Eduardo Costa: Nelson, a primeira questão é relativa ao Laboratório de Recursos Audiovisuais da FAUUSP, coordenado pelo Cristiano Mascaro. Gostaríamos que você falasse um pouco dessa relação de fotografia de cidade que Cristiano, João Musa e Raul Garcez tentavam introduzir no ensino da FAU. Como essa experiência entra, hoje, em seu trabalho?
Nelson Kon: Quando entrei na FAU, não tinha o menor contato com a fotografia, não sabia do que se tratava, não tinha nenhum interesse, sequer uma câmera. Apresentado ao espaço do laboratório, que é realmente incrível, interessei-me e inscrevi-me no curso básico extracurricular, logo no primeiro semestre. Não consegui a vaga. Eu não tinha câmera e a seleção priorizava as pessoas mais próximas do final do curso, e só então preenchiam as vagas restantes com os calouros. Mesmo assim, resolvi freqüentar o laboratório para aprender alguma coisa. Acho que eu gostava mais do laboratório do que de fotografar. Freqüentando o laboratório, tive contato com pessoas incríveis. Os fotógrafos do laboratório eram: João Musa, Raul Garcez e Sérgio Burghi. Outros funcionários eram: David, Fábio Sampaio (que depois se tornou meu sócio), Nilson, Toninho, Odair (Nego Ló), Roberto Bogo, Abelardo, Zé Eduardo. Cristiano Mascaro era o chefe do Laboratório de Recursos Audiovisuais, do qual o laboratório fotográfico fazia parte.
Na época, havia ali um grande embate e o Cristiano tentava administrar. Os fotógrafos do laboratório viam a fotografia como um instrumento para os arquitetos descobrirem a cidade e incrementarem seu repertório projetual. Muitos professores acreditavam que a função do laboratório era fotografar maquetes e preparar diapositivos para as aulas, nada mais que isso. Havia um conflito dos fotógrafos com a direção da escola e as chefias dos departamentos, tentando dar um outro status para a fotografia. O Cristiano, que, certamente, concordava com o ponto de vista dos fotógrafos, tentava, no entanto, abrandar o ímpeto do pessoal do laboratório e resolver o embate com mais diálogo e menos confronto. Estou falando isso, talvez um pouco inconseqüentemente, porque eu era estudante e não sabia exatamente o que acontecia nos departamentos.
Apesar dessa visão estreita da direção da escola, conseguiu-se fazer alguma coisa interessante: os alunos mais envolvidos usavam a fotografia como um aparato de linguagem nos projetos das disciplinas, mas também em trabalhos pessoais interessantes que, às vezes, eram, inclusive, exibidos no Salão Caramelo ou no Museu. Acredito que grande parte dos alunos sequer percebeu este embate. Havia meia dúzia de pessoas muito ligadas ao laboratório e os fotógrafos tinham grande disponibilidade em ajudar. Por exemplo, uns cinco ou seis alunos, incluindo três que, mais tarde, tornaram-se fotógrafos profissionais – eu, Patrícia di Filippi e Francisco Otoni – fizemos um curso de sensitometria com Raul Garcez, sentados em volta de uma mesa do laboratório durante o horário de almoço – um ótimo curso! Sensitometria é o estudo da resposta dos materiais fotosensíveis à luz e ao processamento químico. Adorei o curso! Tinha um grande interesse por estas questões técnicas e, apesar de passar longe das salas de aula da FAU, era muito estudioso.
Eu era fã do Raul Garcez e do João Musa. Quando os conflitos com a direção da escola ficaram insuportáveis, o João Musa saiu da FAU. Ele já tinha alguns clientes e montou um negócio com o Raul, que continuou trabalhando na FAU. Depois de algum tempo, o Raul também saiu. Eles foram os meus primeiros e únicos patrões e eu fui o primeiro assistente deles.
EC: Aproveitando essa questão técnica, vocês tinham contato com manuais de fotografia? Isso circulava pela FAU?
NK: Manuais de fotografia básica circulavam, sim. Eu dava uma olhada em alguns e, eventualmente, consultava assuntos específicos. Havia aquela coleção incrível da Time-Life (2), em vários volumes. Em relação à fotografia de arquitetura, na biblioteca da FAU tinha uns oito, dez livros, entre monografias de autor e livros mais técnicos, todos muito antigos, desatualizados. Estive recentemente na biblioteca e encontrei, nas fichas de empréstimo desses livros, o nome do Cristiano (Mascaro) e o meu embaixo – só nós dois pegamos os livros. Vinte anos depois, continuam lá os nomes. Só os nossos. Era um assunto que interessava a pouca gente e talvez as pessoas interessadas pelo assunto não liam, gostavam mais de fotografar do que ler.
Eu me sentia desamparado, não havia referências bibliográficas nem interlocutores acessíveis. Parece-me que houve um hiato na profissão de fotógrafo de arquitetura. Havia vários profissionais nas décadas de 1940, 1950 e parte de 1960 e, então, sumiram. Cristiano Mascaro fotografou depois disso, mas muito mais interessado no seu trabalho pessoal do que nos projetos de arquitetura. Quando ele fotografa edifícios, o resultado é sempre fantástico, mas o principal interesse dele é outro: é o trabalho de autor. Então, existe este hiato do meio da década de 1960 até o meio da década de 1980 – de 20 anos – na fotografia de arquitetura. Eu entrei na faculdade em 1979 e formei-me em 1985. Era um deserto, eu não tinha referência alguma, não tinha com quem conversar, não havia o que ler. Os arquitetos fotografavam seus próprios projetos ou pediam a um estagiário.
Logo depois, surge a internet. Eu entrei muito precocemente na internet porque tinha um irmão que estudava isso. Acessávamos as livrarias virtuais ainda antes da Web, a interface gráfica – navegávamos em modo texto, pela Telnet. Assim, descobri que havia uma razoável bibliografia sobre o tema, tanto técnica como trabalhos autorais e monografias sobre vários fotógrafos. Aí, senti-me um pouco amparado. Na época da FAU, nada. Havia a revista GA – Global Architecture, japonesa, uma revista caríssima! De vez em quando, comprávamos alguns números fazendo vaquinha... O editor (3) é um fotógrafo. Tecnicamente, era uma coisa muito impressionante. Ele fotografava com cromos 8x10 polegadas (20 x 25 cm). Fui muito influenciado pela revista GA. Quando comecei a fotografar, queria fotografar como ele. Hoje em dia, ele parece estar um pouco estagnado, mas, de toda forma, acho que moldou uma geração, um jeito de fotografar.
notas
2
Life Library of Photography. New York: Time-Life Books, 1971.
3
Yukio Futagawa.