Cabanas, domus, castelos, villas, palazzos, são denominações históricas do espaço unifamiliar. São representativas da arquitetura mais elementar, mais próxima e utilizável pelo ser humano, considerada a sua real terceira pele, logo após a epiderme e a roupa que o protege do meio ambiente onde vive. Entretanto, haverá uma palavra que, independente das classes sociais, sintetizará toda noção de habitação privada: a casa.
Primitivamente, o conceito casa surge durante o Império Romano como sinônimo de cabana, tugúrio, choupana, de característica rural, como antagonismo ao termo domus que indicava a habitação urbana. Domus nos deu domicílio. De domus originou-se dominius, “senhor”, porque o amo da casa era o senhor.
A progressiva degradação das condições de vida, o refreamento das atividades econômicas, os periódicos flagelos das guerras e das pestes durante a Idade Média, reduziram as domus de pedra e mármore, até quase extingui-las por completo, multiplicando-se as casae de madeira e barro. Até o século X, e mesmo depois, as únicas construções em alvenaria foram os castelos e as igrejas. Na cidade, a igreja distinguia-se por suas dimensões soberbas e pela estrutura firme, merecendo o nome de domus, a casa do Senhor, tendo ao seu redor uma extensão miserável de casae. Desde então, chamou-se duomo (domo), domus, a morada de Deus e casa a morada humana.
Até o presente momento não apresentamos a palavra lar como definidora do espaço privado, pois se confunde, freqüentemente, o uso das palavras casa e lar, chegando às vezes a uma total sinonímia. No entanto, existem pontos relevantes que distinguem ambos os termos.
Temos, hoje, o conceito casa como um edifício ou parte dele destinado à habitação humana. Estar destinado representa aqui um objeto construído à espera de um uso familiar em que as relações do plano físico e a troca emotiva de seus moradores, possam fazer da casa um lar. “Uma interrogante que aguarda uma resposta” (1) como diria Eduardo Sacriste. Assim a casa apresenta-se como um espaço/forma que busca estar adequada e ser resposta correta ao modo de vida de seus moradores e às características climáticas da paisagem onde se instala. A casa possui sempre um valor econômico a partir de fatores variáveis como a sua localização, a qualidade dos materiais empregados, a sua própria estética e os espaços propostos.
A unidade casa é resultante de um complexo processo no qual confluem fatores sociais, econômicos e técnicos determinantes de sua conformação e também de suas mudanças. Não somente os costumes e modos de vida dos povos orientam a configuração e transformação da casa humana. Desde outros níveis e vertentes, menos diretos porém de incidência igualmente sensível, a casa registra as alterações históricas e sociais, as inovações técnicas, e logicamente a situação econômica e o grau de desenvolvimento alcançado nesse aspecto por um estado ou região.
A configuração casa representa um invólucro delimitador entre o público e o privado, pois nos leva a um interior, representando a necessidade de estarmos situados. Adverte-se assim que a casa relaciona-se intimamente com o homem, pois sua configuração é dependente da situação e do modo de vida de seu habitante e quando este lhe infunde seu hálito vital e a transforma em algo próprio e pessoal, ela pode assumir uma dimensão simbólica.
“A casa segue sendo o lugar central da existência humana, o sítio onde a criança aprende a compreender sua existência no mundo e o lugar de onde o homem parte e regressa” (2), revelando, de diversas maneiras, as formas de viver da pessoa ou grupo familiar que embaixo de um teto instalou sua morada permanente.
“Nossas vidas estão inevitavelmente ligadas à casa. O fervor mais antigo de nossas primeiras vivenda, as imagens recônditas da infância têm eco em seus muros, às vezes com tênue resplendor de uma irrecuperável felicidade, outras com a nostalgia do que já não existe ou o frio desapego por ingratas evocações, já que ela é o cenário do drama cotidiano da vida” (3).
Eis aqui o princípio e a própria essência da casa. Sempre vista como refúgio familiar, abrigo de homens e mulheres, pais e filhos, patrões e empregados, família e indivíduo, a casa pode ser vista como um microcosmo privado sempre em confronto com um setor público, seja ele uma aldeia ou metrópole. A casa necessita de paredes e cercas para imaginar-se uma existência não ameaçada. É ela quem dá ao homem seu sítio sobre a terra. A casa é, simbolicamente, um castelo, uma fortaleza, um lugar de defesa contra as agressões externas como um local de descanso e prazer. Assim, a casa é um objeto construído que pode ser vendido ou alugado. Um objeto inerte, não estabelecendo valores de uso, convivência e entrosamento familiar. Projeta-se a casa, constrói-se a casa. Os seus moradores podem fazer dela um lar.
A palavra lar é uma corruptela de lareira. A lareira primitiva que faz do seu fogo o elemento inseparável da cabana rústica. O fogo que reúne ao seu redor todos os integrantes de um laço familiar, sendo, de um modo figurativo, um manto que aquece e une a todos num mesmo instante. A identificação do fogo está presente nas cabanas rústicas como o elemento mais semelhante à vida. O fogo cresce, move-se, aquece, destrói e é quente, uma das qualidades fundamentais associada à vida humana. Quando o fogo se extingue, suas cinzas tornam-se frias, do mesmo modo que esfria o corpo de um ser quando morre. Há um paralelismo entre o conceito da alma que anima o corpo físico e o fogo, o espírito que anima o corpo da casa, como podemos perceber nesta definição de Ricardo Severo:
“Para agasalhar o primeiro lar, o rústico altar do fogo sagrado – que foi a mais poderosa divindade dos primitivos cultos – edificou o homem a primeira casa, a um tempo habitação e templo” (4).
O fogo – representado por Héstia, a deusa grega do lar – associa-se à casa para representar a criação de um lar, que através de sua chama traspassa a imagem da fertilidade e metáfora da vida. O fogo representa a alma da casa, sendo um símbolo da fertilidade feminina e da vida, chama sagrada e benéfica. É no fogo que está o âmago da visão orgânica de Wright como nos lembra Luis Fernandez Galiano (5), onde a utilização do fogo passa a ser mais simbólica que funcional. Nas Prairie Houses podemos notar o papel protagonista que nelas desempenham as lareiras, foco em torno do qual se desenvolve o espaço arquitetônico e a vida de seus moradores e as chaminés que apelam a uma tradição primitiva que faz do fogo a alma e o símbolo do lar.
O lar é uma condição complexa que integra memórias, imagens, passado e presente, sendo um complexo de ritos pessoais e rotinas quotidianas que constitui o reflexo de seus habitantes, aí incluídos seus sonhos, esperanças e dramas
Ao entendermos a casa como a terceira pele individual, o lar é a pele coletiva, a que integra, protege e une todos os integrantes do ramo familiar ao redor de um foco centralizado, o focus, o fogo ardente, símbolo espiritual da união e da integração.
Para Vitruvio a essência da arquitetura está associada à cabana que protege o fogo, que mantém o fogo que aquece a família. A primeira habitação, a primeira casa seria resultado do fogo protegido. O fogo físico aquece e integra, a família é a resultante deste aquecimento. As palavras “lar” e “mãe” estão para Lewis Munford associadas em todas as fases da agricultura neolítica, sendo elas a base familiar, “foi a mulher que fabricou os primeiros recipientes, teceu cestas e deu forma aos primeiros vasos de barro. Na forma, o lar é criação sua...era o lar o ninho coletivo para o cuidado e nutrição dos filhos” (6).
A casa seria então uma edificação recém-construída, vazia, com seus muros imaculados, faltando a ela a vitalidade oriunda de seus futuros habitantes. “Quando projeto uma casa, penso no lar”. Projetar uma casa é antecipar uma distribuição espacial que possibilite um uso adequado, um lar na verdadeira concepção onde está presente o elemento fundamental da formação do caráter e da personalidade, aceitando-se que as recordações recônditas da vida em família prenda-se ao ambiente em que se vive. Pormenores como o jardim, o quarto de dormir, a bicicleta, os vizinhos e muitas outras imagens ficam gravados na mente de todo ser humano.
A casa é o objeto construído, possui valor econômico, é o abrigo, o invólucro protetor, é a parte integrante do sítio onde se integra. O lar, por sua vez, é a vivência familiar dentro da casa, o aquecimento ou a frialdade; o ruído ou o silêncio, a calma ou a tempestade emotiva, o equilíbrio ou a desarmonia, o clima espiritual que ecoa nos ambientes concretos da casa.
“Tudo o que a casa almeja é a mirada agradecida do dono, que lhe reconheça a serventia. Quem, senão ela, garante-lhe a intimidade amorosa, a exaltação dos sentidos, o calor que emana das entranhas dos seus tijolos.” Assim, a escritora Nélida Piñon, na crônica “O mistério da casa”, publicada no jornal O Estado de São Paulo, em 11/04/98, reconhece a força e o poder que as paredes exercem na casa, pois ela “impede que o vento despótico disperse os haveres da família. Esconde a miséria, a humilhação diária, a mesa pobre. Abençoa o homem com a fechadura da qual pende, trêmula, a modesta chave. Tranca a porta, não deixa que a cobiça alheia, a intriga malsã dos vizinhos, os arbítrios dos bárbaros, invadam o refúgio que se designa de lar. E tudo que a casa almeja em troca é que a respeitem. Caso seja um dia vendida, jamais a derrubem. Tratem-na, por favor, como a amiga sob cujo teto, à noite, o homem busca o generoso abrigo”.
Casa: a essência da arquitetura
Como seria projetar a primeira casa do homem?
Quais referências utilizaríamos?
Olharíamos as formas naturais: o sol, a lua, as montanhas, a forma terrestre?
Nos inspiraríamos nas colmeias, no ninho dos pássaros, na galeria das formigas?
Buscaríamos ponto de apoio nas copas das árvores?
Tiraríamos a tipologia básica das formas naturais?
Elegeríamos o fogo como centro do espaço delimitado?
Iríamos querer um abrigo que nos protegesse das intempéries, dos animais selvagens, das tribos inimigas?
Encontraríamos na madeira ou na pedra os nossos materiais básicos?
Cabana e fogo, construção e combustão?
A organização oriunda do caos?
Quantos pensaram sobre estas questões!
A idéia da primeira casa, arquétipo e origem, está presente no pensamento dos arquitetos modernos tanto como no dos tratadistas e teóricos da arquitetura de todos os tempos
Vitruvio foi o primeiro a procurar a essência da casa, situando no descobrimento do fogo a origem da sociedade humana e com ela a origem da atividade construtora do homem. No seu tratado De architectura libre decem relata que “com o fogo surgiram entre os homens as reuniões, as assembléias e a vida em comum, que cada vez ficaram mais concorridas num mesmo lugar e assim, de um modo diferente dos outros animais, os homens receberam da Natureza o privilégio de andar erguidos e não inclinados e a atitude de fazer com grande facilidade, com suas mãos e órgãos de seu corpo, tudo aquilo que se propunham”.
Para Vitruvio a cabana primitiva e o fogo revelam-se inseparáveis. É o fogo o elemento protoarquitetônico, sendo a partir dele que a arquitetura nasce como mito, rito e consciência. “O sol e o fogo, criados para o fomento natural, fazem mais segura a vida”.
Vitruvio inaugura a linha mestra que une o impacto do fogo à invenção da linguagem e das artes como atividades sociais, o desenvolvimento da técnica a partir de fragmentos de impressões sensoriais e a sucessão de passos lógicos que estas impressões provocam nos homens primitivos até que dominem o entorno, observando a natureza exterior associada a seus próprios corpos.
“Começaram a levantar coberturas utilizando ramos de árvores, a cavar grutas nos montes e a fazer, imitando os ninhos dos pássaros, com barro e ramos, recintos aonde pudessem guarnecer-se”.
Tão essencial quanto o planejamento do primeiro princípio é o momento seguinte em que a cabana primitiva, segundo Vitruvio, desliga-se da mera implantação no terreno e do simples uso funcional, convertendo-se em arte:
“Com o trabalho diário, os homens foram fazendo suas mãos mais ágeis na prática de edificar e, aperfeiçoando e exercitando seu engenho, unido à habilidade, chegaram ao conhecimento das artes e alguns mais aplicados e diligentes passaram a ser artífices da edificação”.
A partir do Renascimento, a recuperação da obra vitruviana será somente um ponto de apoio para o desejo humanista de definir os verdadeiros princípios da arquitetura. Assim, a idéia da arquitetura como arte da imitação desembocaria, de modo automático, no mito da cabana primitiva. Os arquitetos renascentistas encontram um outro modelo para o qual Vitruvio já não apresentava base: o modelo antropomórfico.
Partindo desta premissa vamos encontrar Leon Batista Alberti (1404-1472) apregoando que o princípio básico da arquitetura está no teto e na parede: fecha-se o invólucro protetor, diferenciando-se espaço amplo e espaço fechado. Deste modo o homem elege-se como escala de seu espaço. Para ele a união de teto e parede é o princípio da “congregação dos homens” e não como “alguns disseram a água e o fogo”. Em seu livro De re aedificatoria, coloca que o homem primitivo “buscou um espaço de sossego em alguma região segura e encontrando esta área cômoda e agradável para sua necessidade assentou-se ali. Não quis, porém, que todos os afazeres domésticos e individuais realizados ocupassem o mesmo ambiente, mas sim que o local de dormir fosse diferente daquele usado para fazer o fogo. Começou a imaginar como se colocaria o teto, para que estivesse coberto do sol e da chuva e posteriormente construiu as paredes”.
Filarete, em seu Trattato di Architettura(1464) associa as origens da casa à tradição cristã: depois da expulsão do paraíso, Adão será o primeiro arquiteto e construtor da cabana rústica. Mostra como Adão constrói com suas mãos uma proteção contra a chuva, segue a representação de uma cabana em forma de tenda de campanha e finalmente a de cabanas cujo teto descansa sobre troncos em forma de forquilha.
“Devemos supor que quando Adão foi alojado no paraíso estava chovendo. E como não tinha proteção, levou as mãos à cabeça para defender-se da água. E do mesmo modo que a necessidade o obrigou a encontrar comida para seguir vivendo, assim também a habitação foi uma habilidade para defender-se do mal tempo e da água. Alguns dizem que não chovia antes do dilúvio. Eu creio o contrário, pois se a terra produzia frutos era necessário que chovesse. E como a alimentação e o alojamento são habilidades necessárias para viver, devemos crer que Adão, ao fazer um teto com suas duas mãos, considerando a necessidade de fazer uma habitação, buscou fabricar uma vivenda que o defendesse das chuvas, assim como do calor do sol”.
Para Filarete, o primeiro a representar a cabana primitiva, a essência da arquitetura está representada por uma cabana cujo teto se apóia em troncos em forma de forquilha. Define os troncos como a origem das colunas e ilustra esta idéia com a estrutura da cabana primitiva que consta de quatro troncos verticais sobre as quais assentam-se os troncos horizontais. Para Filarete o comprimento da “coluna primitiva” tem sua origem nas medidas dos homens, significando que estas proporções estariam de acordo com as proporções humanas.
Enquanto Vitruvio e Filarete definiam a coluna (e não o muro) como formadora da base estrutural arquitetônica, em sua fase primitiva, Alberti acreditava que este sistema estava amparado no teto e na parede, sendo as pilastras e colunas meros artifícios de embelezamento, quando, segundo Vitruvio, o processo é exatamente o inverso, ou seja, das colunas e que derivam todos os sistemas de proporções.
Andrea Palladio (1513-1570), por sua vez, mostra uma casa “primitiva” de duas plantas, construída toscamente e com um frontispício. Naturalmente conhecia muito bem os textos de Vitruvio que citou no prefácio do primeiro de seus Quatro Livros, explicando porque iria se ocupar, em primeiro lugar, das casas particulares: “Posto que elas sugeriam o método para desenhar edifícios públicos, posto que é muito provável que os homens viveram, no início, isolados e ao ver que, mais tarde, tinha vantagens ao contar com a ajuda de outros homens para obter aquelas coisas que poderiam fazê-lo feliz (se é que se pode falar de alguma felicidade aqui em baixo), ele (o homem) chegou de modo natural a desejar e amar a companhia de outros homens. E assim, os grupos de casas se converteram em aldeias e os grupos de aldeias em cidades”.
A reflexão em torno à natureza, seus mecanismos de funcionamento e a firme crença de que o progresso humano depende do que o homem seja capaz de regular seu comportamento individual e social de acordo com tais leis naturais constitui um dos eixos em torno do qual se articula o pensamento da Ilustração.
Os escritos e desenhos que se estabeleceram no período iluminista, suscitaram discussões polêmicas que no fundo eram a interrogante da essência da arquitetura e do futuro caminho que ela deveria trilhar, repensando conceitos teóricos.
A questão colocada é se existia ou não, para a arquitetura, regras que pudessem ser deduzidas da própria natureza e que, em conseqüência, seria obrigação complementar para os novos arquitetos da Razão. O aceite de semelhante hipótese implica, ao mesmo tempo, por parte dos teóricos ilustrados da arquitetura, uma revisão da história da mesma em função de maior ou menor aproximação a tais supostas regras naturais. Neste sentido haverá uma força renovada no século das Luzes, um mito bem mais antigo que a própria Ilustração: o da cabana primitiva, o primeiro edifício aonde seriam encontradas e sintetizadas as regras naturais da arquitetura.
O descobrimento do continente americano e a conseqüente abertura de um autentico horizonte de “primitivismo” terá, por outro lado, uma evidente repercussão sobre algumas versões posteriores do tema da cabana. Assim, já em pleno século XVII, uma clara mostra deste impacto é a obra de J. Caramuel, no seu tratado Architectura Civil Reta y Oblicua, publicada em 1678. Caramuel mantém a idéia da cabana primitiva como origem da arquitetura, porém a ilustra com exemplos dos índios americanos.
A filosofia iluminista atribuiu à natureza uma importância quase sagrada fazendo com que a arte e a arquitetura buscassem a pureza sublimada que irão encontrar no primitivismo. Constatou-se, com que este sentido obsessivo, que se sabia muito pouco, ou quase nada, da arquitetura primitiva. Dos escritos de Vitruvio deduzia-se, inequivocamente, que a coluna, e não o muro, fosse a base da estrutura arquitetônica na antigüidade. Esse foi o erro fundamental de Alberti: basear todo o seu sistema da arquitetura renascentista no muro, sendo as pilastras e as colunas meros artifícios de embelezamento, quando, segundo Vitruvio, o processo seria o inverso, ou seja, das colunas e das ordens arquitetônicas é que derivam todo o sistema de proporção. Os tratadistas do século XVIII ao olharem ao seu redor encontravam uma arquitetura baseada numa série complexa de reentrâncias e saliências dos muros, estuques imitando pedra e uma ornamentação tão espessa que ocultava por completo a estrutura. Haveria a necessidade de eliminar o ornamento: a arquitetura deveria voltar à sua essência.
Durante o século XVII e princípios do XVIII o tema da cabana encontrará um desenvolvimento privilegiado no âmbito da riquíssima teorização arquitetônica.
Claude Perrault, no seu Ordonnance des Cinq Espèces des Collones, apresentou uma separação entre a construção como reposta a uma necessidade humana imediata e arquitetura como procedimento artístico, entendendo que seria errôneo derivar a segunda da primeira. Criticava a idéia da arquitetura ser uma arte imitativa, o que o levava, conseqüentemente, a negar a teoria da origem da cabana primitiva.
“Não é da imitação que dependem a beleza e a graça da arquitetura, porque se assim fosse ela deveria ter mais beleza quanto mais exatas fossem estas imitações. As colunas não recebem a aprovação do gosto quanto mais se parecem ao tronco de uma árvore que servia de coluna às primeiras cabanas”.
Neste contexto, Michel de Frémin apresenta, no início do século XVIII uma preocupação pelos aspectos construtivos e funcionais. Para Frémin, no tratado Mémoires Critiques d’Architecture de 1702, posiciona que a origem da arquitetura está associada pelo uso que será destinada à ela.
“Como na instituição da arquitetura os primeiros homens começaram suas construções segundo os usos a que se destinavam...Quiseram fazer seus edifícios cômodos e sãos, e com esta idéia dispuseram-no em consonância com seu uso”. A conclusão vem no sentido de um protofuncionalismo, justificado pelo mito da cabana primitiva: “Assim, segundo os homens que foram os inventores da arquitetura, a primeira coisa a resolver num edifício reduz-se a fazer a obra segundo o uso próprio ao que deve servir”.
No entanto, o grande codificador da teoria da cabana primitiva como base da arquitetura será o abade Marc-Antoine Laugier (1713-1769) ao publicar em 1753, de forma anônima, seu influente Essai sur l’Architecture, que dois anos mais tarde, em 1755, seria objeto de uma Segunda edição revisada, quando o autor já identificava seu nome. Laugier formula a hipótese de que toda a arquitetura tem sua origem na cabana primitiva, sendo o princípio e medida de toda a arquitetura. O desenvolvimento da coluna, do entablamento e do frontispício suprimindo os muros de fechamento, faz surgir a cabana primitiva, contendo toda a lógica construtiva.
A única ilustração deste livro apresenta a musa da arquitetura mostrando a uma criança (supostamente a primeira da espécie humana) a “cabana rústica”, base de toda forma arquitetônica, ou seja, uma estrutura límpida formada por pilares e vigas, oriundas dos troncos de árvores. Para Laugier, essa cabana primitiva era a origem da arquitetura, sendo a arte da estrutura pura, cujos elementos essenciais são a coluna, a arquitrave e o frontão, os quais hão de cumprir suas funções estruturais de origem, não havendo razão alguma para aplicação de ornamentos.
“O primeiro homem quis fazer um alojamento que lhe cobrisse, sem sepultá-lo. Alguns ramos cortados no bosque foram os materiais adequados para o seu desenho. Escolheu os mais fortes e os levantou perpendicularmente formando um quadrado. Colocou encima outros quatro transversais e sobre estes, outros inclinados, em duas vertentes, formando um vértice no centro. Esta espécie de teto foi coberta com folhas para que nem o sol e nem a chuva pudessem entrar e estava assim o homem alojado. É certo que o frio e o calor fizessem sentir incomodidade na casa aberta por todas as partes e assim colocou-se palha entre os pilares e assim ficou seguro...A pequena cabana rústica que descrevi é o modelo sobre o qual se tem imaginado toda a magnificência da arquitetura. E aproximando-se, na execução da simplicidade deste primeiro modelo, como se evita os grandes defeitos, como se alcança a verdadeira perfeição.
Nos mantermos fiéis ao simples e ao natural é o único caminho frente ao belo...com um mínimo de conhecimento geométrico (o arquiteto) encontrará o segredo para variar até o infinito, nas plantas que desenha”.
Jacques-Francois Blonde, no seu livro Cours d’Architecture de 1771 escreve que “os homens fizeram ao princípio alguns refúgios contra a severidade das estações e ao ataque de animais ferozes. Com este fim construíram choças e cabanas: juncos, canas, ramos de árvores, folhas, cortezas e barro foram quase os únicos materiais que empregaram para construir seus alojamentos”.
Blondel elabora uma teoria a partir do surgimento da cabana primitiva que redundaria no surgimento dos espaços urbanos: “Ao crescer as famílias, cresceram suas amorfas habitações. Logo, os homens sentiram a necessidade a que deu lugar à sociedade, aprendendo a implantar alojamentos mais cômodos e duradouros. Assim, suas casas que até então estavam separadas por vastos desertos, agruparam-se em aldeias e logo converteram-se em burgos e desta vez em cidades”.
Jean-Nicolas-Louis Durand, no livro Précis des Leçons d’Architecture, escrito em 1819, define que há uma coisa que se deve evitar a todo custo em arquitetura: a imitação. Negando os aspectos tradicionais, diz que a utilidade pública e privada, a felicidade, a economia e a preservação dos indivíduos e da sociedade seriam os princípios maiores da arquitetura. E continua dizendo que o econômico sistema arquitetônico descansa sobre uma base mais sólida que a “imitação da cabana primitiva ou do corpo humano”.
O mais influente dos teóricos da arquitetura italiana de fins do século XVIII foi Francesco Milizia (1725-98). Em 1768, na introdução do seu tratado Memorie degli architetti antichi e moderni, declara-se partidário da teoria da imitação, no sentido de Laugier, respeitando o valor da cabana primitiva como modelo para toda a arquitetura. Milizia conduz a teoria da imitação a um desenvolvimento maior que Laugier, reconhecendo dois princípios da arquitetura que se refere à natureza: o grego como imitação da cabana primitiva e o gótico como imitação do bosque.
“Onde se encontram casas fabricadas pela natureza e que os arquitetos possam ter como exemplo a imitar? O palácio de um monarca não está modelado sobre o palácio do universo, do mesmo modo que a harmonia não está modelada sobre a música dos corpos celestes, cujo som não chegou, pelo menos até agora, a ouvido algum. À arquitetura falta, na verdade, o modelo formado pela natureza; porém existe outro modelo formado pelos homens, seguindo a industria natural de construir suas primeiras habitações. A tosca cabana é a arquitetura natural, a tosca cabana é a origem da beleza da arquitetura civil”.
Definindo a arte como um sistema de conhecimento reduzido a regras positivas e invariáveis e a ciência como um conhecimento das relações que podem manter entre si certo número de fatos. Estes fatos são descobertos pelo sentido exclusivamente, porém, afirma que o caráter primitivo de seu primeiro descobrimento não deve depreciar os esforços dos primeiros homens.
“Transcorreram muitos séculos em choças, umas cônicas, outras cúbicas, em diversas variantes...Edifica-se de um modo, ora de outro...olhando primeiro a comodidade, a seguir a estabilidade e finalmente a beleza”.
“Assim, a arquitetura é uma arte de imitação – continua Milizia – como são todas as demais artes. A única diferença é que estas últimas tem alguns um modelo natural sobre o qual baseia seu sistema de imitação. A arquitetura carece deste modelo, porém a indústria natural dos homens ofereceu um modelo alternativo quando construiu seus primeiros alojamentos.”
Em seu Dictionary of architecture, Quatremère de Quincy, de 1832, posiciona que segundo o clima e os costumes, o homem adotou certos estilos de edificação superiores aos refúgios que lhe oferecia a natureza, como as covas e as árvores. A madeira teria sido, para todas as sociedades primitivas, o material de construção natural. Segundo Quatrèmere, a cabana teria sido, inicialmente, construída com ramos das árvores e, posteriormente, com os troncos das árvores. “E essa cabana simbólica, que chegaria a ser o tipo da arquitetura grega, não expressa mais do que os primeiros ensaios da arte de carpintaria, quer dizer, de uma habilidade mecânica”. Assim, haveria três arquétipos de edifícios: a tenda, a cova e a cabana ou obra de carpintaria.
“A tenda é adotada por chineses, uma arquitetura de construção rápida e muito afetada para ser imitada. A cova é o arquetipo egípcio, conduz a uma arquitetura pesada e indiferenciada para merecer aprovação. A armação de madeira, adotada e melhorada pelos gregos, é o único digno de imitação.”
Para Quatremère, a madeira era o material ideal para uma arquitetura que era, ao mesmo tempo, diferenciada e sólida. A cabana, antes de ser imitada em pedra, tinha que passar por um processo de racionalização e desenvolvimento.
“A transposição da madeira à pedra é a razão principal que nos proporciona a arquitetura grega, e este prazer é o mesmo que encontramos, tão desejável, em outras artes de imitação”.
Para Viollet-Le-Duc (1814-1879), houve um tempo muito distante em que o homem errante andava desvalido sobre a face da terra, com medo dos fenômenos naturais, que sua pouca inteligência não chegava a penetrar, e temeroso das feras perigosas que dividiam o mesmo território. Numa forma lenta e dolorosa foi superando as etapas difíceis.
“A chuva descarregada das nuvens densas bate implacavelmente nas rochas, inunda a terra e aviva os verdes das árvores. Um grupo de homens pálidos, desvalidos e temerosos apertam-se ao redor de uma árvore qualquer, procurando abrigo, retira em seguida os ramos inferiores, esforçando-se por fixá-los ao solo com terra.
Algo foi alcançado, porém a chuva castiga o mísero reparo, irrompe através da folhagem e inspira ao mais robusto desses homens a idéia de construir um refúgio mais seguro contra a violência do temporal.
Eis aqui o primeiro passo; para atenuar tal desamparo, um homem elege duas árvores jovens e próximas, trepa numa delas e auxiliado por um ramo terminado em forquilha atrai o segundo tronco e o liga fortemente ao primeiro mediante uma atadura de juncos.
A família contempla o processo maravilhada e após a indicação do homem pré-histórico, o grupo, armado de estacas, corre em busca de troncos mais finos, que sob a direção do acidental arquiteto são colocadas em torno do abrigo, formando um círculo na base e unindo suas extremidades superiores, unidas às árvores guias. Os interstícios serão preenchidos com uma trama de juncos, ramos e grandes folhas, sendo recobertas com barro todo o conjunto.
A única abertura que possui a cabana estará na parte oposta ao vento dominante e o piso será organizado com ramos secos, juncos e barro amassado.Com o término do dia concluiu-se também a construção da cabana, é uma humilde conquista da indústria humana”.
Banister Fletcher, no livro A history of architecture (1896), posiciona que a primeira habitação do homem foi um conjunto de apoios provisórios colocados sobre uma superfície rochosa que os primeiros homens realizaram para definir uma proteção contra as intempéries e seus diversos inimigos. “A arquitetura...deve Ter tido uma origem simples no esforço primitivo da humanidade por alcançar uma proteção contra a inclemência do tempo, animais selvagens e os inimigos humanos”.
A maioria dos tratadistas dos séculos XVII, XVIII e XIX, como Claude Perrault, Jacques François Blondel, William Chambers, Gottfried Semper e J.N.L.Durand, além dos já citados, desenvolveram o tema da cabana primitiva ao estabelecer as origens da arquitetura.
Durante o século XX vamos encontrar alguns arquitetos que buscam discutir esta temática, sempre tendo como referência o discurso já apresentado. Como exemplo podemos citar um desenho de Oscar Niemeyer, intitulado “o abrigo”, que se aproxima, categoricamente, do pensamento de Viollet-Le-Duc. Oscar dá à essência da arquitetura a mesma noção de cabana primitiva oriunda da junção de dois ramos de árvores. Desta união delimita-se um espaço interior, gera-se o espaço interno, nasce a arquitetura de um modo direto e simples.
Frank Lloyd Wright tem a casa como origem do refúgio, um abrigo no qual o ser humano busca amparo ou se retira, como se fosse uma cova, para proteger-se da chuva, do vento e da luminosidade intensiva. Nesse pequeno espaço pode recolher-se e sentir-se em segurança completa, tal como um animal em sua toca.
Le Corbusier apresenta seu selvagem ideal como um homem que ao se deter numa determinada planície decide que aquele é um bom lugar para sua morada. Escolhe uma clareira no bosque, corta as árvores que necessita, aplaina o terreno e abre um caminho até o assentamento de seus companheiros da tribo que acabara de deixar. A estrutura de sua tenda descreve um retângulo cujos quatro ângulos são iguais. Le Corbusier dá à essência da casa o mesmo princípio dos templos: “Olhem um desenho de tal cabana num livro de arqueologia, ali tem o plano de uma casa e o plano de um templo. É exatamente a mesma atitude que encontraram numa casa pompeyana ou num templo de Luxor. Não existe homem primitivo, há unicamente meios primitivos”.
Para Francoise Choay o mito de origem da construção está diretamente associado ao fogo. A cabana primitiva e o fogo primitivo revelam-se como inseparáveis. O rito, o mito e a consciência nascem, para a humanidade, da associação da casa e do fogo.
Carl Gustav Jung (1875-1961) traduz todo o pensamento da essência casa quando está ocupado com a construção de sua verdadeira morada, situada na face norte do lago de Zurich: “Tive que reproduzir em pedra minhas idéias mais íntimas e meu próprio saber ou fazer uma confissão em pedra”. A primeira idéia consistiu em levantar uma espécie de cabana primitiva onde o fogo ardesse entre duas pedras e dessa idéia surgiu a primeira casa circular de 1923. “Somente depois vi o que havia surgido e que ela possuía uma forma razoável: um símbolo da integridade psíquica. Senti o íntimo desejo de chegar a ser o que eu mesmo sou”. É interessante percebermos que a materialização de sua realidade interior possuiu a forma circular de uma mandala, o símbolo de si próprio, o quadrado-circulo que encerra um centro e que Jung experimentou tanto em sua própria pessoa como em seus pacientes.
Para encerrarmos esta pequena resenha histórica apresentamos uma parábola de Reyner Banham, apresentada por Luis Fernandez Galiano, cujo relato refere-se a uma tribo primitiva relegada a um clarão no bosque, onde os integrantes projetam passar a noite. Neste clarão existem ramos caídos e alguma madeira. A tribo encontra-se frente a um dilema: empregariam a madeira para levantar um pequeno abrigo ou a utilizariam como lenha para acender um fogo?
Podemos dizer que, para estes pensadores, construir a primeira casa do homem surgiu inicialmente da união cabana e fogo, sendo este o símbolo e o elemento de união entre os seres, estando sempre posicionado no foco central do espaço construído. A casa surge, também, como a incorporação de elementos naturais, derivando deles um sistema estrutural (pilares, vigas e cobertura) que transforma o espaço fechado num invólucro protetor frente a uma natureza ampla e agressiva.
notas
1
SACRISTE, Eduardo. Qué és la casa? Buenos Aires, Columba, 1968.
2
NORBERG-SCHULZ, Christian. Existencia, espacio y arquitectura – nuevos caminos de la arquitectura. Barcelona, Blume, 1975.
3
SACRISTE, Eduardo. Op. cit.
4
SEVERO, Ricardo. A arte tradicional no Brasil – a casa e o templo. Tipographia Levi, São Paulo, 1916. Ricardo Severo, engenheiro originário do Porto, Portugal, exilou-se em São Paulo, depois de uma conspiração para derrubar a monarquia em Portugal. Defensor de posturas tradicionalistas aplicada à arquitetura, foi sócio e sucessor de Ramos de Azevedo.
5
GALIANO, Luis Fernandez. El fuego y la memoria. Madrid:Alianza Editorial, 1991.
6
MUNFORD, Lewis. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo, Martins Fontes, 1982.
bibliografia complementar
BLASER, Werner. Patios – 5.000 años de evolución. Barcelona:Gustavo Gilli, 1997.
GALLO, Paola. Lofts in Italy. Milão:Lárchivolto, 1998.
RYBCZYNSKI, Witold. Casa: pequena história de uma idéia. Rio de Janeiro:Record, 1996.
SCHOENAUER, Norbert. 6.000 años de hábitat. De los poblados primitivos a la vivienda urbana en las culturas de oriente y occidente. Barcelona:Gustavo Gilli, 1984.
ZABALBEASCOA, Anatxu. La casa del arquitecto. Barcelona:Gustavo Gilli, 1984.
sobre o autor
Jorge Marão Carnielo Miguel é doutor pela FAUUSP, coordenador e professor do Curso de Especialização “Arquitetura e pós-modernidade: composição e linguagem", da Universidade Estadual de Londrina