Heloisa Mendes Pereira: Bom então vamos conversar sobre algumas das que você fez e eu adotei como estudo de caso para a pesquisa. A primeira casa é a Carlos Pereira Paschoal que foi o seu primeiro projeto residencial e mesmo da carreira que foi construído.
Decio Tozzi: Ah sim, esse projeto surgiu quando eu fazia algum trabalho em Sorocaba não me lembro bem, relacionado a indústria para um cliente que era conhecido do Carlos e disse para mim “Ah o SR Carlos quer falar com você” e eu disse pode marcar, e lá em Sorocaba começou assim no boca a boca e de repente começaram a dizer a o Decio Tozzi virou o arquiteto aqui da cidade. Mas não era, né. Eu fiz três ou quatro casas lá.
HMP: Sim, a Carlos Pereira Paschoal, a Paco, a Decio Barbosa Santos...
DT: E a Eduardo Vieira, são quatro mesmo. Sendo que a do Carlos Pereira Paschoal tem uma influência “nieymariana”, um plano e embaixo a liberdade de relação. Agora as outras... a do Decio Barbosa Santos é bem casa urbana, de bairro.
HMP: Um lote pequeno de esquina, não é? Assim como a Eduardo.
DT: Essa eu gosto, é uma barca suspensa, bem sutil, leve.
HMP: Ah sim, sim! E na Pereira Paschoal a inspiração veio da paisagem?
DT: Isso mesmo, foram duas coisas a primeira é a implantação em patamares voltada para o vale. E a segunda o desenho do objeto, aquele desenho modulado que você pode articular os espaços embaixo. Então dava contradição entre o modular industrial e a paisagem natural. Mas tem uma leveza na casa, porque não ficou uma testeira chapada opaca... Ficou uma testeira com várias pontinhas assim (mostra com as mãos o desenho de pérgolas no ar), vamos dizer que ficou uma “testeira diáfana”! Olha, anota isso aí.
HMP: Anotadíssimo!
[risos]
DT: Essa nunca tinha ocorrido. Uma testeira diáfana, é uma testeira que não existe e ao mesmo tempo é a testeira.
HMP: Sim. E o senhor saberia me dizer se nesse projeto houve a necessidade de adaptações do original? Pelo que eu pude observar dos desenhos me parece que não.
DT: Não, não. Ele fez depois uma casa para a filha dele também nesse terreno, mas foi um volume a parte sem conexão direta com a casa.
HMP: Certo, e na residência Carvalhal, você comentou comigo que você e a Carmen tinham um relacionamento...
DT: É, a Carmen e eu estávamos envolvidos, ela era uma pessoa com posses e que queria uma casa na beira da represa.
HMP: Entendi, e qual foi o programa que ela te solicitou? Você comentou já que era algo mais tradicional.
DT: É, o solicitado pela Carmen não era um programa progressista, era bem tradicional e isso se refletiu até na organização espacial com os quartos separados, o serviço no canto, o estar centralizado. Mas aí na forma eu procurei inovar, daí ficou uma forma nova, mas com um conteúdo antigo.
HMP: Sim, mas refletia muito o que o cliente queria, a especificidade da situação.
DT: É a ênfase da composição arquitetura nesse projeto acabou não sendo conteúdo e sim na forma em relação a paisagem. Como eu já disse a gente precisa fazer o novo com alguma prospecção, e nem sempre a prospecção ela vai ser no conteúdo, isso pode variar pois a casa representa também o cliente.
HMP: A mesma coisa a gente pode pensar na Paschoal né, de que a ênfase foi mais na forma que no conteúdo.
DT: Sim são formas novas com um conteúdo tradicional.
HMP: Certo, na casa da Carmen a presença do tijolinho a vista é muito marcante, teve algum motivo específico?
DT: Olha a casa da Carmen era bem de interior, logo a mão de obra disponível era mais restrita, não dava para propor soluções técnicas mais avançadas. Então é uma técnica bem tradicional, só mantendo sempre a ideia da verdade material, o tijolinho aparente era uma técnica disponível e condizente também com a composição da casa. A cor do tijolo também se integra bem a ideia da topografia e paisagem.
HMP: Verdade.
DT: É, a piscina foi colocada na parte de trás por questões de privacidade e também de luz. Inclusive ela fez um quiosque de apoio e tiveram a delicadeza de não colocar em frente ao volume da casa, ele é deslocado sabe. De modo que a arquitetura se manteve.
HMP: Sim! E essa casa ela é quase que uma toca, acaba que quando você escava o terreno para inserir a construção ela ganha também essa privacidade, conforto térmico...
DT: Exatamente, fica semienterrada, e ali ela recebe toda a proteção, mantém a vista para o vale e o teto dela vira terreno. A Carmen optou por não fazer o teto como jardim, mas a intenção fica ali.
HMP: Fica sim. Teve alguma outra fonte de inspiração para essa casa ou é mais a paisagem mesmo?
DT: Olha, talvez o Oscar estivesse certo e possa ter alguma inspiração nas curvas da mulher amada também, ela era minha namorada na época.
[risos]
HMP: Verdade. Você até escreveu alguns versos sobre essa residência. E residência Geraldo Abbondanza, qual foi a inspiração?
DT: Aí é a ideia da cabana, um resgata da cabana de praia. Uma grande cobertura com os espaços embaixo organizados de forma livre.
HMP: Certo, e bem centralizada está a lareira, não é?
DT: Isso, a lareira é o aconchego do lar. E aí eu não queria nessa casa fazer dois andares, por isso eu fiz esse telhado inclinado alto que favorece a ventilação e do lado mais alto tem os quartos elevados interligados por uma passarela.
HMP: E essa passarela e também dialoga com a ideia de uma transição entre a rua e a praia.
DT: Exatamente, dá essa continuidade do espaço. A casa é quase que uma conexão entre essas duas diferentes paisagens, configurando um espaço fluído, contínuo, que liga a rua e o mar.
HMP: Sim, e na casa do Claudio no Guarujá, essa foi a última residência que você projetou e construiu, ela pode ser considerada como uma síntese da sua arquitetura?
DT: Olha eu não vejo assim, ela é mais uma casa projetada para um determinado lugar, com um determinado cliente e programa, e que foi interpretado da melhor forma possível. E aquela subidinha dela não só é boa para dar visibilidade e conexão com o entorno como também para ser usada como espaço de máquinas sabe. Ali tem caldeira, máquinas que se não fizesse esse meio nível teria que colocar na terra, e ali muro de arrimo ia ter infiltração seria um desastre. E aí subimos e foi ótimo! Eu adorei aquilo ali, tanto que para chegar no pavimento superior você sobe ainda uma escadinha. Aquela casa é algo bastante sensível.
HMP: É mesmo, inclusive perguntei se tinha alguma ideia de síntese nela porque ela é de uma singularidade, parece simples, mas quando a gente começa a olhar essa simplicidade é extremamente rica de significados.
DT: Eu diria que ela não é supérflua, ela é essencial e na sua essência ela é clara e por isso parece simples. É uma trama de significados.
HMP: Sim. Sobre esses significados a abertura circular da laje ela pode ser interpretada como um óculo?
DT: Certamente, ele traz leveza, luz, e também o espaço ali não fica preso! Amplia o espaço. A casa do Claudio no Guarujá, é num condomínio com uma série de pequenos lotes configurando um bairro um pouco afastado da praia e no sopé da montanha, então para poder desfrutar dessas duas vistas eu elevei a casa, dando visibilidade para o vazio do mar, não necessariamente o mar, mas a sua imensidão vazia no horizonte, e aí abri a laje de modo que dá pra ver ainda mais a montanha. E essa abertura também é redonda, curva, como a montanha, criando então essa ligação com o entorno. É como se esse óculo fosse um elemento intermediário, visual, entre a casa e a montanha, mesmo com o próprio céu.
HMP: Entendi. Também tem nessa casa um resgate, uma releitura da ideia do pátio como espaço de convívio, intermediário entre dentro e fora.
DT: Exatamente, e uma ideia sempre da presença da sombra na paisagem.
HMP: Sim, que é uma constante na sua obra, essa dinâmica das sombras, quase que como um elemento mesmo de composição plástica do objeto construído.
DT: Exatamente isso.
HMP: Outro ponto que para mim fica muito claro nos seus projetos é o trabalho com as vistas da paisagem, com a adoção de pontos focais nela.
DT: Sim, me preocupo muito com as vistas, mas elas não são iniciais. Elas são geradas no processo, inerentes ao desenho. Conforme eu vou projetando sempre vou verificando como as vistas vão acontecendo.
HMP: Então você esboçava algo, ia até o local e depois aprimorava. Como funcionava esse processo de desenho pensando na paisagem?
DT: Eu reiteraria o seguinte, toda vez que você lê um o programa e vai até o local ele meio que já vem pronto, mas depois você refina isso. É a intuição, não me diga que tudo é racional. Primeiro se inventa depois se pensa.
HMP: Entendi. E dentre as soluções que você usa para favorecer as vistas estão então espaços de contemplação como varanda, terraço, o óculo, que acabam se configurando também como pontos de transição entre exterior e interior, não?
DT: Sim, a varanda é um espaço de transição entre exterior e interior, é algo que eu uso bastante. E toda a oportunidade que eu tenho de fazer a luz penetrar na arquitetura existe essa possibilidade de transição. Então a varanda é interpretada, interpretada porque por definição varanda é só um espaço fora e ai já uma condição de desenho, mas você cria esse espaço de transição entre e exterior e interior que dá uma semiluz, não ocorre então uma brusca intercepção da luz e formação da sombra, e sim uma penumbra. Essa penumbra enriquece a arquitetura, e é quase definidora da arquitetura. Eu uso muito isso... quero dizer procuro usar, não é fácil.
[risos]
HMP: Essa transição exterior e interior também se reflete em alguns elementos de composição da sua arquitetura como o piso, beiral, pérgolas. Inclusive, na sua arquitetura você não trabalhou com brises, não é?
DT: Pois é, como a busca pela iluminação muitas vezes é zenital acaba que o beiral, a varanda e as pérgolas já fazem o controle e proteção necessários, essa semiluz.
HMP: Certo. E os pilotis? De fato, não observamos muito o uso de pilotis na arquitetura paulista em geral.
DT: É a arquitetura paulista, brutalista, tem essa característica, não se faz essa transição entre o pavimento e o solo por intermédio de apoios, não existe isso. A arquitetura é um objeto que surge do chão, ou uma coisa que está no chão e se integra ao seu entorno... E nesse ponto não é racionalista, é uma ideia orgânica. Não crio um objeto ideal desconexo que depois se relaciona com a paisagem, é tudo junto, se integrando, um é o outro e o outro é o um. Essa interpenetração é um ideal da arte, da arquitetura ainda mais.
HMP: Sim, existe essa transição fluída que exterior e interior, que incentiva a interpenetração entre os meios.
DT: E saber lidar com estes meios é algo muito importante, imprescindível, um exercício muitas vezes de dialética! Senão você fica apenas com opções mecânicas justapostas. O bom arquiteto precisa ser um bom seletor e organizador das opções mecânicas, precisa ter visão.
HMP: Interessante essa ideia, seletor de opções mecânicas...
DT: Não é? Essa é nossa árdua função de criação, quando é preciso tomar uma decisão e você consegue enxergar todas opções mecânicas possíveis e por meio da síntese concretiza uma boa ideia. O filósofo, o artista, todo criador é um seletor de opções mecânicas.
HMP: Gostei acho que agora vou me apresentar como seletora de opções mecânicas!
[risos]
HMP: Muito obrigado por conceder essa entrevista Decio, foi uma grande honra e certamente um material inestimável para a pesquisa em desenvolvimento. E também agradeço o almoço a você a Cecília!
DT: Imagina! Fico contente por ter contribuído, e precisando estou por aqui.
[fim do registro]