Arqtextos: Qual sua opinião sobre o mercado editorial brasileiro de arquitetura?
Abílio Guerra: Até uma década atrás, a produção de livros de arquitetura no Brasil era muito pequena, com a atuação de dois segmentos muito distintos: um, que primava por uma situação de semi-profissionalismo de pessoas muito bem intencionadas, que mantinham uma relação orgânica com a produção de arquitetura, mas sem conhecimento aprofundado de vários aspectos do metier; outro, habitado por editoras profissionais, que tomavam a arquitetura como um campo menor, no qual faziam investidas tímidas e pouco arriscadas. O resultado disso era uma produção quantitativamente pouco expressiva e qualitativamente muito desigual. No que diz respeito às traduções, temos lacunas graves até hoje, com livros fundamentais como Espaço, tempo e arquitetura, de Sigfried Giedion, inéditos até hoje.
A situação mudou de forma substancial com a entrada no mercado da editora Cosac & Naify. A editora introduziu procedimentos inéditos na área editorial de arte e cultura no Brasil, tomando o livro como um produto sintético, ao mesmo tempo cultural e industrial. A altíssima qualidade dos livros da editora criaram um novo nível de exigência e obrigou as outras editoras a se posicionarem diante da nova situação. No que me diz respeito, eu acredito que a qualidade que nossa editora conseguiu nos livros produzidos até o momento, em especial o livro sobre Rino Levi, é tributário de vários livros feitos com muita competência – o Oswaldo A. Bratke da Pró-Editores, o Jorge Machado Moreira do Centro de Arquitetura e Urbanismo do Rio de Janeiro, para citar alguns –, mas seguramente foram os livros da Cosac & Naify, em especial o belíssimo Paulo Mendes da Rocha e toda a coleção Espaços da arte brasileira, as nossas principais balizas.
Contudo, o mercado pressupõe o comprador de livros de arquitetura, um comprador quase sempre arquiteto e ainda tímido diante da oferta crescente de publicações. Realmente aqui se encontra o gargalo, a fonte das dificuldades atuais do setor, pois a demanda reprimida leva a tiragens pequenas e estas a preços altos. Como enfrentar a situação é um problema que nos aflige.
A: Hoje, a produção de material teórico sobre arquitetura brasileira parece ser até maior que a produção prática de boa qualidade. Parece ser um momento de indefinição e crise, semelhante ao que foi vivido pela Europa pelo final dos anos 70 e início dos 80. O que pensa sobre isso? Estaria havendo uma substituição da atividade prática pela teórica como forma de compensação?
AG: Não há como negar que o atual momento vivido pela categoria – enorme dificuldade de colocação no mercado tanto como empregado como profissional liberal, baixos salários e rendimentos, status social da profissão em baixa, etc. – tem levado a muitos jovens arquitetos a optarem pela carreira acadêmica. Temos então uma situação desconfortável, com uma legião de arquitetos sem experiência prática abarrotando os bancos escolares dos cursos de pós, prorrogando os anos de estudo, postergando a entrada no mercado de trabalho. O que, na maior parte das vezes, só poderá acontecer na condição de professores. Tal realidade tem como subproduto ao menos duas conseqüências maléficas: dificulta muito a identificação dos professores realmente vocacionados e rebaixa o valor do trabalho do docente com uma super-oferta de pessoas oficialmente qualificadas, mas que na realidade só podem dar aulas. Não entendo, portanto, a situação como uma forma de compensação (o que implicaria em algum controle da vontade individual), mas como uma imposição estrutural oriunda da atual inserção de nossa área de atividade nos contextos cultural e econômico do Brasil atual.
Mas eu gostaria de deixar claro que, na minha opinião, é muito difícil imaginar que uma produção teórica de boa qualidade possa ter uma relevância social efetiva sem uma produção prática igualmente qualificada. A arquitetura é um ramo de atividade muito complexo, com raízes fincadas na cultura, na arte, na economia financeira e anímica da coletividade. A produção arquitetônica e urbanística de boa qualidade é tributária de uma cadeia que envolve escolas, professores, teóricos, pesquisas, publicações, indústria, especialistas diversos, clientes, etc. A produção teórica que não tem vasos comunicantes, mesmo que tênues, com a produção, que não visa de alguma forma o estabelecimento do bom habitat para os homens, gira em falso como aquelas máquinas non sense de Marcel Duchámp. Ou seja, se quantitativamente temos uma produção livresca mais expressiva do que a edificada – estou considerando que em sua pergunta há uma afirmação nesse sentido e que ela é verdadeira –, podemos estar diante de uma situação alarmante.
Mas eu não creio que estejamos vivendo uma crise de talentos. Conheço diversos jovens arquitetos muito bons, que estão fazendo coisas interessantes em escalas modestas, com orçamentos muito restritivos. Creio que o problema está no elo de transmissão entre arquiteto-sociedade, que permite ao empreendedor prescindir de concepções arquitetônicas e urbanísticas mais adequadas do ponto de vista sócio-cultural. Creio que aqui há algo a ser feito e entendo que o papel das associações da classe é fundamental. Um grande desafio, que precisa de gente culturalmente preparada.
A: Como vê a verdadeira enxurrada de material sobre arquitetura brasileira que tem sido publicado recentemente?
AG: A mudança da ordem de grandeza do número de publicações com o tema arquitetura que chegam às livrarias é fruto, eu creio, do crescimento geométrico das escolas de arquitetura nas últimas três décadas. De uma situação estável de pouco mais de uma dezena até os anos 70, chegamos à impressionante cifra atual de quase duas centenas! No vácuo, quase duas dezenas de cursos de pós-graduação se estabeleceram em vários Estados, preparando os professores necessários para os novos cursos. O desaparelhamento intelectual e material na maior parte destes cursos para um enfrentamento consistente dos problemas contemporâneos, teve como resultado um desequilíbrio no foco das pesquisas, engordando a lista dos trabalhos de história e de crítica. Estes trabalhos – infelizmente, em sua maioria, inconsistentes nos aspectos metodológicos – voltam-se quase que exclusivamente para o universo acadêmico, o que explica uma crescente demanda para encontros diversos (Simpósios, Congressos, Seminários, etc.) e a mencionada “enxurrada” de títulos publicados. Creio que parte do sucesso do Portal Vitruvius pode ser tributada a esse fenômeno. Suponho que estamos aprendendo a fazer tudo isso – pesquisa, encontros, publicações –, mas é certo que o incremento quantitativo vai resultar na melhoria qualitativa, o que já está acontecendo visivelmente.