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ROCHA, Ari Antonio da. Antoni Gaudí: 150 anos de arquitetura inovadora. Arquitextos, São Paulo, ano 03, n. 029.04, Vitruvius, out. 2002 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/03.029/739>.

"Na areia da praia
Oscar risca o projeto
Salta o edifício
da areia da praia" (Carlos Drummond de Andrade) (1)

Recordo a primeira vez que vi fotos da catedral da Sagrada Família, sem dúvida o projeto mais divulgado e conhecido de Gaudí, quando fiz a associação imediata com uma imagem de infância: os ‘castelos de areia’ que construía na praia. Na verdade essa idéia estava correta, porque o grande arquiteto catalão sempre respeitou e valorizou as formas da natureza em sua obra. (2)

Antoni Gaudí, cujo aniversário de 150 anos de nascimento se comemora este ano em diversos países, foi um arquiteto contemporâneo de seu tempo, com projetos marcantes que não podem ser rotulados ou enquadrados nos limites estreitos das ‘escolas’ arquitetônicas. Suas obras, que indiscutivelmente representam o mais importante conjunto de contribuições para a difusão do modernismo catalão, somente de forma demasiadamente reducionista podem ser consideradas como restritas a essa manifestação.

Já na década de 60 Roberto Pane afirmava que deve-se reconhecer que Gaudí não tem lugar no Art Nouveau nem no Expressionismo, apesar de algumas superficiais analogias que referem sempre a um artista com a linguagem do seu tempo” (3). Hoje essa interpretação passa a ser acatada pelos estudiosos, ganhando foro universal e tornando inválidas todas as intenções classificatórias burocráticas e menos sensíveis como a de Oriol Bohigas (4) e Carlos Flores (5), que o definem genericamente como Modernista.

O entendimento de Pane, de maior abrangência e amplitude, parte de uma percepção da arquitetura como ‘fato cultural’. Um testemunho que reflete a produção de uma comunidade, respeitando a genialidade, mas permitindo a análise da obra arquitetônica como algo que transcende à obra de autor (no sentido consagrado na Idade Média de ‘autor iluminado’), rebatendo o trabalho para o contexto da sociedade na qual foi produzido.

Nesse sentido é esclarecedora a frase de Ramón Gutierrez (6), que se refere à Arquitetura como “uma fonte inesgotável de associações e expressões, que evidenciam as formas de pensamento e as atitudes culturais da comunidade”, valorizando os aspectos simbólicos, que permitem interpretar (entendidos como linguagem) os possíveis significados da obra arquitetônica analisada.

O contexto

A obra de Gaudí está impregnada pelo marcante desenvolvimento que acontecia na região de Barcelona, uma das primeiras a adotar os novos paradigmas que definiram a ‘Revolução Industrial’. Em virtude desse processo de industrialização intensiva e conseqüente enriquecimento, consolidado na segunda metade do Século XIX, assistiu-se à elevação dessa cidade à condição de um importante pólo econômico e cultural da Europa.

Ainda criança e, depois, como estudante de Arquitetura, vivenciou o ambiente da reforma urbana comandada por Ildefons Cerdà, cujos resultados são significativos até os dias atuais e visíveis na quantidade e qualidade dos edifícios, que ostentam riqueza e ousadia de conceitos. Esse fato, aliás, repercute até hoje, marcando presença em suas ruas que receberam nomes de arquitetos, pintores, músicos, poetas e filósofos importantes para a região, refletindo também através de uma significativa produção cultural. É nesse cenário fértil que floresceram as obras de Gaudí e seus contemporâneos, como Muntaner, Puig Cadafalch e vários outros.

O Conde Eusebi Güell, mecenas que por sua sensibilidade e abertura para aceitar soluções inovadoras e a antecipação do futuro, foi de fundamental importância para dar visibilidade ao trabalho de Gaudí, criou as condições para que fosse realizada a maior parte de suas obras, que marcaram a arquitetura européia e mundial. Além disso, como aconteceu também com Juscelino Kubitschek em relação a Oscar Niemeyer, teve a percepção de que, desse modo, poderia inscrever seu nome na história, de forma indissoluvelmente associada às obras que soube promover. É evidente que esse fato representa somente um aspecto circunstancial, mas criou as condições essenciais para as primeiras manifestações do talento e genialidade desse arquiteto, depois reconhecido e prestigiado internacionalmente.

O Conde Güell ocupou, a partir de 1888 o palácio que levou seu nome e que, de acordo com o Prof. Joan Bassegoda i Nonell, Curador da Cátedra Gaudí, vinculada à Escola de Arquitetura da Universidade Politécnica da Catalunha, “significa a consagração de Gaudí, já que mesmo sendo o arquiteto do templo da Sagrada Família (...) nessa residência vai poder desenvolver em muito pouco tempo, suas idéias construtivas e decorativas” (7).

O paradigma das formas curvas

Antoni Gaudí sempre rejeitou a dureza das linhas retas e a rigidez das formas ortogonais. Sendo um homem místico e de arraigadas convicções religiosas, atribuiu às formas curvas da natureza um sentido de divindade, repetindo sempre, como refere Puig i Boada (8), que a originalidade de sua obra consistia em voltar às origens que, para ele, era a Natureza como criação divina.

Sua maior ousadia consistia principalmente na forma ambígua e atrevida de estabelecer um intenso diálogo entre ‘código formal’ e soluções ‘estruturais’. Na aparência lúdica, que muitas vezes se aproxima do onírico, está sempre gravada a rígida coerência e o rigor técnico que Gaudí adotou para as soluções estruturais, que conseguia fazendo construir modelos ‘polifuniculares’, que geravam maquetes, para estudar as idéias a serem adotadas.

Como arquiteto Gaudí pode ser considerado sintonizado com seu tempo, mas capaz de se colocar à frente de seus contemporâneos pelo arrojo das soluções e a ousadia em inovar no uso das técnicas e dos materiais conhecidos. Ou seja, a coragem de dar asas à imaginação para ‘concretizar o sonho’.

Tanto assim que passando por Barcelona, em 1928, logo após a publicação da Declaração de La Sarraz (9), Le Corbusier surpreende-se com a criatividade da cobertura do pequeno edifício da Escola construída junto ao templo da Sagrada Família, fazendo um desenho em sua caderneta de anotações, associado à seguinte frase: “É a obra de um homem de uma força, uma fé, uma capacidade técnica extraordinárias, manifestada durante toda uma vida”.

Obra de antecipação

Atualmente é comum considerar que a conquista de grandes vãos com o uso do concreto ou aço, confere maior liberdade projetual permitindo o uso de painéis de fechamento, localizados de acordo com as necessidades dos moradores, constituindo o que se convencionou chamar ‘plantas livres’. Por volta de 1990, um edifício que adotava esse tipo de solução, projetado por um arquiteto paulista muito premiado, por desconhecimento da história, foi apresentado em grandes anúncios imobiliários veiculados pela imprensa, como um dos mais importantes avanços da arquitetura contemporânea brasileira.

Em Gaudí essa solução estava presente há quase um século. A Casa Milà, mais conhecida como ‘La Pedrera’, é um edifício praticamente ‘esculpido’ em pedra, mas que já tirava proveito da organização livre da planta dos diversos apartamentos, de acordo com os interesses de seus proprietários. Mais que isso, projetado antes mesmo que os automóveis fossem fabricados ‘em série’, o que só ocorreu a partir de 1907 com os Ford T (popularmente chamados de ‘calhambeques’), já dispunha de garagem subterrânea com uma vaga por apartamento, com acesso por rampa. Hoje transformado em centro cultural, esses espaços receberam novos usos, como locais de exposição e auditório.

O Parque Güell, por sua vez, um espaço público criado como loteamento, onde as residências se localizariam em meio a jardins, tem como um dos pontos de maior interesse a praça elevada, construída sobre uma colunata que apóia um reticulado de abóbadas, emoldurado por confortáveis bancos revestidos de azulejos, quebrados em pequenos pedaços para permitir as formas curvas suaves, com uma segunda função de muro de proteção. Os arrimos e colunas inclinadas de sustentação construídos em pedra rústica, evidenciam uma solução criativa e de extremo rigor técnico, para a contenção das encostas.

A intenção inovadora, entretanto, nem sempre é bem compreendida e aceita. O sentido de antecipação de sua obra, visível principalmente nas fachadas sinuosas da Casa Milà, que até hoje causam tanta surpresa, provocou reações polêmicas junto à população, chegando mesmo a ser divulgada numa revista de crítica de costumes, uma caricatura desse edifício. O hotel que projetou para Nova York, bem anterior e mais alto que o ‘Empire State Building’, causou um impacto tão forte que nunca chegou a ser construído

Respeito aos valores culturais

Não se imagine, porém, que inovação e criatividade podiam fazer com que Gaudí negasse, ou mesmo se afastasse dos valores e tradições da cultura catalã. Assim como a obra de Oscar Niemeyer está impregnada pelos valores do barroco mineiro, na produção gaudiniana a ‘identidade cultural’ ibérica está permanentemente retratada. Reflete o Mediterrâneo como local de confluência de culturas muito diversas e, sobretudo Barcelona, como seu centro de referência nos últimos séculos. Principalmente em suas primeiras obras, verifica-se o intenso uso de azulejos e gelosias (muxarabis), de tetos muito elaborados, de varandas e diversos outros elementos presentes nas obras dos quase oito séculos de ocupação árabe da Península Ibérica, mesmo sendo essa influência bem mais sensível na Andaluzia que na Catalunha.

Sua produção arquitetônica pode ser considerada como um ponto de encontro da cultura de seu povo. Mais ainda, baluarte de resistência contra a tendência de internacionalização do ‘Art Nouveau’. Uma vida inteiramente dedicada à profissão que escolheu, Gaudí não constituiu família, alegando que isso tornaria impossível seu total envolvimento com a Arquitetura, despertando até mesmo uma dimensão de designer do mobiliário e dos objetos que iriam compor os ambientes dessas obras. Era místico, conservador e autor de uma obra monumental que marcou sua época, conquistando o respeito internacional e projetando intensamente os valores culturais de sua terra e de sua gente.

Mas há momentos de manifestação de grande força também na pequena escala, como na simplicidade da Escola elementar junto à Sagrada Família, projetada em 1909, cuja cobertura de abóbadas foi totalmente resolvida com aplicação do arco hiperbólico, contrastando com as torres colossais do templo que se elevam ao seu lado. Do mesmo modo no portão de entrada e muro que cercava a Chácara Miralles, que poderia ser considerado como obra menor, mesmo contrariando sua visão de que não havia projetos pequenos, ou indignos de um grande arquiteto.

O que prevalecia sempre era uma intenção subjacente em toda sua vasta produção arquitetônica, de expressar beleza e emoção através de um profundo rigor técnico. Uma frase de Lara Masini (10), como definição da obra desse importante arquiteto catalão sintetiza, com rara felicidade, o sentido de toda a sua vida: “A lição ativa e vital de Gaudí reside, certamente, na inextinguível e ansiosa busca da expressividade”.

notas

1
ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do Mundo. Itabira, Edição do autor, 1940. A estrofe pertence ao poema Edifício Esplendor, que inspirou o nome da revista literária Edifício, em 1946:

Na areia da praia
Oscar risca o projeto
Salta o edifício
da areia da praia
No cimento, nem traço
da pena dos homens.
As famílias se fecham
em células estanques.
O elevador sem ternura
expele, absorve
num ranger monótono
substância humana.
Entretanto há muito
se acabaram os homens.
Ficaram apenas
tristes moradores.

2
Gaudí considerava a linha curva como paradigma das formas da natureza, um legado divino, e a reta como Criação menor, tipicamente humana. Em sua atitude mística, realizava obras com o uso de formas curvas, como busca para alcançar algo superior, como explicita na frase: “A realização de alguma coisa é colocar sua lei de acordo com a lei da Criação; e para consegui-lo é imprescindível a experiência, que é a sanção da criação”.

3
PANE, Roberto. Antoni Gaudí. Milão, Itália, Edizioni di Comunita, 1964.

4
BOHIGAS, Oriol. Arquitectura Modernista. Barcelona, Editorial Lumen, 1968.

5
FLORES, Carlos. Gaudí, Jujol y el Modernismo en Cataluña. Madrid, Aguilar, 1983.

6
GUTIERREZ, Ramón. Preservação do patrimônio arquitetônico como agente dinamizador da consciência cultural americana. Rio de Janeiro, Pró-Memória, 1983.

7
BASSEGODA I NONELL, Juan. Gaudí, Arquitectura del futur. Barcelona, Salvat Editores, 1984.

8
PUIG I BOADA, Isidre – El Pensament de Gaudí. Barcelona, Col-legi d’Arquitectes de Catalunya, 1981.

9
Em 1928, Le Corbusier integrava o grupo de arquitetos defensores da consolidação do ‘Movimento Moderno’, que se reuniu no Castelo de La Sarraz Vaud, na Suíça (hóspedes de Mme. Hélène de Mandrot), onde criou os CIAM (Congrès Internationaux d’Architecture Moderne), que três anos depois aprovaria, na Grécia, os termos da ‘Carta de Atenas’.

10
MASINI, Lara – Antoni Gaudí. Barcelona, Ediciones Nauta, 1970.

sobre o autor

Ari Antonio da Rocha é arquiteto e designer e pesquisador em Educação Continuada e à Distância. Doutor em Arquitetura / Desenho Industrial (FAUUSP 1973) e Pós-Doutorados (Cátedra Gaudí/UPC – Barcelona 1987; NUTAU/USP 2000). Representante da Cátedra Gaudí/UPC para o Brasil; membro titular da Academia de Ciências – RN; membro efetivo do Conselho Superior do IAB, onde coordena a Comissão Nacional de Formação Profissional (GT Ensino); assessor da presidência da ABENGE

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