A comuna de Monte Carasso, no Ticino suíço, não seria a mesma sem Luigi Snozzi (1).
O encontro entre eles, em 1968, foi marcado pela recusa do arquiteto, à época com 36 anos, à encomenda para o projeto de uma escola primária por não concordar com o local destinado à sua implantação às margens da rodovia e afastado do centro da pequena cidade.
Nascido em Mendrisio, Luigi Snozzi, apoia sua sensibilidade em uma relação de amor à paisagem do Ticino. Algo que ele começou a construir naturalmente ainda na infância, talvez um amor tragado pelo lago enquanto o menino ingenuamente pescava. É naquele lago que as camadas de neve que cobrem as montanhas encontram descanso. O espelho d’água que elas formam reflete a imagem, e também o tempo, do que foram. O volume que a água ocupa tem a forma de uma montanha virada para baixo. Por isso, o barco flutua sobre os dois infinitos fundantes da paisagem suíça: o lago e a montanha. Mas, para o pescador, barco é apenas suporte. Anzol, chumbada, linha, vara, enfim é a tralha de pesca o fundamental para o elo entre homem e peixe. Uma vez recolhida, a tralha arrasta com ela um pouco d’água e, simbolicamente, a substância do próprio lago. Talvez seja por isso que no espaçoso porta-malas do possante de Luigi Snozzi não há espaço para nada além da sua tralha de pesca, que nunca sai de lá. As malas viajam no banco de trás. O lago passeia com ele pelas estradas nas montanhas do Ticino.
O amor pelas pessoas, que se manifesta em Luigi Snozzi como um conjunto de valores – pacifismo, posição política e humanismo incondicional –, é o outro apoio que sustenta o arquiteto. A Segunda Guerra transcorreu entre seus sete e treze anos. Portanto ele testemunhou a grande transformação do Ticino naquele período: a passagem entre as privações de um modo de vida rural extremamente modesto à pujança econômica. Pôde sentir seus efeitos na mudança da paisagem da sua infância. É essa vivência que lhe imprimiu uma convicção notável desde muito cedo, que pode ser ilustrada na recorrência de um episódio: Faltar ao serviço militar suíço significa prisão por duas semanas. E foi essa a opção reafirmada por Luigi Snozzi durante os quinze anos de vigência da obrigação. Todo ano ele dizia não, todo ano pegava catorze dias de cadeia. Sem dúvida, é o caráter legítimo e verdadeiro das escolhas que assegura a permanência dos valores que orientam o sujeito e que se manifesta, no seu próprio caráter, num instante como clareza e, ao longo do tempo, como perseverança.
De volta à escola. A recusa de um caráter como Luigi Snozzi jamais teria motivação de desprezo. Recusa-se também por apreço, no caso ao tema e ao lugar. Ele tinha uma proposta diferente para atender ao programa: justo no centro da comuna, estavam abandonados há décadas a Igreja e Convento dos Agostinhos, que remontam a 1450. Propôs então que se usasse o pretexto da escola para renovação da área. A proposta vingou, a educação das crianças está no centro. O claustro aberto é pátio da escola e também praça da cidade. A escola funciona também como museu e centro de cultura, como eventos na praça e seminários que acontecem ali ocupando inclusive os espaços de salas da escola durante férias ou finais de semana. O Workshop de Arquitetura de Monte Carasso, dirigido pelo próprio Luigi Snozzi e conduzido por uma equipe de notáveis professores e arquitetos como Stefano Moor, Mario Ferrari, Giacomo Guidotti e Michele Gaggetta, e que acontece ali já há 25 anos, é o melhor exemplo de como aquele espaço se desdobra e de como o nome da pequena Monte Carasso reverbera com grandeza em todo o mundo.
De fato, aquela recusa acabaria por selar seu compromisso com Monte Carasso que já perdura por cinquenta anos, com muitos desdobramentos. Nesse período ele desenhou a casa do prefeito, uma dezena de residências e dois edifícios de apartamentos. Mais importante, Luigi Snozzi elaborou um plano diretor para a cidade em que refez o código de obras substituindo 240 regras por apenas sete, com destaque para a número três: “Não há regra para definir a linguagem arquitetônica”.
Em uma época em que arquitetura se deixa seduzir perigosamente pelo fascínio de uma grandiosidade espetacular, a lição de Luigi Snozzi em Monte Carasso se torna cada vez mais imprescindível: em uma pequena comuna, cinquenta anos de trabalho de um homem, uma escola primária e uma pequena coleção de obras mínimas dispersas pela cidade, realiza uma obra comovente e de um humanismo monumental.
Por isso, ela não seria a mesma sem ele.
Monte Carasso de Luigi Snozzi.
notas
NE – Texto escrito em 2018 para uma publicação em homenagem a Luigi Snozzi, preparada pelo grupo de assistentes do Workshop de Monte Carasso.
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Luigi Snozzi, nascido em Mendrisio, Suíça, no dia 29 de julho de 1932, morreu no dia 29 de dezembro de 2020, vitimado pela Covid-19.
sobre o autor
Angelo Bucci é arquiteto, mestre e doutor pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (1987, 1998 e 2005), onde é professor desde 2000. Entre 1987 e 1989 foi colaborador em escritórios de arquitetura, a partir de 1989 atuou em escritório próprio associado a outros colegas arquitetos. Desde 2003 dirige o escritório SPBR Arquitetos.