Em 1983 Vicente Wissenbach, então editor da revista Projeto, organizou uma exposição sobre arquitetura brasileira no CAYC – Centro de Arte y Cultura em Buenos Aires, Argentina, um espaço pequeno mas muito ativo, coordenado por Jorge Glusberg. Havia anos que não se debatia arquitetura brasileira. Na primeira reunião para pensar o que poderia ser essa exposição estávamos reunidos Vicente, os então muito jovens colaboradores da revista, Ruth Verde Zein e Hugo Segawa, e alguns figurões arquitetos do IAB-SP; os quais externaram a opinião enfática de que a exposição não deveria em absoluto incluir arquiteturas de “madeirinha e tijolinho” (sic) porque, na enviesada opinião deles, isso não era arquitetura brasileira. Felizmente essas figuras desatualizadas e preconceituosas nunca mais voltaram às reuniões seguintes, e nós, os jovens, decidimos que arquitetura brasileira era tudo o que se fazia no Brasil. Abrimos as portas para quaisquer manifestações que se apresentassem, e as quase cem obras reunidas naquela mostra revelaram um panorama inaudito da ampla diversidade de aproximações sobre a arquitetura existentes naquele Brasil que não conhecia o Brasil. E assim abriu-se um novo capítulo nos debates sobre a arquitetura brasileira.
Dentre essas obras havia algumas de Severiano Porto, que então conheci pessoalmente na capital portenha, durantes as visitas a várias obras da arquitetura argentina dos anos 1960-1980, em passeios organizados em paralelo à exposição e aos debates. Logo no primeiro dia me dei conta de que a atitude dos colegas paulistas, frente àquelas magníficas obras, era quase sempre desdenhosa ou indiferente. Decidi então acompanhar de perto a Severiano, pois ele não só as sabia apreciar como as comentava, com muita perspicácia e pertinência, observando de maneira inteligente, explicando-as desde os partidos aos detalhes. Eram verdadeiras aulas, dadas sempre da maneira gentil e educada que o caracterizava, conversando sempre de maneira nada imponente, muito atenciosa e respeitosa.
Pelas duas décadas seguintes continuamos nos encontrando em eventos variados, eu sempre aprendendo muito, ele sempre atencioso e cavalheiresco – algumas vezes inclusive se posicionando a meu favor em certos momentos desagradáveis que fui alvo do preconceito misógino de alguns infelizes autonomeados “donos” da arquitetura brasileira (que merecem ser esquecidos, e por isso não serão nomeados).
Já Severiano Porto, e sua obra, não poderá jamais ser esquecido. E isso nada tem a ver com o fato de você, jovem, maduro/a e ou velho/a arquiteto/a “gostar” ou não da obra dele. O direito ao gosto individual está assegurado. Mas é uma base fraca e inadequada para se falar de arquitetura de maneira mais séria e consequente. A obra de Severiano Porto, e de outros arquitetos das gerações atuantes a partir dos anos 1960/70, ajudou a ampliar nossa consciência sobre as possibilidades da arquitetura moderna brasileira, e permitiu sairmos de uma fixação infantilizada a uns poucos ídolos que, por melhores que tenham sido, não dão conta de compreender a variedade e diversidade da dimensão continental deste nosso país.
Neste outro século, Severiano Porto já quase não participava mais dos debates do campo profissional da arquitetura. Fragilizado por uma situação econômica totalmente transformada e por uma doença debilitadora que o mantinha vivo, mas sem a posse plena de suas faculdades, Severiano se recolheu em família, e sua obra quase ia sendo esquecida pelos professores e estudantes – enquanto era e segue sendo espoliada e desfeita, na cidade que ele ajudou a transformar. Mas tudo isso vem mudando, já mudou: muitos estudos e pesquisas se debruçaram, nos últimos anos, sobre sua contribuição arquitetônica. E ainda assim, resta muito por se fazer para por efetivamente em valor esse patrimônio brasileiro que foi, é, a obra de Severiano Porto.
Nesta semana em que, infelizmente, perdemos sua pessoa (1), deixo aqui minha singela homenagem. Minha melhor lembrança dele é de sua figura gentil, tocando melodias nostálgicas em sua harmônica de boca, encantando amigos, em uma noite enluarada latino-americana. Durante minha vida, tive a felicidade de conhecer algumas pessoas extremamente boas e iluminadas. Ele foi uma delas. E agora se transmutou: virou mais uma estrela, no firmamento das memórias.
nota
Severiano Mario Porto, nascido em Uberlândia no dia 19 de fevereiro de 1930, faleceu no dia 10 de dezembro de 2020 devido a Covid-19.
sobre a autora
Ruth Verde Zein é professora e pesquisadora na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Arquiteta pela FAU USP (1977), mestre (2000) e doutora (2005) pelo Propar UFRGS.