História local e história comparada (13)
Adalberto Retto e Barbara Boifava: A senhora ressalta recorrentemente a necessidade absoluta de uma "História comparativa". Em um artigo recente, isso é reforçado através das palavras de Bloch (1928), afirmando que "Non esiste conoscenza vera senza una certa tastiera di comparazione". Quais são os limites que poderão ser estabelecidos entre História local e história comparada?
Donatella Calabi: Para a história da cidade, as razões de interesse de uma pesquisa comparada são absolutamente evidentes (14). É justamente este um daqueles casos nos quais – para usar as palavras de Paul Veyne (15) – o recurso à analogia para suprir algumas lacunas de documentação parece ser uma das poucas estradas a serem percorridas: o confronto para fins heurísticos de fatos relativos a determinadas nações ou períodos diferentes torna-se insubstituível. Aqui, o que precisa ser verificado é se seria possível relevar também na configuração do espaço, os traços comuns que emergem em outros setores de atividade; é preciso entender se as diferenças podem ou não serem classificadas como soluções formalmente diferentes para problemas comuns. Traços comuns e diferenças: podem ser interpretados como soluções diversas aos mesmos problemas? Trata-se, desta forma, de colher alguns acontecimentos concretos, nos quais se notam causas materiais semelhantes, objetivos comparáveis, análogas casualidades, conhecendo bem que nem tudo é "típico"; que os "acontecimentos não se reproduzem por espécies, como as plantas". Foi, aliás, Lucièn Febvre que nos recordou que, freqüentemente, parecem existir nos fatos algumas constantes, algumas coerências e episódios contingentes que retornam também em lugares e tempos distantes (16); portanto, querendo estudar um acontecimento singular, não é possível ficar indiferente a uma espécie de generalidade, ao repetir-se de histórias símiles, ou ao menos à possibilidade de verificar uma rede de semelhanças e de contradições, que se entrecruzam (17). Uma vez estudado um espaço particular, não se trata tanto de querer a todo custo encontrar leis e modelos, ou de renunciar-lhes, mas de avaliar o funcionamento do sistema complexo no qual o caso examinado é efetivamente inserido, que parece aliás apresentar-se em uma escala mais ampla daquela inicialmente prevista; tentar não esquecer a relação que algumas "regularidades" mantêm com as "particularidades" que lhes fogem, se torna então, para a História da cidade, um percurso de pesquisa quase obrigatório (18).
AR e BB: E quais os graus de especificidade e analogias?
DC: Freqüentemente, o início da história de um assentamento gira em torno de um ponto de interrogação: aquele do grau de especificidade de um caso conhecido (19). No meu modo de delinear o raciocínio, por exemplo, retorno com freqüência ao caso de Veneza como referência (que estudei em algumas partes de modo detalhado). Da mesma forma, no esforço feito por Tafuri nos seus estudos mais recentes (20), existiam juntos o caso de Veneza e o caso de Roma e as suas diversidades, como ponto de partida.
Quais os caracteres que incidem sobre a destinação dos usos e da arquitetura na reforma quinhentista no duplo sistema de ilhas de São Marco e de Rialto, do lado de cá e do lado de lá do Canal Grande, na metrópole Sereníssima? Até que ponto as decisões tardo-medievais ou de idade moderna que lhe concernem – de revisão do próprio aparato mercantil, de separação dos usos e dos usuários, do redesenho geométrico de alguns lugares, da rearticulação das duas "praças" – são encontradas também em outros episódios? Quando são estudados os espaços de mercado das grandes cidades comerciais européias, por exemplo, o conceito de "limite" – e as práticas que o definem– emerge como condição significativa das decisões de reforma. Mas deveríamos pensar que isto seria intrínseco ao espaço urbano do mercado, ou, ao contrário, sugerido pela natureza dos lugares? No caso de Veneza, o mesmo é ligado à morfologia lagunar e à existência das ilhas que a caracterizam? Existe ou não uma lógica interna à configuração e à tipologia dos espaços de mercado, também diferentes e distantes entre eles, constituída de elementos substancialmente recorrentes na estrutura urbana e, no caso afirmativo, tais elementos recorrentes apresentam também analogias formais, além de destinação de uso? Mas estudos deste tipo apresentam um enorme risco: somente alguns casos se baseiam em uma documentação de arquivo elaborada (ao menos parcialmente) na ótica proposta. Por exemplo, se me refiro novamente aos meus estudos comparativos dos espaços de mercado nas cidades européias ou aqueles dos bairros judeus na Itália, somente para o caso veneziano as deliberações tomadas pelas magistraturas delegadas à transformação dos espaços urbanos de uso coletivo foram examinadas de modo sistemático e a iconografia analisada minuciosamente. A comparação com os outros sujeitos, conduzida com base em informações recolhidas para fins diversos e que na maior parte são de fontes secundárias, é inevitavelmente deformada pela lente de aumento utilizada, que se conhece com maior precisão. Para o "acontecimento particular" as razões das escolhas tomadas podem ser explicadas; pondo à luz analogias e diferenças das "histórias semelhantes" às vezes se deve contentar com a formulação de hipóteses fidedignas (21). Todavia, este é um dos modos possíveis para aceitar o convite de Tafuri "para multiplicar as análises comparadas evitando, juntamente com as generalizações, o estudo limitado somente aos casos pontuais" (22) e para repropô-los a partir de outros indícios. Processos institucionais e de reorganização agiram às vezes dentro do tecido edificado segundo esquemas que apresentam aspectos de "regularidade", que se repetem, mesmo somente de modo grosseiro. As razões econômicas são usualmente comparáveis, quer se trate de um incremento de atividade dentro de espaços que não são capazes de contê-las, quer se trate de conflitos de interesse, ou da vontade de manter a independência econômica e política baseando-se em uma rede de pontos de apoios da federazione. De vez em quando, os modelos organizativos, decorativos, culturais, mudam; a mão-de-obra e as competências freqüentemente migram. Todavia, nestes acontecimentos existem mil variantes. Diversas eram as cidades do Báltico, ou aquelas francesas, ou italianas, ou as espanholas entre o tardo-medieval e os séculos sucessivos (mas o mesmo poderemos dizer para o modelo da cidade romana entre Roma capital e as suas colônias); diferentes eram, pelo menos, o clima, o sítio e a relação com o rio e a viabilidade de acesso. Internamente a elas, a propriedade edilícia é repartida diferentemente entre grandes e pequenos mercados ou entre ente público e privado; o mecanismo de aluguel ou leilão tem um peso enorme nas decisões de renovação (23). Um estudo das soluções específicas adotadas (a construção de uma manufatura edilícia), de praças, de cisternas, loggias, ou a demolição de alpendres ou de recintos precários) se impõe a quem gostaria de refletir sobre as estratégias urbanas dos grandes centros da economia mundial na Idade moderna. E o complexo no qual os casos examinados singularmente se inserem, torna-se aquele constituído da rede das suas próprias relações.
notas
13
Donatella Calabi, Il mercato e la città, Venezia, Marsilio 1993, Introduzione; em vias de publicação numa versão atualizada em inglês: The market and the city, Leicester, Scholar Press 2003, Introduction.
14
Manfredo Tafuri, Ricerca del Rinascimento, Torino 1992, p. 127: "Ampliare lo spettro delle analisi verificabili" é um apelo lançado no capítulo em que o autor trabalha com analogias e diferenças nas estratégias urbanas das cidades italianas entre os séculos XV e XVI. Para o período medieval, a falta de estudos comparativos sobre a configuraçao do espaço urbano é lamentado por Jacques Heers, quando se propõe de levar adiante uma leitura deste tipo em: La ville au Moyen Age, Paris 1980.
15
Paul Veyne, Comment on écrit l'histoire, Paris 1978, p. 85.
16
Lucien Febvre, Problemi di metodo storico, Torino 1976 2, p. 182.
17
Giovanni Levi, Villaggi, in "Quaderni storici", n°46, aprile 1981.
18
Michel De Certeau, L'operation historique, in: Jacques Le Goff e Pierre Nora, Faire de l'histoire, Paris 1974, I, p. 32.
19
A questão estava já presente nas primeiras hipóteses formuladas com Paolo Morachiello em 1980, isto é, na fase de impostação do trabalho analítico que tínhamos conduzido sobre a área rialtina, que não foi deixado de lado no momento da publicação [Rialto: le fabbriche e il ponte, Torino 1987], apesar do objeto da pesquisa já estar circunscrito.
20
Manfredo Tafuri, cit.
21
Fernand Braudel, Civiltà e imperi del Mediterraneo nell'età di Filippo II, Torino 1976, I, p. 330.
22
M.anfredo Tafuri, Ricerca del Rinascimento, Torino 1992, p. 90.
23
Fritz Rörig, cit., cap. 5.