Heloisa Mendes Pereira: O motivo desse encontro e entrevista advém da minha pesquisa de mestrado sobre a sua arquitetura residencial com foco nos desenhos do seu acervo pessoal de trabalho que está sob tutela da Biblioteca da Área de Arquitetura e Engenharia da Unicamp. O interesse nesse estudo se origina tanto por uma vontade própria de pesquisar a sua arquitetura, que é sem dúvida uma importante contribuição para o campo da arquitetura brasileira e paulista, como pela oportunidade de investigar esse material inédito e, muito provavelmente, dotado de informações únicas, senão inéditas, sobre a sua obra. Uma delas é a representatividade do programa residencial dentro do conjunto, tanto pela quantidade como pela expressiva variedade plástica e formal. Por isso o foco dos questionamentos que serão abordados nessa entrevista é sobre assuntos pertinentes a sua arquitetura, referências, conceitos, acervo e alguns projetos residenciais específicos.
Decio Tozzi: Está certo, vamos lá então.
HMP: A primeira questão é, sendo a sua formação pautada no viés da arquitetura moderna sobre o qual temos uma ampla gama de autores e teóricos que abordam o assunto e apontam diversos preceitos e características, quais seriam de fato os preceitos e características desse movimento que você, Decio Tozzi, associou em sua obra?
DT: Primeiro ponto que nos leva a adotar uma arquitetura diferente da tradicional é a questão da representatividade. Porque sempre a arquitetura denotou ou conotou uma expressão do que ela quer dizer e, geralmente, é poder. A arquitetura conota poder, dominação, superioridade, como os eixos extremamente rígidos do academicismo, parece que a arquitetura do mundo até um determinado momento era visto só como um documento quando era uma representação de poder, e de fato se você pega os livros de arquitetura só tem aquelas grandes obras, não tem aquela pequena habitação popular. Então a primeira coisa a se anular desse conceito é que a arquitetura não deve significar uma ocorrência no terreno, e sim uma resposta a vida humana, os espaços são correspondentes a necessidade. A primeira necessidade mais premente é o abrigo, a sombra, a arquitetura deve ser abrigo e com isso ela preserva a vida humana. Mas não é só isso, no nosso trabalho que sempre foi assim querendo questionar, buscar alguma coisa que ainda não tinha sido colocado, ou querendo eliminar conceitos antigos para criar novos, a gente sempre procura ver o que tem para frente na sociedade, ao mesmo tempo em que ela indica algum caminho para tanto. Então você vê por exemplo a organização dos espaços de uma casa, você vai ver a história, antigamente, a casa era dividida entre salas, corredores, quartos e etc... Então tinha uma hierarquia de espaços, que refletia o que acontecia naquele momento, uma verdade social que representava aquela sociedade em classes diferentes. Isso foi uma das desconstruções que a arquitetura moderna, fez da reinterpretação dos espaços em função da reinterpretação da relação entre as pessoas. Então o que eram os espaços autoritários da arquitetura anterior, acadêmica neoclássica e tal, na arquitetura moderna mudou. Você vê que o corredor mesmo foi acabando, quer dizer quase que a casa é uma coisa só! Na arquitetura internacional e brasileira, principalmente na paulista, eliminam completamente estes establichiments, mistura tudo, sem preconceitos. Então eu acho que arquitetura moderna basicamente elimina os preconceitos, e a minha pesquisa foi nesse sentido de ir contra os preconceitos e buscar incorporar como era a vida moderna, porque a sociedade era moderna, mas estava vivendo em espaço antigos...
HMP: Ultrapassados.
DT: Sim, então esse ajuste tinha que ser feito, daí que surge esse movimento moderno da arquitetura com Le Corbusier e tantos outros. Já em Frank Lloyd Wright não era assim, não tinha esse cunho social. Agora no Le Corbusier e no pessoal da América Latina era bem claro isso, na arquitetura paulista então.
HMP: É mesmo. Inclusive é um pensamento bastante difundido a existência de uma arquitetura moderna brasileira, a que você atribui essa distinção da arquitetura moderna para uma arquitetura moderna brasileira?
DT: Isso nos textos do Oscar (Niemeyer) fica bem claro, para ele são as curvas, não é? A curva da montanha, das mulheres... É bonito isso, mas não é só isso, eu acho que na realidade a arquitetura paulista tem uma respostas mais direta para essa questão e que remete mesmo aos exemplares, você vê que a ideia era diluir aquela relação direta de espaço e sociedade, que na anterior era petrificada. Então a ideia era procurar uma interpretação, uma nova relação de espacialidade da arquitetura e uma nova sociedade.
HMP: Entendi, então esse é que podemos considerar esse diferencial da arquitetura moderna brasileira para a arquitetura internacional desse mesmo movimento.
DT: Sim, principalmente no âmbito paulista, pois a carioca não se preocupou muito com isso. Eles fizeram todas essas grandes obras modernas, mas que o conteúdo programático em si não era moderno. Já na arquitetura paulista isso fica bem claro, o fundamental era o conteúdo programático, era mexer nele e a partir dele encontrar uma nova espacialização, e aí a partir disso cada um faz a sua arquitetura... A forma é social e o desenho é individual (2).
HMP: Realmente, muitos autores e até mesmo arquitetos apontam essa diferença entre a escola paulista e a carioca. Hoje também vemos algumas pesquisas que apontam outras linhas dentro da arquitetura moderna brasileira, não necessariamente com a mesma amplitude e influência da escola carioca ou paulista, mas condutas particulares de arquitetos que são consideradas paralelas ao movimento, mostrando que ele não foi tão hegemônico como já se pensou. Você acha que sua obra pode ser associada a essa ideia de um paralelismo (3) dentro do movimento moderno brasileiro, ou você se coloca como fiel a alguma escola?
DT: Não, cada um procura ser o mais fiel possível, mas tem a sua personalidade. Então como eu já comentei na outra resposta, você encontra o mesmo núcleo da forma, mas são expressões diferentes.
HMP: Certo, e que outras referências de linguagens você adotou, tanto na própria arquitetura como nas artes em geral que você sempre mostrou ter uma forte ligação.
DT: O brutalismo na arte, aí que começou tudo. E daí uma forte referência do brutalismo na arquitetura é o casal Smithson.
HMP: Com certeza! Então você se coloca como um arquiteto moderno e brutalista? A gente observa um certo preconceito com o termo brutalista.
DT: Sim! Realmente o termo não é muito bem aceito não, mas eu não tenho nada contra ele, eu estou muito mais preocupado com o conteúdo que ele representa. A gente pode chamar de qualquer outra coisa desde que se entenda o conteúdo, que é de se produzir uma arquitetura na qual a ética e a estética dialogam. Entende?
notas
2
Essa frase já fora empregada por Decio Tozzi em sua tese de mestrado (1981), na qual ele aponta como sendo uma citação de Louis Kahn.
3
Termo adotado por Sérgio Marques, a partir de suas discussões com Carlos E. D. Comas, e aqui descrito pela autora da entrevista como: uma referência a arquitetos cuja atuação se insere no movimento moderno, mas não no seu centro, se desenvolvendo as suas margens, adotando critérios semelhantes a partir de reflexões independentes e/ou agregando outras práticas e conceitos.