História da arquitetura e história da cidade: um casamento difícil
Adalberto da Silva Retto Jr. & Barbara Boifava
Nas duas conferências ministradas recentemente no Brasil (São Paulo e Bauru), Donatella Calabi transporta-nos de São Paulo à Veneza: mais do que a efervescência das cores, apresenta uma civilização. De um "sestier" a outro, ao invés de levar-nos a um raciocínio em termos de composição física da cidade, faz-nos pensá-la por meio de articulações de partes e superposição de extratos, sem modificar a sintaxe tradicional, mas iluminando um percurso no qual opera a economia dentro do espaço da cidade: uma outra maneira de remontar os tempos.
Ao recorrer às categorias interpretativas que, por analogia ou por diferença, põem à luz a articulação dos fenômenos de transformação da construção do urbano, restabelece a complexidade implicada na concretude do ambiente físico, restituindo um panorama rico de novos elementos, e portanto, fértil de idéias que descortinam eventuais horizontes de pesquisa. Através de casos exemplares ou inovações apresenta uma história "não evolutiva", perfilando, numa visão de conjunto, como se modifica a paisagem urbana.
Calabi propõe leituras incisivas, capazes de selecionar hierarquias de fatos construídos, formações tipológicas que, pouco a pouco, mostram-se funcionais a um novo desenho urbano. Hierarquias necessárias para reconhecer como Veneza ou Antuérpia, Roma, Londres, Amsterdã, por exemplo, em uma certa conjuntura histórica participaram de uma mesma rede de implantação, de um mesmo desenho, explicitando como este agiu como estímulo para a pesquisa de uma nova figuração em arquitetura; e assim, como cidade e território, desenho urbano e organização do regime produtivo não são facilmente desconexos, o que levaria a uma redução da complexidade dos fenômenos a puros dados morfológicos.
O título da entrevista sugerido pela professora Calabi, descortina dois filões de grande importância da historiografia na Itália nos anos de 1970: a formação do Dipartimento di Storia dell' Architettura de Veneza por Manfredo Tafuri, afirmando a autonomia da história da arquitetura frente a uma "critica operativa"; em paralelo, o despertar da história urbana e de seus instrumentos de investigação, não como extensão da história da arquitetura, mas como âmbito de estudo caracterizado com técnicas e instrumentos próprios, como ponto de vista da história geral, do qual ela mesma assume um papel de relevo.
1 – Oito anos depois de sua chegada no IUAV, Manfredo Tafuri funda em 1976, o Dipartimento di Analisi Critica e Storica sobre as cinzas do Istituto di Storia dell'Architettura dirigido por Bruno Zevi. A mudança sucessiva do nome do departamento que voltou à antiga denominação de Storia dell'Architettura, afirma que os dois adjetivos, "Critica" e "Storica", constituíam uma tautologia. Como sustentava Tafuri, "a história sempre teve uma função crítica", logo "não existem críticos, somente historiadores" (Non ci sono critici, solo storici)".
De fato, a nova denominação marcava a passagem para uma fase em que a "fecunda incerteza da análise" se contrapunha à certeza do projeto da denominada "Storia operativa" de Zevi.
Jean Louis Cohen que seguiu atentamente o âmbito intelectual veneziano, [Italophilie (1984 ), Dall'affermazione ideologica alla storia professionale (1999)], explicita que, ao superar a questão da operatividade da história, a "Scuola di Venezia" consegue passar do estudo das conjunturas àquele das estruturas, posta como fundamento da historiografia dos "Annales": "sem subscrever a causa da longa duração per se stessa, mas propondo-lhes rearticulações diacrônicas que fazem aparecer os ciclos estruturais segundo os quais a crise do capitalismo e da arquitetura se compõem e se correspondem". Como escreve H. Burns, Tafuri criou "un nuovo, fertile modo di fare storia della architettura,– o storia 'tout court'– che non 'spiega' l'architettura in termini di 'contesto', ma identifica la sua funzione fondante nell'ambito di un dato momento culturale e politico e la sua interazione con le altre forze culturali, da cui non è passivamente determinata".
2 – Nos anos de 1970, denominado por Guido Zucconi como os anos de ouro da história urbana na Itália, um grupo de professores começa a delinear um modo novo e autônomo de se fazer história, no qual o termo "análise urbana" deixa de ser sinônimo da "análise operante", protagonizada por Saverio Muratori em seu "Studi per una operante storia urbana di Venezia "(1953).
Donatella Calabi, seja na entrevista gentilmente concedida ao Vitruvius seja no discurso do nascimento da "Associazione Italiana di Storia Urbana" (AISU), intitulado "Storia Urbana in Italia"(2001), ilumina este novo caminho que é indissociável da história que plasma sua figura e sua produção intelectual.
Na conferência ministrada em Bauru "La borsa, lo scambio del denaro, la circolazione delle idee in Europa nel XVI secolo. Problemi di storia urbana comparata", Calabi mostra uma fase recente da pesquisa do departamento de história de Veneza, substituindo a "história dos eventos" por uma que põe em relevo às "mudanças geográficas, econômicas, sociais, culturais (das mentalidades), na longa duração". Neste contexto, o escopo é aquele do confrontro ou ainda da "história comparativa", através de uma prática de pesquisa de cunho multidisciplinar, como superação da dificuldade inevitável da fragmentação dada por cada caso singular.
Podemos apostar numa coerência, que confere unidade ao conjunto das publicações de Donatella Calabi, cujo papel seria o de pedra angular no debate da história urbana atual. Por fim, vale ressaltar, sua importância política na formação de um sólido fio condutor à frente de algumas iniciativas e instituições: no curso de "Storia della città e del territorio" no IUAV; na organização da "Fourth International Conference of Urban History" (1995), quando presidente da European Association of Urban History , presidente da Associazione Italiana di Storia Urbana, e como coordenadora do Dottorato di Eccellenza in "Storia dell'architettura e della città, Scienze delle arti, Restauro" da Scuola di Studi Avanzati di Venezia.
As palavras de Calabi, subsistem à descontinuidade criada pelo Atlântico e colocam– se dentro de um horizonte de pesquisa que, apesar de parecer distante e muito diverso, é necessário para restituir a complexidade e o grau de operatividade, e assim a atualidade, do estudo dos fenômenos urbanos.
As temáticas por nós propostas à professora Calabi, não tentam remontar o percurso de sua produção intelectual, mas apresentar aos leitores de língua portuguesa um estímulo à reflexão sobre o ambiente intelectual veneziano, pela ótica de um dos protagonistas.