Não só historiadores se dão conta de que o tempo é elástico como uma sanfona. No pessoal e no coletivo, ele às vezes encolhe e às vezes estica, ignorando a marcação formal do calendário.
Isso vale para 2020, que historiadores do futuro provavelmente chamarão de o Ano da Grande Pandemia e vale, por aqui, para esta semana que pareceu maratona de série.
Depois de aumentar o imposto sobre livros porque, como esclareceu o douto ex-posto Ipiranga, “livro é coisa de elite”, o ciclo se completou com a decisão presidencial de zerar a alíquota de importação de armas.
Mais armas e menos livros, mais militares e menos cientistas ou professores, é a resposta governamental ao editorial do Estadão de 2018 sobre a “escolha muito difícil” entre Bolsonaro e Haddad.
Falando em mais armas, pouco tempo depois de sair do noticiário a lembrança do assassinato do Nego Beto por seguranças do Carrefour, as meninas Emilly e Rebeca foram abatidas, enquanto brincavam na porta de suas casas pobres em Duque de Caxias, por tiros de fuzil que suas famílias afirmam ter partido de dentro de uma viatura policial.
A polícia, naturalmente, nega. E qualquer tentativa de vincular esse crime ao fato delas serem pobres e negras será má fé, porque, como se sabe, não há racismo neste país cordial. E vidas negras da periferia tem tanto valor como vidas brancas dos Jardins, claro.
Mais longe, aparentemente, de nosso cotidiano, mas de impacto internacional, soubemos que o nosso mítico capitão mereceu não estar entre os 75 chefes de Estado que participarão da reunião de cúpula sobre o clima, organizada neste fim de semana pela ONU.
Enquanto isso, a ABIN, órgão de inteligência (?) do Estado, trabalhou como advogado de defesa do filho do capitão, num caso irrelevante de corrupção.
Mas o must promete ser a superprodução A guerra das vacinas. Não sabemos se ela vai conseguir rivalizar com Game of Thrones, mas já matou mais gente. E o piloto está sensacional.
Dória, o rei do Sudeste, avisou que iniciará a vacinação na data comemorativa da fundação de sua capital, sem esperar autorização do capitão que dá emprego aos generais.
O general que obedece ao capitão primeiro disse que não, depois disse que talvez e por fim confessou que não sabia.
Os regentes dos outros estados reclamaram que a gripezinha já matou 180 mil súditos e o rei do Agro Centro Oeste, Caiado I, anunciou, ao lado do general que obedece, que a vacina fabricada no reino do Sudeste pode ser confiscada pelo capitão que manda em generais e já está sentado no trono de ferro.
Logo saberemos se os roteiristas vão fechar a temporada com a cena apoteótica de metralhadoras da Polícia Federal garantindo a expropriação das vacinas do rei do Sudeste, com apoio logístico de helicópteros (pena que faltarão os dragões) e cobertura ao vivo pela imprensa mundial.
HBO e Netflix são para os fracos.
sobre o autor
Carlos Alberto Ferreira Martins, professor titular do IAU USP, adora séries.