A última coluna do ano deveria, pelas leis não escritas da imprensa, ser dedicada ao balanço das melhores e piores coisas do ano que finda. Ou às chamadas previsões que, na verdade, são meros desejos projetados para o ano que se inicia, supostamente trazendo algum tipo de renovação.
Mas 2020 foi um ano em entredito, um ano entre parêntesis, em que a humanidade – ou ao menos uma parte dela – conviveu cotidianamente com o medo da morte.
Não a morte violenta nas mãos do ex-marido que não aceita ser abandonado. Nem a morte perdida que ceifa vidas infantis que brincavam à frente de suas casas pobres. Nem a morte de pretos nas mãos profissionais dos capangas de supermercados sarcasticamente chamados de “seguranças”.
Tivemos todos – mesmo os que acham que não sentem – medo de uma outra morte. Invisível, silenciosa, insidiosa, cheia de artimanhas e disfarces. Que ora só atacava os pulmões e depois o corpo inteiro. Que tinha uma predileção pelos fracos e idosos, assim como a Morte de sempre, mas mostrou não desprezar atletas nem crianças.
Insidiosa mas eficiente, já levou mais norte-americanos que a Segunda Guerra Mundial e mais brasileiros do que a Guerra do Paraguai. Aquela de que nos contam na escola sem ensinar que lá também já morreram mais pretos e pobres do que os outros, os brasileiros que valem a pena.
Morte que gera a cizânia, que nos impõe a falsa escolha entre a vida e a economia, entre a saúde e abraço dos familiares, entre a escola e as UTIs. Morte de que preferimos não falar, fórmula certa para a transformar em trauma a atormentar gerações inteiras.
Morte adulada por seus adoradores, por aqueles que fazem fotos de casamento com armas automáticas, pelos que incitam a derrubar a tiros os que usam as vacinas como arma política. A mesma morte usada como insígnia na jaqueta dos generais que não dispensam um segundo soldo.
Morte enganadora, morte traiçoeira que nos leva a desejar que ela fosse justa e levasse seus principais promotores, e com isso quase nos faz esquecer que eles são abomináveis mas são meros serviçais.
Que a calculada tosquice e a abjeta grosseria se beneficiam da corrupção miliciana, mas estão a serviço dos interesses dos bem cheirosos, dos elegantes, que falam inglês e francês e doam milhões de euros para causas beneficentes, bem longe dos pretos e pobres e dos seus assassinos.
Dada a interdição ao desejar, que 2021 traga o que cada um merecer.
sobre o autor
Carlos Ferreira Martins é professor titular do IAU USP São Carlos.