carmen Silva destaca-se como uma das principais lideranças.
O cotidiano das ocupações organizadas pela Frente é uma escola de autogestão ética e de intensa resistência dos trabalhadores de baixa renda pelo direito de (sobre)viverem numa cidade tão desigual e hostil como São Paulo.
Nos últimos dias, o ataque do setor mais conservador da grande mídia abateu-se de modo cruel e arbitrário sobre os moradores das ocupações e principalmente sobre suas lideranças femininas, como uma verdadeira inquisição de caça às bruxas e de criminalização aos movimentos sociais que atuam no centro. Estão aproveitando, deitando e rolando em cima da tragédia do edifício que pegou (?) fogo no centro da cidade para construir uma ideologia de repulsa e raiva frente à milhares de famílias sem teto.
A mídia que atende aos interesses dos grandes capitais da especulação imobiliária adora confundir, banalizar, despolitizar e moralizar em cima de fatos tão complexos como o do déficit habitacional. Por exemplo, não relatam nunca que os que habitam esses imóveis abandonados são trabalhadores – faxineiras(os), cuidadores de idosos, garis, pedreiros, encanadores, babás, auxiliares de escritório, motoboys, eletricistas –, ou seja, todos aqueles seres humanos que não tiveram a sorte de nascer na classe dos privilegiados econômicos e que, para ganharem o direito de existir, trabalham prestando serviços manuais e físicos para os mais abastados que não querem desperdiçar tempo de vida com tais “banalidades” sem nenhum glamour.
As classes média e alta parecem não ser capazes de pensar por conta própria e perceber que se eles atacam esses trabalhadores com a fúria que o fazem, é como se estivessem chamando de “criminosos” as babás e outros profissionais que colocam dentro de suas casas para aliviarem seus pesares. Essa falta de pensamento político, resultado da preguiça intelectual dos que vivem dentro de bolhas domésticas e sob a deglutição fast food das notícias que jorram pelas inúmeras mídias de fachada “limpa” e “neutra”, faz com que muitos sejam – sem o saberem – os principais e verdadeiros criminosos perversos, forjados nas armadilhas de massificação e domesticação em que caíram para servirem, eles sim, aos grandes e poucos empreendedores do sistema do capital privado que gera tal grau de sofrimento mundial.
Muito ao contrário destes, Carmen Silva – ao invés do que muitos dizem e pensam – é uma mulher que doou-se por inteiro; que vive em função do coletivo dos trabalhadores injustiçados e que não acumula nenhum imóvel para si. Após tantos anos na militância, seu espírito livre voa bem mais alto e consciente, certa de que a vida é breve demais para prescindir de um bem que é essencial e que devemos deixarmos às outras gerações. Quem duvida disso, basta visitar uma das ocupações sob sua coordenação; basta um dedo de conversa com ela, olhando-a nos olhos, para ver e compreender seu enorme coração, sua força e paciência infinita para suportar tanta calúnia pública e ainda assim, resistir e não abandonar a barca de companheiras e companheiros. Para quem quiser saber mais do assunto, também indico a excelente matéria sobre o assunto escrito por Laura Capriglione, publicado originalmente no portal Jornalistas Livres, mas reproduzido pelo portal Vitruvius (1).
nota
CAPRIGLIONE, Laura. Jornal Nacional (sempre ele) manipula contra os movimentos de moradia. A quem interessa a reportagem da TV Globo que ataca Carmen da Silva Ferreira? Resenhas Online, São Paulo, ano 18, n. 197.03, Vitruvius, maio 2018 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/resenhasonline/18.197/6985>.
sobre a autora
Eliane Caffé iniciou a carreira no cinema como diretora dos curtas Arabesco (1990) e Caligrama (1995). Em seguida, realizou os longas metragens Kenoma, Narradores de Javé, O sol do meio-dia e Era o Hotel Cambridge, todos com prêmios importantes em vários festivais e mostras nacionais e internacionais.