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AMORIM, Luiz Manuel do Eirado. Edifício Luciano Costa. Um enfoque apositivo. Arquitextos, São Paulo, ano 01, n. 005.09, Vitruvius, out. 2000 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/01.005/975>.

O Edifício Luciano Costa, projetado pelo arquiteto Delfim Amorim, em Recife, em 1959, caracteriza-se por uma intervenção em um edifício eclético, construído nos anos 10, para abrigar funções comerciais e de serviços. A intervenção do arquiteto caracteriza-se, essencialmente, pelo encamisamento do edifício eclético por um véu de elementos vazados, preservando-o para uma futura restauração, e estabelecendo uma imagem moderna para o empreendimento. O edifício faz parte do conjunto de obras de destaque incluídas no perímetro de tombamento do Bairro do Recife estabelecido pelo IPHAN, em 1997, estando, portanto, protegido por lei federal.

A intenção deste trabalho é analisar com mais profundidade os princípios que nortearam a intervenção elaborada por Amorim, identificar as características essenciais que deveriam ser preservadas e definir diretrizes para uma possível ação no imóvel. Mais ainda, procura caracterizar o edifício como um marco do Bairro do Recife, reconhecido, muito provavelmente, pela grande maioria dos seus transeuntes, e que, por sua importância arquitetônica, poderá polarizar investimentos para ações mais contundentes na revitalização daquele sítio urbano.

O edifício eclético

O edifício eclético, objeto da intervenção de Amorim, surgiu no bojo de um dos planos de reforma urbana executados no Recife nas primeiras décadas deste século. Desse conjunto de planos e obras fizeram parte o Plano de Saneamento do Recife (1909-1915), do engenheiro Saturnino de Brito, autor de projeto semelhante para Santos, e o Novo Projeto de Melhoramentos do Porto (1909-1925), que englobava não apenas a ampliação e melhoramento dos serviços portuários, como a reforma de parte do bairro portuário da cidade - o Bairro do Recife (2).

Essa grande intervenção urbana teve seu início em 1911, e significou, além de uma completa transformação na paisagem urbana da cidade, uma "completa reestruturação ambiental e social" (3). A reforma urbana definiu um novo parcelamento do solo, com a ampliação da área dos lotes, e conseqüente redução do número de parcelas disponíveis e o aumento no preço de comercialização. Define-se, portanto, uma elitização do bairro - pelo aumento do custo dos lotes e imóveis, e uma especialização das atividades - com a substituição do pequeno comércio e habitação pelo capital mercantil e financeiro. Esse fator elitizante pode ser notado pela adoção de normas rigorosas para a aquisição dos novos lotes, maiores e dotados de infra-estrutura urbana, tais como a obrigatoriedade da construção do imóvel em 12 meses, prorrogável por mais 1 ano, com multa mensal de 1% do valor do terreno. Caso a obra não fosse concluída no período, o terreno voltaria para a posse do governo.

O novo desenho da cidade, baseado na Paris de Haussman, surge da demolição de parte significativa do tecido colonial do Bairro do Recife, originado da progressiva expansão do arruamento espontâneo do antigo Povo do Arrecife. Na demolição sucumbiram edificações e conjuntos urbanos de importância histórica e arquitetônica, como os arcos de acesso ao bairro, remanescentes do Recife fortificado do século XVII, a Matriz do Corpo Santo, a primeira edificação religiosa a ser edificada na cidade, e o seu largo emoldurado pelos característicos sobrados recifenses - magros e altos.

O novo plano do Bairro caracteriza-se por um conjunto de vias radiais, traçadas a partir do Cais Alfredo Lisboa, definindo uma morfologia urbana completamente diversa daquela constituída ao longo da ocupação portuguesa. Fruto deste novo parcelamento urbano, surgem lotes de forma triangular, favorecendo a exploração plástica das agudas esquinas formadas. Os edifícios situados na Praça Rio Branco, convergência das vias radiais e ponto focal de toda a composição urbana, evidenciam essa característica do novo tecido pela localização dos seus acessos nas esquinas e pelo uso de torres arrematadas por cúpulas de diversas formas e revestimentos (4).

Em um daqueles lotes triangulares, criado com a construção das avenidas Central (atual Rio Branco) e Marquês de Olinda, e o prolongamento das Ruas do Bom Jesus e Dona Maria César, foi construído o imóvel eclético em questão, provavelmente na segunda metade da década de 10 (5). A peculiaridade de sua situação, com frentes voltadas para as principais ruas do novo conjunto urbano, foram determinantes para a sua concepção arquitetônica. Dotado de três pavimentos, o edifício organizava-se em torno de um pátio coberto central, para onde voltavam-se as circulações dos dois pavimentos superiores. Sua composição foi elaborada a partir de um eixo de simetria definido pela esquina da Rua do Bom Jesus com a antiga Avenida Central, o que correspondia ao ponto de melhor visada da Praça Rio Branco. Dessa forma, o edifício incluía-se na composição do novo cenário urbano, notadamente pelo arremate daquela esquina por uma torre de base circular, coroada por cúpula revestida em chapa metálica, adequando-se, assim, ao panorama do bairro das torres. Seu térreo apresentava tratamento em bossagem contínua, sobre o qual assentavam pilastras coríntias em ordem dupla. Cornija e platibanda continuas arrematavam a composição. Apresentava como característica particular, o jogo de balcões, com guarda corpo em balaústres, projetados das aberturas de elegantes proporções verticais.

Internamente, o edifício caracterizava-se pela compartimentalização do plano em salas isoladas, dispostas ao longo das vias públicas e acessíveis por corredores abertos, voltados para o pátio triangular interno. Os altos pés direitos conferiam o conforto térmico necessário para a ocupação e bom desempenho das tarefas cotidianas. Neste sentido, o pátio coberto prestava-se para a exaustão do ar quente, através de um conjunto de esquadrias de veneziana de madeira localizadas abaixo de sua estrutura de coberta (6).

Pode-se afirmar, que os aspectos que identificavam este edifício no contexto do Recife Novo (expressão usada para se referir ao trecho reformado do bairro) eram, em síntese, os seguintes: (a) a forma e a situação inusitada do lote; (b) a torre, como referência urbana e compositiva do edifício; (c) o pátio central, como elemento de integração visual de suas diversas partes; (d) os balcões, amplamente utilizados nos edifícios ecléticos construídos no período.

A intervenção moderna

Antes da intervenção moderna, o edifício foi ocupado pela Alfândega, e precedido pelo Banco Agrícola e Comercial de Pernambuco, conforme atesta o Guia Turístico do Recife, de 1935. O seu último ocupante deixou o edifício em péssimas condições de conservação, conforme atestaram os operários que participaram dos trabalhos de reforma. Este parece ter sido um dos motivos da solicitação feita ao arquiteto Delfim Amorim, em 1959, para a reforma com mudança de uso daquele edifício. De fato, o interesse dos novos proprietários era a sua recuperação e otimização do seu potencial imobiliário.

Ao que parece, o desejo dos novos proprietários era a transformação do edifício de gosto eclético, de plano compartimentado, em um "moderno edifício de escritórios", compatível com as demandas do mercado. O programa básico consistia em lojas, no pavimento térreo, e salas de escritório, nos demais pavimentos, obedecendo ao principio do plano livre, viabilizando assim, a adaptação do espaço para qualquer locatário. Um dos proprietários do imóvel era o Sr. Luciano Costa Júnior, comerciante de grande prestígio social na cidade (7).

Cabe aqui uma pergunta: porque os proprietários não investiram na demolição e construção de um edifício em altura, já que não havia restrições quanto à preservação do imóvel, nem tão pouco restrições para a verticalização da área? Uma possível resposta para essa questão seria os limitados recursos disponíveis. De fato, não havendo na época o instrumento da incorporação imobiliária e/ou facilidades para financiamento de construção, a limitação dos recursos próprios pode ter sido o parâmetro para a definição do empreendimento.

O estudo preliminar

A primeira proposta apresentada por Amorim é contundente. Ela procura otimizar o volume edificado e transformar a epiderme do edifício, modernizando-a. Esta proposta inicial, não preservava nenhuma das características originais do edifício, o que torna mais importante o entendimento do processo de elaboração da solução final do projeto de reforma. De forma resumida, seu estudo preliminar previa as seguintes intervenções:

(a) A ocupação máxima do volume edificado, com a demolição total das paredes internas e pisos, e a construção de 5 pavimentos, além do pavimento térreo, concebidos como planos livres;

(b) A ocupação do pátio central pelos sistemas de circulação vertical e horizontal, sanitários e poço de exaustão e iluminação. Esta solução reflete o desejo de racionalização construtiva, com a concentração dos serviços em uma mesma prumada, localizada na área de menor valor comercial, bem como o desejo de utilizar o máximo de área disponível.

(c) A modificação da fachada do pavimento térreo, com a inclusão de vitrines em ferro e vidro para as lojas comerciais, e a retificação do paramento do edifício;

(d) Propunha a construção de uma varanda corrida em cada pavimento, protegida por uma retícula em concreto, preenchida por brises verticais em concreto e elementos vazados de diversos formatos, numa composição semelhante àquela concebida por Lúcio Costa para o conjunto de edifícios residenciais do Parque Guinle (1948-1954), no Rio de Janeiro. Vale salientar que a utilização do elemento vazado se enquadrava nas investigações desenvolvidas pelo arquiteto em busca de uma arquitetura de diálogo com o clima local, bem como sua utilização como elemento marcante do vocabulário arquitetônico moderno brasileiro. O conjunto de residências para a Fábrica da Tacaruna, de 1953, e o Edifício Pirapama, de 1956, são exemplos felizes de aplicações de elementos vazados antes do Edifício Luciano Costa. A proposta de recobrir inteiramente o edifício com elementos vazados comparece, ainda, em várias obras do arquiteto, como no Colégio Nóbrega (com Heitor Maia Neto) de 1969, e no Seminário Regional do Nordeste (com Marcos Domingues e Florismundo Lins) de 1962, em todos eles atendendo ao interesse de proteger os ambientes da insolação direta, obtendo uma redução da carga térmica do edifício.

Essa proposta de intervenção em muito se assemelha a outras propostas de modernização de edificações do centro histórico do Recife. Aliás, essa proposta de modernização e atualização estilística é recorrente na história do Recife. O próprio Bairro do Recife já havia testemunhado este mesmo processo, com a substituição dos muxarabis e rótulas dos sobrados coloniais, por balcões com guarda corpo em ferro fundido e esquadrias de venezianas e vidro, além da substituição dos beirais por platibandas em alvenaria adornada, numa aproximação ao gosto neoclássico, predominante na época. Já neste século, com a renovação urbana anteriormente referida, muitos sobrados sofreram reformas nas suas fachadas, procurando uma mímesis com os edifícios ecléticos que começavam a ser construídos. Este mesmo fenômeno pode ser notado, mais recentemente, com a retirada dos elementos decorativos do vocabulário clássico e sua substituição por um tratamento compositivo de gosto modernista. É comum, neste período, a aplicação de azulejos e pastilhas cerâmicas nas fachadas, e a substituição das esquadrias de madeira por básculas de ferro e vidro. Em todas esses exemplos um novo repertório arquitetônico é agregado à estrutura do edifício, numa atitude que poderia ser chamada de substitutiva: a epiderme do edifício é modificada para receber uma roupagem mais adequada aos novos tempos.

O estudo preliminar, portanto, enquadra-se nessa premissa modernizadora e substitutiva. Porém, a edificação que hoje conhecemos, é fruto de uma postura diversa. Ela parte do princípio de sobreposição de princípios compositivos e procedimentos técnico-construtivos contemporâneos, sem a remoção completa da epiderme original do edifício. Segundo informações de contemporâneos do arquiteto (8), Amorim deliberadamente imaginou o encamisamento do edifício como uma forma de preservá-lo para uma futura intervenção restauradora de suas características ecléticas originais. Assim, o arquiteto abandona a atitude substitutiva e propõe um diversa, que pode ser identificada como apositiva.

Quais foram os motivos que determinaram essa mudança? Essa pergunta pode ser respondida pela confrontação dos documentos existentes, dos depoimentos de profissionais envolvidos na construção e do testemunho do próprio edifício.

O projeto

O projeto arquitetônico foi concluído em 18 de dezembro 1959 e aprovado pela Prefeitura Municipal do Recife em 26 de janeiro de 1960. Neste, mudanças significativas podem ser identificadas, quando comparadas ao estudo preliminar. O projeto aproveita de forma mais eficiente a estrutura e organização espacial do edifício. Os pisos e pés-direito originais são mantidos, com a exceção do pavimento térreo, que recebe a inserção de uma sobreloja. A planta obedece aos limites existentes e ordena os espaços internos para servir ao novo uso.

O arquiteto mantém o mesmo tratamento exterior para o pavimento térreo, como sugerido no Estudo Preliminar, e confirma a entrada principal do edifício pela Rua Dona Maria César, com a apropriação da área de acesso principal original por uma das lojas propostas. Quanto à ocupação do pátio interno, algumas mudanças ocorrem, forçadas pela decisão de intervir minimamente na estrutura original do edifício. As prumadas dos banheiros são deslocadas para atender a cada sala individualmente. São mantidos no pátio central as circulações verticais e horizontais, área para exaustão e os sanitários de dois conjuntos de salas. As áreas remanescente do pátio são incorporada pelas salas voltadas para a Rua do Bom Jesus.

Porém, apesar destas mudanças significativas no projeto de intervenção, o arquiteto mantém o desejo de envolver o edifício com uma membrana de elementos vazados, expressando, no entanto, outro sentido. Se no estudo preliminar a membrana surge para proteger uma varanda, no projeto, com a manutenção dos pisos originais e a eliminação da varanda, o arquiteto opta por uma membrana que intenta homogeneizar o tratamento plástico do edifício. Para tanto, a solução plástica adotada desconsidera a organização planimétrica e altimétrica do edifício, como pode ser percebido na composição da retícula estrutural que define a membrana de elementos vazados. A marcação estrutural da membrana não corresponde aos níveis dos pisos internos, gerando uma fachada que denuncia a existência de 4 pavimentos, quando na verdade existem apenas 3 pavimentos (incluindo a sobreloja). Da mesma forma, as aberturas no plano de elementos vazados, que sugerem a presença de um observador, não correspondem à distribuição das janelas existentes no edifício original. Ou seja, o arquiteto propõe uma fachada falsa, cuja composição é livremente estabelecida.

A inserção dessa nova fachada não é feita sem uma considerável intervenção no fachada original. O projeto destaca a retirada dos elementos decorativos da fachada e das cercaduras das janelas, bem como dos balcões, que tanto identificavam o edifício. A estrutura de suporte da nova fachada é engastada na alvenaria original sem observar o local mais adequado para a sua inserção. Ela interfere na continuidade das cornijas e arquitraves, destróe aleatoriamente diversos elementos decorativos e interrompe a bossagem do pavimento térreo original. Essas indicações sugerem que o arquiteto estava mais preocupado com a construção de uma face para o empreendimento, do que com a salvaguarda do edifício eclético. Neste caso, cairia por terra a tese de uma intervenção conservadora por parte do arquiteto, ao menos parcialmente.

Quais teriam sido as razões para as mudanças ocorridas entre o estudo preliminar e o projeto? Uma hipótese, aventada inclusive por Geraldo Gomes, teria sido a redução do custo da construção. Seria mais econômico encobrir do que reconstruir. Outra hipótese seria fundamentada em problemas de natureza estrutural. A estrutura de alvenaria do edifício original não apresentaria a resistência necessária para absorver os esforços dos novos pavimentos sugeridos no estudo preliminar, exigindo, consequentemente, um alto custo para seu reforço. Segundo o engenheiro João Augusto Carvalho, responsável pela obra, o engenheiro Humberto Baltar foi o autor do cálculo estrutural do projeto de intervenção, e esteve presente nas decisões projetuais tomadas pelo arquiteto. Talvez a conjugação desses dois aspectos tenham, de fato, direcionado o arquiteto para uma solução mais viável economicamente.

O edifício

Do projeto aprovado para construção pela municipalidade poucas alterações podem ser notadas (dimensionamento da caixa de elevadores, ampliação do hall de acesso do térreo com a inclusão de parede curva azulejada, nivelamento do plano térreo com a calçada, entre outros), e nenhuma delas indica uma mudança na atitude apositiva formulada no projeto. O edifício, porém, apresenta uma redução considerável no número de intervenções na fachada eclética, corroborando com a idéia de uma intervenção mais preservadora do que descaracterizadora, reforçando o caráter híbrido da proposta. Híbrido, por utilizar um repertório formal moderno em diálogo com o ecletismo do edifício original. Híbrido, porque apresenta duas posturas de intervenção: (a) substitutiva, no tratamento do pavimento térreo e na ocupação do pátio interno; (b) apositiva, no encamisamento dos pavimentos superiores e na manutenção dos contornos e características originais de alguns espaços (sala oval, colunas do antigo pátio, manutenção das aberturas nas suas características originais). Híbrido porque o arquiteto deixa latente na edificação dois tipos de espaços: o eclético transformado e o moderno idealizado.

Esses dois instantes do edifício - o moderno e o eclético – são apresentados aos seus usuários em seqüência. Primeiro o visitante penetra em um edifício de características modernas e, em etapas sucessivas, percebe a simbiose dos edifícios eclético e moderno, até ser apresentado aos seus referentes máximos, no instante do usufruto da janela. Ali o arquiteto construiu o espaço da ruptura, cujos limites são as sínteses dos edifícios metamorfoseados: a fachada eclética e a película moderna de combogó. Este espaço, anteriormente referido como locus da ruptura parece ser a grande contribuição arquitetônica contida no edifício (9).

Outra propriedade ímpar presente na obra é a idéia contida no princípio de encamisamento do edifício eclético pela membrana de elementos vazados. Essa presumível atitude de preservar a fachada eclética para uma posterior restauração, anteciparia a recente valorização daquela arquitetura, contrapondo-se à atitude modernista de desprezo pelo "bolo confeitado" (expressão corrente entre modernos para se referir ao ecletismo). Essa postura é apontada por muitos como a mais significativa lição dada pelo arquiteto nesta obra. Se essa perspectiva conservadora do arquiteto é verdadeira, ela teria sido tomada não pelo valor arquitetônico do edifício como obra isolada, mas sim por sua inserção em um conjunto urbano harmônico, antecipando critérios de preservação de edifícios históricos que levam em consideração os valores do conjunto urbano e não apenas do monumento históricos isolado per si.

Vale salientar que o arquiteto, como consultor do IPHAN, teve a oportunidade de discutir e analisar cuidadosamente com os técnicos daquele órgão, critérios e princípios de restauração e conservação de monumentos. Dessa forma, não seria surpresa se a proposta de intervenção no imóvel eclético tivesse sido formulada com base na premissa de sua conservação para uma futura ação restauradora.

Finalmente, um último aspecto de vital importância para entendimento da obra se refere a utilização de uma fachada falsa para expressar a modernidade desejada pelo cliente. De fato, o véu de elementos vazados se constitui como uma fachada falsa não apenas porque encobre uma edificação eclética, mas principalmente porque ela sugere a existência de quatro pavimentos, quando na realidade a edificação contém apenas três pisos, e as perfurações feitas na película de elementos vazados não apresentam nenhuma relação com as janelas existentes. Neste sentido, a utilização da fachada moderna, constituída como uma estrutura autônoma e auto-referente, está muito próxima daquilo que Venturi chamou de decorated shell (10).

Em nenhuma outra obra o arquiteto utilizou estes princípios com tal liberdade. É curioso notar que essas atitudes revolucionárias latentes no Edifício Luciano Costa não foram repetidas pelo arquiteto em outras intervenções em edifícios históricos, inclusive aqueles existentes no Bairro do Recife (11). Em projeto de reforma para o edifício nº 191 da Rua Vigário Tenório, solicitado pelo o mesmo Luciano Costa Júnior, Amorim retira toda a epiderme eclética do imóvel e a substitui por pastilhas cinzas e brancas, ordenadas em panos verticais, em uma composição pobre, simplesmente acomodada à distribuição das aberturas na fachada. Será que aquela postura apositiva não foi aprovada pelo proprietário? E pelo arquiteto? Será que a postura substitutiva demonstrou ser a mais econômica, e portando, a mais adequada para projetos especulativos de modernização de edifícios?

Geraldo Gomes parece concordar com essa hipótese. Segundo ele, "o véu de noiva" ... se justificaria simplesmente como uma prática visando a redução de custos da obra e fundamenta a improbabilidade de uma postura conservadora do arquiteto neste edifício citando uma série de obras nas quais o arquiteto utilizou uma linguagem plástica que "ignorava o contexto tipológico onde seria inserido", ou seja, sem seguir aquela postura apositiva. O autor conclui seu artigo afirmando que o arquiteto "incorporou e transmitiu, com admirável coerência, o espírito modernista de estética das cidades", que segundo ele pode ser identificada por sua "evidente marca iconoclasta" (12).

É muito difícil especular sobre idéias que, presumivelmente, edifícios podem anunciar. No caso em estudo, o seu autor não está presente para discutir os fundamentos utilizados para o desenvolvimento do projeto, nem tão pouco existem documentos que os comprovem. Por outro lado, os edifícios, de fato, nos falam, nos afetam os sentidos, e é a ele que devemos sempre nos reportar, porque arquitetura é antes de mais nada obra edificada. No caso do edifício Luciano Costa, mais importante do que as intenções do arquiteto, são as indagações formuladas, e ainda presentes, quando o arquiteto decidiu pelo encamisamento do edifício eclético. O que é interessante discutir agora não é se o edifício é representativo ou não do pensamento do arquiteto. Se ele representa uma antevisão consciente do arquiteto de posturas preservacionistas ou uma atitude revisionista frente aos cânones modernistas, parece ser de pouca importância. O edifício Luciano Costa não é apenas importante porque é um exemplar inusitado no conjunto da produção do arquiteto. A obra suplanta o seu autor, porque as questões que ele apresenta não podem ser limitadas pelos contornos de sua obra.

notas

1
Esse texto é parte da apresentação realizada III Seminário DOCOMOMO Brasil. A permanência do moderno, que aconteceu durante a 4ª Bienal Internacional de Arquitetura de São Paulo, 1999/2000. Ele é complementado pelo texto Diretrizes para uma possível intervenção do Edifício Luciano Costa em Recife, disponibilizado na editoria Minha Cidade, e que pode ser acessado no Portal Vitruvius.

2
Moreira, F. D. "A Construção de uma cidade moderna: Recife, 1909-1926" in R. Farret (Ed.), VI Encontro Nacional da ANPUR, (pp. 788-796). ANPUR, Brasília, 1995, p 789

3
Lubambo, C. Bairro do Recife, entre o Corpo Santo e o Marco Zero. CEPE/Fundação de Cultura da Cidade do Recife, Recife,1991.

4
Josué de Castro (1992) expressa, com muita propriedade, a imagem de um Recife moderno que emerge dos entulhos da cidade colonial tortuosa, insalubre e feia: "A Praça Rio Branco faz mesmo lembrar Hamburgo. Pois, não é mesmo um assombro pro viajante que vem da Europa! Quem diria que desse outro lado do Atlântico, no Brasil, país de mestiços e bem nos trópicos, o viajante iria topar com um espetáculo destes, logo no primeiro porto que o navio toca. Espetáculo típico de cidade européia e das grandes. Salta o viajante do paquete, desce ao longo dos armazéns e desemboca mesmo na praça monumental. Cinco avenidas se abrindo em leque, com magníficos estabelecimentos comerciais. Ruas largas, limpas, retas, com as filas inquebrantáveis dos edifícios uniformemente solenes. Bancos, telégrafos, companhias de vapores, ... Prédios asseados, com um ar de homens de poucas palavras, tratando de seus negócios. Fisionomia inteiramente européia dessa bonitas ruas". Josué de Castro. "Visões do Recife". In M. S. Maior & L. D. Silva (Eds.), O Recife: quatro séculos de sua paisagem, Editora Massangana, Recife, 1992, p 253.

5
Fotos do acervo da Fundação Joaquim Nabuco, datadas de 1915, mostram a execução de suas fundações.

6
Vale salientar que essa descrição do pátio interno do edifício foi dada pelos senhores José Roque da Silva e José Alberto da Silva, respectivamente pedreiro e eletricista da obra de reforma do edifício Luciano Costa. Como não foi possível recolher os planos originais do edifício, essa descrição será tomada como referência para as análises desenvolvidas neste estudo.

7
Amorim e Costa Júnior desenvolveram, ao longo dos anos, uma profícua colaboração, que resultou em uma série de empreendimentos, incluindo sua própria residência de fins de semana, de 1958, localizada no Engenho Poeta, subúrbio do Recife; as residências construídas no bairro de Boa Viagem (Rua Camboim, l26, Av Conselheiro Aguiar, 4214) e Rua dos Navegantes, 1130 ) e a reforma de edifício de escritórios na rua na Rua Vigário Tenório, 191, também no Bairro do Recife. Ver Amorim, L., Gomes, G., Oiticica, D., Salles, M., & Santos, P. S. Delfim Amorim, arquiteto. Instituto de Arquitetos do Brasil - Departamento de Pernambuco, Recife, 1981.

8
Em conversa com os arquitetos Armindo Leal, Carlos Alberto Carneiro da Cunha, Moisés Agamenón, Everaldo Gadelha e Geraldo Santana, além de outros.

9
Luiz Amorim, "Edifício Luciano Costa, o Locus da Ruptura ou Alien, o Monstro da Pós-Modernidade" in Revista ArteComunicação, nº 1, 1994, p 224

10
Venturi, R. Complexity and Contradiction in Architecture. Museum of Modern Art, New York, 1977.

11
Além destes Delfim Amorim projetou os seguintes edifícios: Bolsa de Valores do Recife (1957), 1º lugar em concurso público, em colaboração com os arquitetos Lúcio Estelita e Waldecy Pinto; edifício do Sindicato dos Despachantes Aduaneiros (1963); e edifício situado na Rua da Moeda, nº 149.

12
Geraldo Gomes, Delfim Amorim - Documento, Revista AU Arquitetura e Urbanismo, 1994, p 79. De fato, das diversas obras que o arquiteto projetou para conjuntos de interesse histórico, a grande maioria delas propunha intervenções marcadamente modernistas, negando o contexto urbano existente. Porém, em diversas oportunidades o arquiteto procurou integrar a nova edificação ao contexto existente através da incorporação de princípios ou regras compositivas utilizadas nas edificações vizinhas. A reforma que o arquiteto projetou, juntamente com o arquiteto Oliveira Martins, na Póvoa de Varzim, em 1947, para o senhor Américo Graça, é um magnífico exemplo. Nele os arquitetos constróem o diálogo entre as edificações vizinhas, pela continuidade das linhas horizontais predominantes, sem contudo negarem-se a explorar de forma enfática a estética e espacialidade modernas, como demonstrado pela tridimensionalidade da fachada do novo sobrado. O próprio edifício para o Sindicato dos Despachantes Aduaneiros, citado por Gomes, faz, sutilmente, a transição entre a escala e ritmo dos sobrados que ocupam a quadra entre a Rua do Bom Jesus e a Avenida Alfredo Lisboa, e a torre moderna de escritórios, voltada para a Praça do Arsenal da Marinha.

sobre o autor

Luiz Manuel do Eirado Amorim é arquiteto pela UFPE, em 1982, e PhD em Arquitetura pela University College London, em 1999. É professor adjunto da UFPE, lecionando no Curso de Graduação em Arquitetura e Urbanismo e no Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Urbano e Regional.

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