Participamos cotidianamente do ciclo vital que marca o transcurso do nascimento e da morte. Aceitamos com alegria o primeiro momento, mas não reconhecemos a inevitabilidade do segundo. Desde que Fausto vendeu a alma a Mefisto o homem vem tentando concretizar a aspiração de viver eternamente. Hoje, com as descobertas da biotecnologia e da genética, se procura alongar ao máximo o fim da vida. Já temos até exemplos de artistas e arquitetos quase imortais. Por isso, a idéia de “sair de cena” prematuramente é sempre inaceitável. Isto acontece com a desaparição de Éolo aos sessenta anos de idade, em plena criatividade e maturidade imaginativa, demonstrada nos concursos ganhos, e nos projetos e obras recentes: na mutação cromática e dionisíaca dos prédios do “bairro amarelo”, no conjunto habitacional Gelbes-Viertel de Berlim; nas metafóricas formas livres do ginásio Wanda Bambirra em Belo Horizonte; e nos primeiros prêmios obtidos nos dois concursos que abriram o novo século em Minas Gerais – as sedes do Grupo Corpo e do Pampulha Iate Clube.
Éolo teve múltiplas qualidades que devem ser reconhecidas. A primeira foi a sua vocação de Mestre. Este não é um dom comum dos arquitetos de talento. Nem todos os partícipes da vanguarda do Movimento Moderno tiveram esta capacidade: Gropius foi o exemplo de uma vocação para o ensino e a criação de equipes; também Wright, Le Corbusier, Mies van der Rohe e Louis Kahn, tiveram ao seu redor discípulos que tentavam assimilar, não as “receitas” formais, mas a dinâmica e a metodologia de projeto. No Brasil, não proliferaram os “Mestres”, e por isso, no Rio de Janeiro a criatividade e o pioneirismo da “escola carioca” se esgotou rapidamente com a retirada de Lúcio Costa; a autonomia mantida por Oscar Niemeyer, e a ausência de arquitetos de prestígio na FAU nas décadas dos anos cinqüenta e sessenta. Em São Paulo, a presença de Vilanova Artigas na FAU-USP e no circuito profissional permitiu a continuidade da “escola paulista”, no ascetismo formal de Carlos Millan, Joaquim Guedes ou Paulo Mendes da Rocha. Em uma Belo Horizonte dominada pela herança racionalista de Sylvio de Vasconcellos e pela presença marcante de Niemeyer em Pampulha e de seus prédios urbanos dos anos cinqüenta, Éolo se transformou rapidamente nos anos setenta, no chefe espiritual de um movimento que, com Jô Vasconcellos e Sylvio de Podestá, questionou tanto as tendências tecnocráticas como a influência “unidimensional” – parafraseando Herbert Marcuse – de Brasília; e sentiu a necessidade de “varrer o entulho autoritário” da ditadura militar. Sem quase atuar como mestre no sistema universitário público – que confere maior valor a burocráticas teses de mestrado ou de doutorado e não reconhece a maestria de obras arquitetônicas de prestigio internacional – Éolo criou um circuito de discípulos que formaram o “clube mineiro dos gambás”, com o pioneiro Cid Horta, Sylvio de Podestá, Gustavo Penna, João Diniz, Álvaro Hardy, José Eduardo Ferolla, Saúl Vilela, e outros mais jovens. Assim surgiu nos anos oitenta uma escola “mineira” mais livre e aberta, olhando tanto para as próprias tradições como para as tendências internacionais, tentando se liberar das influências recebidas das antecessoras de São Paulo e do Rio de Janeiro.
A segunda qualidade foi a sua corajosa concepção de liberdade criativa – Jorge Glusberg definiu-o como um “guerreiro” – de mudar constantemente de linguagem expressiva na busca de novos caminhos alheio aos “estilos” e aos esquemas rígidos que marcavam as escolas carioca e paulista. Neste sentido, assumiu a “globalização” positiva das experiências locais e internacionais – não a satanizada da economia neoliberal –, contrária á concepção restrita da identidade e da brasilidade, amadurecida na sua interação com a dinâmica da cultura universal Segundo Guilherme Motta “a cultura brasileira não é um prato, e sim um cardápio”; afirmação reiterada por Éolo quando afirmava que existiam tantas tradições quanto habitantes no país e que tinha que ser aproveitada a convivência pluralista das culturas heterogêneas. Ao vivenciar duas experiências formativas opostas – a primeira juventude em Ouro Preto e logo após a formatura em 1967 na UFMG, os primeiros trabalhos desenvolvidos em Brasília –, percebeu em toda a sua dimensão a necessidade de articular tradição e contemporaneidade. Radicado em Belo Horizonte – uma cidade rigorosamente cartesiana e ao mesmo tempo contraditoriamente sinuosa –; associada á lógica construtiva da industria do aço; tinha que encontrar uma nova combinação de tendências que superasse o formalismo esquemático de herança racionalista. A assimilação da pós-modernidade não foi uma escolha “estilística” gratuita, mas um grito de protesto contra “a chatice predominante no Brasil”, que se materializa, nos anos oitenta, no Centro de Informações Turísticas na Praça da Liberdade. Este prédio foi o ponto de partida da “pós-mineiridade”, como definida por Hugo Segawa.
A terceira qualidade foi a luta persistente pela interação entre arte e técnica; liberdade expressiva e rigor construtivo. Ao entender a arquitetura como um artefato cultural que surge da realidade local, o levou a manter uma estreita relação com o movimento artístico mineiro nas suas diferentes manifestações, numa integração que é uma das características que identificam os profissionais de Belo Horizonte: o grupo dos “gambás” esteve sempre articulado a pintores, escultores, fotógrafos, cineastas, músicos, coreógrafos, atores e literatos. Não é casual que no projeto recente para a sede do Grupo Corpo, as formas geométricas de aço do prédio resultam da síntese entre a equipe de arquitetos e o escultor Amílcar de Castro. A capacidade de Éolo de captar o cerne da questão a resolver e de identificar-se com a escala do projeto lhe permitiu resolver prédios de escritórios complexos, adotando estruturas metálicas – o condomínio edifício Officenter e o Centro Empresarial Raja Gabaglia –; a detalhada construção em tijolos do grupo escolar Vale Verde em Timóteo e a sua adequação às condições climáticas e ecológicas; as reformas de casas coloniais de Ouro Preto; a Fazenda São Sebastião ou o sítio Barão de Botafogo. A utilização expressiva dos materiais construtivos, e a valorização dos espaços interiores dos prédios, tanto pela organização volumétrica como pelo detalhamento e pelo desenho do mobiliário, demonstraram a fina sensibilidade, e o domínio, tanto dos sofisticados mecanismos da high tech como da linguagem retórica do barroco mineiro de Éolo Maia.
A última qualidade dele foi a paixão, entusiasmo e devoção pela arquitetura que coincidia com a alegria de viver. Ele acreditava na unidade entre pensamento e sentimento, entre arte e técnica, entre trabalho e lazer, entre individuo e comunidade, entre a letra e a matéria. Daí a sua dedicação, com Jô e Sylvio pela difusão de obras e de idéias contemporâneas que pudessem servir de exemplo e de tema de debate na cultura “provinciana” de Belo Horizonte: a publicação das revistas Vão Livre, Pampulha e 3Arquitetos é uma demonstração do seu desejo de criar um movimento local que integrasse os artistas e os profissionais jovens. Sempre bem humorado, boêmio e entusiasta, alheio a todo formalismo, egocentrismo ou ritualização da vida profissional, achava que a sua criatividade tinha que ser assimilada polemicamente pela comunidade: um dos projetos que suscitaram acaloradas discussões foi a casa da “Rua dos Arquitetos”, apresentada na Bienal de Recife em 1994, quase uma provocação. Éolo não está mais entre nós de corpo presente, mas agora, mais que nunca, o seu espírito deve orientar novas gerações de arquitetos mineiros e de todo o país, no combate contra á mediocridade, ou oportunismo e ou mercantilismo que domina no Brasil e no mundo neste início de século. O seu exemplo, não é só de um “Dom Quixote” isolado, mas de um grupo coeso de profissionais – os “gambás” mineiros –, conscientes que a cidade e a arquitetura terão que ajudar a construir a felicidade das pessoas que nelas vivem. Por isto queremos finalizar com uma citação esclarecedora de Éolo:
notas
Nota do Editor - O presente número de Arquitextos, nº 029 de outubro de 2002, em homenagem a Éolo Maia, contou com a editoria de Fernando Lara.
sobre o autor
Roberto Segre é coordenador do PROURB/FAU/UFRJ.