História do urbanismo / história da cidade
Adalberto Retto e Barbara Boifava: Qual o diferença entre História do urbanismo e história da cidade?
Donatella Calabi: Muito freqüentemente, na linguagem comum e nas práticas de ensino, como também no direito público, os dois termos "história da cidade" e "história do urbanismo" parecem confundir-se. É uma confusão que, em certa medida, acha pressupostos nas dificuldades encontradas pelo urbanismo em reconhecer seu próprio âmbito e especificidades próprias. Da segunda metade do século XIX, alguns manuais, muitos atlas de urbanismo (Cerdá, Sitte, Brinckmann, Lavedan, Piccinato, Morini) colocam o início da sua narração no momento do primeiro manifestar-se da cidade e pretendem encontrar os princípios, as normas, as regras a serem aplicadas para aumentar o bem estar dos indivíduos e da coletividade nas diversas e sucessivas fases da civilidade urbana; encontram as suas próprias fontes na cultura ocidental. A "história da cidade" torna-se, deste modo, um sinônimo de história da civilidade (a civilidade seria civilidade urbana por definição). A "verdadeira" história, a "grande" história, a história da civilidade é história "urbana" (24). O risco é aquele de oferecer um quadro parcial, como quadro total. Esta abordagem (além das definições) não é privada de conseqüências no plano das categorias conceituais. A primeira é que a história urbana é vista como uma parte da história do urbanismo, e também uma das suas questões mais importantes. Entre os dois campos de estudo existe um hiato intelectual e institucional: não reconhecê-lo leva a um descaso da existência de técnicas de pesquisa particulares (inclusive aquelas inerentes à cartografia), e instrumentos que fogem a um único modo de tratar (25).
A "história do urbanismo", se relegada à dimensão redutiva de uma pesquisa sobre materiais de construção, sobre a organização do espaço, sobre o sistema viário e higiênico-sanitário, acaba por ser a reconstrução de uma morfologia urbana em um dado período. Esta abordagem, não implica uma atenção a uma disciplina projetual dotada de seus próprios instrumentos particulares. Significa negligenciar as noções do projeto (econômico e bidimensional) com o qual se regulam os conflitos relativos às rendas fundiárias e construtivas; não leva em consideração os tempos em que amadurece o mecanismo de aproveitamento do solo; substima o fato de que, quando se fala do Medieval ou do Renascimento, os conceitos oitocentistas de unidade e regularidade não apareceram ainda como norma de controle. Se no Quatrocentos e no Quinhentos é impossível entrever os inícios do urbanismo– "ciência política" do século dezenove– é de qualquer forma lícito reconhecer o diferenciar-se de múltiplas estratégias urbanas: as intervenções na cidade são funcionais para construções que aprofundam as suas raízes no aparato institucional e nas estruturas políticas, mas os objetivos não são sempre dedutíveis através dos instrumentos utilizados para alcançá-los. Nesta lógica, é precário também o uso de corretivos terminológicos como aquele (que, de qualquer modo, teve um notável sucesso historiográfico) de "pré-urbanismo" (26). Em definitivo, até que ponto vale a pena nivelar em categorias e disciplinas contemporâneas a riqueza da dinâmica histórica?
AR e BB: E sobre a especificidade das fontes?
DC: A história da cidade é um âmbito no qual confluem ou se sobrepõem mais leituras a partir das fontes que se utilizam. A existência da história da cidade nas faculdades de arquitetura, por exemplo, é um fato relativamente recente e muito pouco aceito ou considerado por aqueles que se ocupam da história política, econômica ou social. Normalmente para estes a História da cidade, é a História das instuições citadinas (o Poder Municipal, os Estados Regionais, os Estados Nacionais, as liberdades, as corporacões...), ou História da economia urbana, das atividades produtivas ou do comércio dentro de um assentamento, ou Histórias de categorias, movimentos e classes sociais.
Por outro lado, é também verdade que a história da arquitetura como a história dos edifícios e das formas teve freqüentemente dificuldades de sair das próprias categorias habituais (feitas de cânones e de atribuições) e negligenciou a cidade entendida como o conjunto de edifícios (e de contrastes).
Mas é também verdade que, sem a confluência de mais leituras, o entrecruzamento e a sobreposição de mais fontes (literárias, documentais, iconográficas, cartográficas, materiais) derivantes de diferentes pontos de vista, não é possível fazer a história urbana.
Uma leitura deste tipo, aplicada a um caso de estudo (um assentamento em um dado período, um bairro, um complexo urbano, um conjunto de cidades), convida, não necessariamente a conhecer todo este enorme patrimônio de conhecimentos para o exemplo estudado, mas a colher para este, as múltiplas possibilidades que as diversas leituras permitem ou sugerem.
Proceder por fragmentos, querendo cobrir um arco temporal longo, indicando percursos de leitura e itinerários de pesquisa – dos escritos filosóficos à iconografia, dos documentos fiscais à arqueologia da construção. Seria preciso dirigir-se sistematicamente a uma série de "especialistas" que, pela sua colocação profissional ou por ter conduzido recentemente e publicado uma pesquisa sobre o tema que nos interessa, sejam reconhecidos como tais. Nem sempre isto é possível; às vezes, é necessário receber os resultados de pesquisas conduzidas em outra sede, aceitar, ou em outras palavras, trabalhar sobre base de fontes "indiretas", ou de "segunda mão", ao invés de trabalhar exclusivamente a partir da coleta de dados originais. É preciso, em suma, estar consciente dos problemas que coloca a própria pesquisa (com as suas dificuldades, as incertezas, as hipóteses formuladas e talvez posteriormente abandonadas, os sucessos e os insucessos de um percurso e obstáculos).
notas
24
Italo Insolera, Europa XIX secolo: ipotesi per una nuova definizione della città, in: A. Caracciolo, cit., p. 123.
25
O que explica também a escarsa difusão tida por algumas iniciativas de estudo da história da cidade, fundamentais do ponto de vista do uso de técnicas relacionadas à configuração do espaço: por exemplo, da grande pesquisa CNRS dirigida por André Chastel sulle Halles [Paris, 1976].
26
Françoise Choay, La città, Utopia e realtà, Torino 1973, I, p. 6.