Tivemos a oportunidade de responder há alguns dias 3 perguntas que me foram enviadas pelo Caderno Mais do jornal "Folha de São Paulo" (publicadas em 08 de outubro de 2000, na honrosa companhia de Regina Meyer). Como as perguntas eram complexas e o espaço destinado para respondê-las reduzido, impôs-se a necessidade do recorte dos argumentos e idéias. O resultado ficou muito a desejar – principalmente por parecerem minhas idéias ali apresentadas mais pessimistas do que realmente são – e achamos por bem registrar aqui, mesmo que para um público menor, as respostas tais como gostaríamos de ver publicadas no maior jornal do país.
1. A cidade ainda é um espaço público?
Redimensionando a questão, é preciso ter claro que o espaço público convive nas cidades com os espaços privados, onde o acesso coletivo é facilitado ou não de acordo com os interesses específicos de seus proprietários. Diversos espaços privados – shopping-centers, clubes sociais, estádios, grandes conglomerados de shows e eventos – cumprem hoje funções equivalentes aos exercidos pelo espaço público ao longo da história – história, inclusive, muito curta, afinal só podemos falar de um espaço efetivamente público em sociedades complexas do mundo moderno. A perda que ocorre é importante de se registrar, pois como ela é sutil, passa muitas vezes desapercebida. O que temos aqui é novamente a dissociação de âmbitos distintos do homem contemporâneo, suas facetas de contribuinte/consumidor e de cidadão. O que caracteriza o espaço público é a posse mediatizada por parte de um ente abstrato – a comunidade. O equilíbrio necessário ao bom funcionamento dessa propriedade compartilhada é facilmente quebrado por fenômenos diversos – violência urbana, má administração, leis inadequadas, desigualdade social, má educação coletiva, etc. – implicando no seu abandono e degradação. Nestas condições ruins e desagradáveis, como a parte mais imediata de suas necessidades como contribuintes não são atendidas, muitos daqueles que "pagam" pela qualidade do espaço público se resignam a ter sua fruição anímica, sua paz de espírito e sua diversão garantidas em espaços resguardados da sujeira e do perigo. As novas e luxuosas "catedrais da diversão e do consumo" consolidam-se como espaços da exclusão, onde os privilegiados que podem pagar pelo acesso abandonam voluntariamente o espaço público. Com isso, abdicam de sua faceta cidadão, assumindo unilateralmente seu lado consumidor, achatando à altura de uma folha de papel o estatuto da cidadania. Legiões de jovens estão se criando assim não só no Brasil mas em diversos países onde a desigualdade social é gritante como a nossa, longe das praças, calçadas, parques, avenidas e bosques, habitando enclaves segregados e segregacionistas no meio das grandes metrópoles. O espaço público, local onde a cidadania se efetiva no mais alto grau – afinal só é possível diante de uma situação minimamente satisfatória de equilíbrio entre direitos e deveres de todos – vê-se assim abandonado aos pobres e deserdados, mantendo do verdadeiro estatuto do "espaço público" apenas uma de suas qualidades – o livre acesso, mesmo assim prejudicado pela obliteração constante da ordem e da lei. A perda é de todos, mesmo que o discurso neo-liberal, tente identificar o contribuinte ao cidadão (o que significa que quem "paga impostos" tem mais direitos dos que os que não pagam, evidentemente um processo duplo de exclusão!).
2. É possível reverter o caos urbano de cidades como São Paulo ou Rio de Janeiro?
O "caos urbano" é materialização lógica da complexa correlação de forças dos agentes sociais. Ou seja, é uma ilusão acreditarmos que a configuração material da cidade seja "caótica" se com este termo estamos apontando para algo sem controle ou sem explicação. Os mecanismos sociais, políticos, econômicos e institucionais que induzem ou mesmo determinam as transformações físicas das cidades são muito complexos, mas suficientemente conhecidos para que evitemos o termo "caos" como uma denominação apropriada. Contudo, condições sócio-econômicas semelhantes podem produzir espaços urbanos qualitativamente diferentes, pois as sociedades de classes do capitalismo avançado são muito diversificadas na gestão urbana. O aporte prioritário dos recursos sociais – tanto econômico como intelectual – em malha viária, equipamentos sociais, habitação social, infra-estrutura ou espaço público resulta em cenas urbanas muito distintas. A prova contundente dessa acertiva é a própria distinção entre as administrações atuais de Rio de Janeiro e São Paulo, ambas lideradas por coalizões que habitam a mesma raia do espectro político. Enquanto no Rio de Janeiro diversos projetos urbanísticos de interesse social foram e estão sendo implementados nas duas últimas administrações, São Paulo teve que se contentar com os talvez oito anos mais nulos de toda sua história. Tal distinção de certa forma está sendo agora julgada pelas urnas eleitorais, talvez comprovando que um do grandes problemas das cidades brasileiras, corroborada pelas pouquíssimas exceções, é a simbiose entre incompetência e mau-caratismo. Assim como podemos verificar em sociedades mais equânimes, não é contraproducente imaginarmos uma regular alternância dos partidos no poder, desde que haja o mínimo necessário de esclarecimento do real papel da administração pública no âmbito local. A ação administrativa ética e democrática amparada pelo conhecimento urbanístico é a única maneira de converter o anseio coletivo abstrato e conflitante em uma cidade mais humana para todos.
3. Qual será o perfil da cidade do século 21?
Parece que estaremos fadados à sobreposição de muitas cidades, uma mescla da dispersão populacional pelo território induzida pelas vias expressas, trens de alta velocidade e novas mídias que permitem o trabalho à distância, da concentração exponencial de infra-estrutura em nódulos de tecnologia de ponta, da sobrevivência dos antigos centros históricos reforçados como espaços simbólicos indutores de identidades colocadas em xeque pelo fenômeno da globalização, da especialização do caráter das chamadas cidades mundiais como pólos culturais, tecnológicos ou turísticos, da migração transnacional em grande escala impulsionada por conflitos sociais e catástrofes naturais, de nichos de pobreza endêmica imposta aos excluídos pela nova ordem mundial. Contudo, é possível também imaginar que a proporção de cada um dos fatores e a prevalência dos aspectos positivos ou negativos de cada um deles será dada por âmbitos distintos: o peso específico sócio-econômico de uma dada cidade ou região metropolitana em relação ao mundo globalizado (âmbito internacional) e a correlação de forças político-culturais dentro da própria coletividade urbana (âmbito local). Não há nenhuma cidade no mundo, mesmo as mais ricas dos mais opulentos países (EUA, Alemanha, Japão, França ou Inglaterra), que não tenha dentro de suas fronteiras áreas de extrema pobreza. Há em todas elas uma gradação de áreas no que diz respeito à qualidade urbanística (serviços, áreas livres, equipamentos, infra-estrutura, etc) que vai do "primeiro" ao "terceiro" mundo! Mas não há como negar que a proporção entre riqueza e pobreza (aspecto social) e controle e degradação (aspecto urbanístico) estão desproporcionalmente distribuídos e a reversão desta situação, mesmo que parcial, também passa pelos âmbitos local e internacional. Jogar nas duas frentes é o que fazem as cidades chamadas "mundiais" e, mesmo que novos enganos e desvios ideológicos escamoteiem parte das nobres intenções, fechar os olhos ao fenômeno é ainda mais preocupante e alienante. Se, por um lado, o sonho de uma cidade absolutamente controlada por planos abrangentes e extensivos está fadado ao esquecimento, por outro é possível se desenhar cenários muito distintos com os mesmos elementos em jogo. É possível ainda escolher entre o vale-tudo arrivista da acumulação pela acumulação e o controle racional e democrático de vários aspectos da fisicalidade urbana. Com os necessários ajustes e deslocamentos de conceitos e práticas, ainda há tempo de nos filiarmos à tradição humanista onde haja a prevalência da razão voltada para o bem estar coletivo.
notas
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As passagens em itálico foram publicadas no caderno Mais do jornal "Folha de São Paulo", domingo, 08 de outubro de 2000, p. 3.
sobre o autor
Abílio Guerra é professor da FAU PUC-Campinas, editor de Arquitextos e ex-editor da Óculum.