Pensei em intitular estas últimas reflexões do ano com um “Adeus 2020”, mas me pareceu ofensivo para aqueles que acreditam na ideia de Deus. “A-Deus: entrego-te a Deus; encomendo-te a Deus”... Seria um verdadeiro contrassenso.
Desde tempos imemoriais (muito antes do calendário católico de 1582 corrigir o pagão juliano de 45 a.C. que, por sua vez, baseava-se no antigo egípcio e este no calendário lunar de nossos antepassados neandertais, extintos há 28 mil anos – numa brevíssima e parcial regressão em nossa árvore genética comum) os seres humanos rendem oferendas e sacrifícios às distintas forças da Natureza e/ou do Cosmo, na esperança de saciar a ira dos deuses, obter alguma dádiva ou salvar suas almas. Pelo sim pelo não, melhor não ofertar “adeus” um ano calamitoso como este 2020 que na contagem da economia mundial se encerra hoje.
No saldo, terminamos no vermelho. Temos mais motivos para lamentar do que para comemorar pois, em conjunto, nossos atos ofenderam todos os deuses e estes, como não poderia ser diferente, estão dando claros sinais de sua ira.
Escondidos atrás de máscaras e confinados em nossos quadrados assistimos ao espetáculo dos números de mortos, contaminados e recuperados ao redor do planeta que saem em cadeiras de rodas por um corredor de palmas, enquanto outros corpos foram parar em frigoríficos porque houve momentos em que o sistema não deu conta de processar tantos sepultamentos.
Paralisados pelo medo, fizemos compras “delivery” obrigando outros seres a enfrentarem o perigo por nós (somos tão “bonzinhos”, né?). Rendemos muitas palmas ao exército de homens e mulheres que arriscaram suas vidas (e continuam arriscando) nos pelotões de frente dos hospitais. Faltaram palmas aos entregadores de compras em domicílio.
O melhor que pudemos fazer foi mostrar nosso inconformismo batendo panelas enquanto ouvíamos os primeiros disparates políticos – depois parece que “perdeu a graça” e silenciamos (muito embora os disparates continuem se proliferando).
Ficamos encantados com imagens de “um mundo sem nós”, quando paramos de agredir a Pachamama um par de semanas, para logo ficar estarrecidos diante da retomada das agressões e a fúria das chamas no centro-oeste do território brasileiro (guardo vívida a lembrança da fotografia de um símio carbonizado estampada na capa dos jornais).
Como se não bastasse, vimos cenas dos pobres mais pobres de nosso continente deixarem seus mortos nas calçadas e assistimos vídeos gravados de irmãos negros apanhando até a morte, espetacularmente transmitidos por televisão e disponíveis na internet para serem vistos e revistos quantas vezes quiser e o estômago permitir. Sem censura, violências que muitas criancinhas puderam assistir no sofá de suas casas, enquanto os pais higienizavam freneticamente os mantimentos vindos do exterior do casulo para evitar “contaminações”.
Nossas casas viraram verdadeiras “UTIs”, refúgios de periculosidade viral e, ao mesmo tempo, ambientes propícios à propagação de feminicídios.
O que há para ofertar aos deuses? Os únicos satisfeitos devem ser Dionísio e Baco – esses sim, os mais reverenciados de todos, presentes em todas as nossas celebrações on-line. De resto, as perdas e danos superam os ganhos e benefícios. Os que chegamos com saúde até o final de 2020 a ela brindamos. Palmas aos cientistas que desenvolveram em tempo recorde algumas vacinas para tentar nos imunizar contra a Covid-19. Pena que elas só sirvam para esse vírus e não operem o milagre de nos transformar em jacarés. Esses sim sobreviveram à extinção dos dinossauros e nos superarão quando chegar o fim de nossa era neste planeta (se é que não acabaremos com ele junto).
Palmas também aos indivíduos, coletivos e algumas empresas que se solidarizaram aqui e ali com o sofrimento humano, buscando desenvolver “boas práticas”. Sem desmerecê-las (muito pelo contrário), são oferendas muito parcas para satisfazer os deuses. Lamentavelmente, são doses homeopáticas num oceano de imundícies que levará anos e anos e anos para descontaminar (se é que algum dia a humanidade poderá chegar a esse nível de consciência e equilíbrio com o planeta Terra).
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Para finalizar, no ritual da meia-noite do dia 1 de janeiro, desde esta terra de todos os santos que é a Bahia, irei até a borda do mar vestida de branco – no Candomblé, é a cor representativa do luto pela morte que proporciona o renascimento e a continuidade da espécie –, erguerei meus braços ao céu e gritarei com toda a força que meus pulmões permitirem: “Adeus 2021”!!!
E oxalá outros deuses além de Dionísio e Baco recebam a oferenda e nos deem nova chance de corrigir o rumo que – por vontade ou omissão – demos ou deixamos dar às nossas vidas e às de outros seres nesta que é a Casa de Todos.
sobre a autora
Claudia Stinco, arquiteta e docente livre.