Arqtextos: O início de sua atividade editorial, ao que parece, foi na revista Óculum. Como começa seu interesse pela produção editorial de arquitetura? Fale um pouco a respeito da revista. Como surgiu? Quem foram os fundadores? Quanto tempo durou? Como funcionava? Qual a filosofia editorial?
Abílio Guerra: Realmente o início da minha carreira editorial foi na revista Óculum. O grupo inicial da revista era grande e formado basicamente por alunos da FAU PUC-Campinas e arquitetos recém-formados na mesma escola. Eu fazia parte do segundo time. As primeiras reuniões aconteceram em 1984, eu creio, convocadas por alguns alunos do grêmio da escola. Como é natural nesse tipo de iniciativa, com o passar das reuniões e a constatação das imensas dificuldades colocadas pela empreitada, o grupo foi diminuindo até se estabilizar nos sete membros do Conselho Editorial: Abílio Guerra, Álvaro Cunha, Francisco Spadoni, Luiz Fernando de Almeida, Paulo Roberto Gaia Dizioli, Renato Anelli e Tácito Carvalho. A lembrança que tenho das primeiras reuniões é muito esgarçada, mas me recordo que a pauta era sempre grande e diversificada: nome da publicação, política editorial, estatuto jurídico, recursos financeiros, matérias a publicar, etc. Era tudo muito confuso pois nenhum de nós tinha qualquer experiência em publicações.
As histórias que eu teria para contar dessa época são quase todas muito educativas, mas me restrinjo a duas, que ilustram o grau de despreparo, mas também de entusiasmo, que contaminava a todos nós. Um pequeno grupo se deslocou até São Paulo, para solicitar um patrocínio da Metal Leve. Para nossa surpresa, fomos recebidos pessoalmente pelo Sr. José Mindlin, na sala de onde capitaneava a empresa, uma das mais importantes do ramo metalúrgico naquele momento. Homem de uma cultura impressionante, um dos maiores apoiadores da cultura brasileira, Mindlin nos tratou como “gente grande”, nos prometeu algum dinheiro e nos colocou em contato com outra empresa, a Villares, que acabou também patrocinando o número. Recordo muito envergonhado que, ao mostrarmos entusiasmados o boneco da revista, o Sr. José nos perguntou sobre a pauta dos próximos números, recebendo de nós um silêncio constrangido. E ele emendou uma outra pergunta, que reverbera até hoje em minha mente: “Como os senhores pretendem que a iniciativa dê certo se nem sabem o que vão fazer a seguir?”
A segunda história é ainda mais patética. A revista foi inteiramente produzida na raça, com um monte de improvisos. O trabalho de past-up naquela época era muito artesanal, mas o nosso era ainda mais: não tínhamos nada padronizado e cada página era feita sobre uma base de papel cartão, que recebia marcações com grafite azul (cor que não é registrada no fotolito), que serviam de guias para a colagem das colunas de texto recortadas e tarjas negras que serviriam como “janelas” para fotografias e desenhos. Quando tivemos certeza que o número 1 da revista Óculum era inevitável, marcamos o lançamento da revista para o Museu de Arte Moderna de Campinas, em agosto de 1985. Como não tínhamos nenhuma experiência e tudo estava dando certo, não achamos nenhum problema em contratar os serviços de uma gráfica que jamais tinha impresso algo mais sofisticado do que notas fiscais, cartões de visita e convites de casamento... Na manhã do dia de lançamento nenhuma revista estava pronta! Todo o grupo invadiu a gráfica e aprendemos rapidamente a imprimir, montar, grampear e refilar. Com quase uma hora de atraso, com os garçons já servindo o vinho, chegamos os sete carregando nos braços os primeiros exemplares da revista. Conforme as revistas foram mudando de mãos, a tinta fresca da capa aonde o preto era predominante foi sujando as roupas dos convidados. Mais constrangimento, agora mais ruidoso, pois as gargalhadas foram inevitáveis.
Lembro desse período com grande emoção, pois foi determinante na minha vida. Antes de ser convocado para as reuniões, não me recordo de um especial interesse pela área editorial, hoje uma das principais atividades profissionais que exerço. Com toda a inexperiência, aquele grupo de jovens acabou produzindo uma revista muito desequilibrada, mas que trazia em suas páginas Éolo Maia, Sylvio de Podestá, Willi Bolle, Nicolau Sevcenko, Marco do Valle, que se tornaram pessoas importantes em várias áreas da cultura brasileira. Alguns dos participantes da Óculum original são até hoje grandes amigos e com eles desenvolvo trabalhos profissionais e acadêmicos. Como já havia previsto José Mindlin, a revista não tinha grande futuro, mas foi formadora de um grupo de pessoas. Tentamos ainda lançar o número dois, mas não conseguimos.
O número dois só apareceria alguns anos depois, em 1992, quanto eu assumi, em companhia de Silvana Romano, a editoria da revista, já na condição de professor da FAU PUC-Campinas, que se tornou co-editora da revista. Até 1997 publicamos mais sete volumes, alguns com numeração dupla (2, 3, 4, 5/6, 7/8, 9 e 10/11). Como se tratava de um projeto pessoal, a trajetória da revista ao longo dos anos espelha minha própria trajetória intelectual, com as preferências, predileções, proximidades intelectuais e amizades de cada momento. Quase sempre contei com a colaboração mais próxima de um ou mais colegas que, invariavelmente, eram creditados como editores assistentes quando o número ficava pronto – é o caso de Anne Marie Sumner, Denio Benfatti, Francisco Spadoni, Luis Espallargas, Marcos Tognon, Maurício Masson, Paul Meurs, Paulo Dizioli e Renato Anelli.
A segunda fase da Óculum pode ser dividida em dois momentos. O primeiro é dedicado à crítica e história da arquitetura brasileira e internacional, contou a presença de articulistas importantes, como é o caso dos brasileiros Agnaldo Farias, Carlos Eduardo Comas, Jussara Derenji, Maria Beatriz de Camargo Aranha, Nabil Bonduki, Silvana Barbosa Rubino, Sophia Silva Telles, Vladimir Bartalini, dentre outros. Os convidados estrangeiros eram também muito expressivos, constando os nomes de Adrián Gorelik, Fernando Álvarez Prozorovich, Françoise Fromonot, Gérard Monnier, Giancarlo de Carlo, Guido Zucconi, Jean-Pierre Le Dantec, Josep Quetglas, Massimo Carmassi, Michel Vernes, Moshe Safdie, Nuno Portas, Pancho Liernur e Peter Eisenman. O segundo momento, que corresponde aos dois últimos volumes publicados, é mais voltado para a discussão dos pressupostos do urbanismo contemporâneo, e acabou resultando na vinda ao Brasil do arquiteto francês Christian de Portzamparc e do arquiteto holandês Jo Coenen.
A: Além de editor, tem ou teve alguma outra atividade ligada à arquitetura (didática, projetual, etc.)? Tem livros ou projetos publicados? Tem outras atividades?
AG: Sou professor da FAU PUC-Campinas desde 1987, aonde sou titular das disciplinas Fundamentos Estéticos da Arquitetura e do Urbanismo e Trabalho Final de Graduação. Sou sócio da Romano Guerra Editora, que tem um catálogo de quatro livros publicados: Rino Levi – arquitetura e cidade (Renato Anelli, Abilio Guerra e Nelson Kon, 2001), Paulo Mendes da Rocha (Helio Piñón, 2002), Metrópole (Abilio Guerra, 2003) e Grupo Arquitetura Nova (Ana Paula Koury, 2003). Tenho idealizado e organizado, sempre associado a Silvana Romano, alguns eventos envolvendo convidados internacionais, como as Salas Especiais “Jo Coenen / Maastricht” e “Alberto Varas / Natural-Artificial” nas 3ª e 4ª Bienais de Arquitetura de São Paulo da Fundação Bienal (1997 e 1999/2000), o “Workshop Rios Urbanos”, promovido pelo Consulado da Holanda (2003), e o “Fórum de Debates” da 5ª Bienal de Arquitetura de São Paulo (2003).