I.
A fotografia, a invenção que iniciou a atual predominância das imagens sobre os textos, tem sido vista como um filtro nocivo entre a realidade e o sujeito desde que Louis Daguerre divulgou seu daguerreótipo, em 1839. Nesse ano, pela primeira vez na história da ótica e da química da câmera obscura, foi possível resolver o problema secular da fixação da imagem de maneira a evitar seu desaparecimento, quando Daguerre descobriu o composto químico hoje conhecido como "fixador" pelos fotógrafos. 17 anos mais tarde, a Universidade de Londres incluía a fotografia em seu currículo. Antes, porém, no prefácio da segunda edição de A Essência da Cristandade (1843), o filósofo Ludwig Feuerbach já observava que seu tempo preferia a imagem à coisa, a cópia ao original, a representação à realidade.
Com sua ótica racional baseada nas leis da perspectiva, a câmera fotográfica tornou popular essa forma de representação desenvolvida no século XV, nos primórdios do Renascimento Italiano (a chamada prospettiva). Desde então, assistiu-se a uma reconstrução radical do espaço que, passando pelo desenvolvimento da ciência no Iluminismo, culminaria na superracionalização dos instrumentos da perspectiva ótica.
À racionalização da representação do espaço, seguiu-se a racionalização da construção do espaço – incluindo aí desde o desenho de cidades a edifícios e objetos. Conseqüência de uma longa tradição que foi consolidada no espaço urbano homogêneo do século XIX, os recentes fracassos do funcionalismo do urbanismo moderno são, a grosso modo, o resultado da maneira estritamente científica de se conceber e planejar edifícios e espaços urbanos. As motivações funcionais do atual mundo da fotografia, do vídeo, da computação gráfica, das redes de computadores e do fascínio pela telemática têm contribuído para transformar as representações do espaço em projeções pragmáticas que deixaram de lado aspectos mais subjetivos, substituindo-os por formas de projeção não tão capazes de expressar, no âmbito das duas dimensões, a ordem simbólica do mundo.
É fato verdadeiro que o processo de construir carrega consigo uma dimensão que não pode ser reproduzida através de imagens da obra construída, sendo que os aspectos controversos das leis da perspectiva foram denunciados logo após a popularização dessa descoberta entre os artistas. Já no século XVI, Michelangelo entendia o corpo humano como uma fundação para todas as artes, e criticava o pintor Dürer por tentar fixar uma imagem estática do corpo. Em contraste com um número significativo de seus contemporâneos, Michelangelo não compartilhava a idéia da possibilidade de se fazer arquitetura através de projeções. Sua obra, pelo contrário, era fundada em uma abordagem incorporada da tarefa de construir (2).
Reciprocamente, as representações arquitetônicas também podem ser consideradas como imagens com o potencial para englobar toda uma ordem subentendida. Assim, podemos considerar a fotografia positivamente tomando-a como aquela feita pelo agente cultural preocupado em desvelar a distância enigmática entre a realidade do mundo e suas projeções. A possibilidade de uma arquitetura com significado depende, em parte, da realização de que uma representação deve também se referir a alguma outra coisa. No processo de entendimento das cidades, é importante que não se tome como garantidos certos pré-conceitos sobre imagens arquitetônicas e urbanas, e que se defina os instrumentos para gerar um modelo mais abrangente de compreender as complexidades do meio ambiente urbano. É importante, portanto, que os arquitetos busquem novas narrativas capazes de resgatar uma consciência crítica das implicações culturais das ferramentas convencionais de representação, já que o modo como se enxerga as cidades está diretamente ligado ao potencial para se criar cidades mais eloqüentes em sua dimensão social (3).
II.
150 anos depois, a posição do filósofo contemporâneo Jean Baudrillard em relação a fotografia guarda semelhanças com a de Feuerbach: "Se uma coisa quer ser fotografada, é exatamente porque ela não quer oferecer seu significado, é porque ela não quer ser objeto de uma reflexão". Em Simulação e Simulacra, Baudrillard afirma que as distinções entre objeto e representação, coisa e idéia não são mais válidas. No lugar delas, acredita em um novo mundo construído dos modelos de simulacra que não possuem referência em realidade alguma exceto a delas mesmas. Uma simulação, diz o autor, é diferente de uma ficção ou farsa porque ela não apenas apresenta uma ausência como presença, o imaginário como real, mas também enfraquece qualquer diferença com o real, absorvendo o real para si mesma.
No campo de discussões estéticas, a análise de Baudrillard vê o fluxo de imagens não só como uma confirmação das considerações de Feuerbach, mas também como algo capaz de estender seu caracter maligno a todas as formas de expressão artística:
"Nós vemos a arte proliferando em todos os lugares. Mas a alma da Arte – a Arte como uma aventura – a Arte com sua força de ilusão, sua capacidade de negar a realidade, de inventar uma outra cena em oposição à realidade, onde as coisas obedecem a um conjunto elevado de regras; uma figura transcendente na qual os seres, como as linhas e as cores em uma tela, estão aptos a perder seu significado, a se estender além de própria razão de ser deles e, num processo urgente de sedução, de redescobrir a forma ideal – nesse sentido, a Arte acabou"(4).
E com relação a fotografia em particular:
"Você pensa que está fotografando uma coisa por prazer, mas na verdade é a coisa que quer ser fotografada, e você é apenas uma parte de décor na ordem pictórica que a coisa dita ao sujeito. O sujeito nada mais é que um funil através do qual as coisas, em sua ironia, fazem sua aparição. A imagem é uma meio ideal para a vasta campanha de auto-promoção empreendida pelo mundo e pelos objetos – forçando nossa imaginação para uma auto-desaparição, nossas paixões para um extravasamento, e estilhaçando o espelho que nós seguramos (hipocritamente) para capturá-los"(5).
Desse ponto de vista, as coisas se tornaram soberanas e voltaram suas costas para nós através da própria tecnologia que usamos para criá-las. Personificação das imagens: esse é o efeito colateral de um mundo no qual a produção e reprodução de imagens se transformaram elas mesmas em um problema das cidades; uma situação que pode levar o fotógrafo a nada exceto abandonar a tarefa algo questionável de tirar fotos. Se toda a cidade se transformou em imagens, aparentemente nada mais há para ser visto, e nada mais há para ser fotografado. Todos os safaris fotográficos nos trouxeram imagens de todas as cidades, de todos os países. Onde não há mais profundidade, onde tudo foi condensado em duas dimensões, tudo se dá sem segredo algum. A ânsia pelo consumo de imagens traz consigo a vontade da visibilidade total, a vontade de se ver tudo ao mesmo tempo agora.
Ao fim, todos os esforços do fotógrafo correrão o risco de serem engolidos pela própria imagem ou pelo insuportável desprezo da coisa fotografada. A cidade, em sua completa indiferença para com o fotógrafo, adota a estratégia do fingimento: ela deixa-o pensar que ele pode compreendê-la, e ele então produz imagens daquilo que não é redutível a imagens, daquilo que jamais poderá ser apreendido única e exclusivamente através de imagens. Paradoxalmente, quanto mais uma cidade é fotografada, mais ela escapa à compreensão racional, mais fabrica pistas não apreensíveis. Continua internamente indivisível e daí não analisável, infinitamente versátil, irônica e contente ao assistir a todas as tentativas de manipulá-la. Quanto mais imagens circulam, mais difícil se torna fabricar novas imagens. Quanto maior a demanda, mais as próprias imagens se repetem por inércia, independentes de um suposto cérebro criador que pudesse alterar o curso das coisas.
Na verdade, porém, existe uma reserva de segredo nessa vontade de se mostrar tudo através da fotografia. A própria fotografia nunca será tão transparente e realista quanto se imagina: "Uma fotografia é um segredo sobre um segredo. Quanto mais ela diz, menos se sabe" (6).
As imagens são consumidas, mas o enigma da realidade permanece. Como a Acrópole grega que se desintegra com o tempo, o Partenon se desfacela devido ao ritmo cada vez mais acelerado das freqüentes visitas de turistas. Cada pedra catada no chão como lembrança, pelo turista, corresponde ao desaparecimento paulatino daquilo que ele quer ver – o próprio Partenon.
A parte oficial da cidade já foi catalogada e categorizada pelas imagens, não restando o menor trabalho para aqueles que querem continuar o que já está terminado. A Fotografia da Periferia é uma tentativa de se destruir ou, pelo menos, de se ignorar um suposto catálogo das imagens, um esforço para se causar um curto-circuito nos levantamentos fotográficos da cidade, e engatilhar um novo começo a partir daquilo que sempre existiu. Descobrir camadas inexploradas no rasíssimo tecido urbano das cidades das Américas. Inserir, dentro das plantas catalogadas, bolsões de irracionalidade como uma maneira de se revelar o absurdo da congestão das cidades:
"Somos todos jogadores. O que esperamos, com mais intensidade, é que se desfaçam, de tempos em tempos, os encadeamentos racionais e se instale, mesmo por breve tempo, um desdobramento inesperado, de uma outra ordem, em um lance maravilhoso de acontecimentos. Todas as coisas são curvas, como a própria Terra e, no imaginário, deve haver uma curvatura inelutável que se opõe a toda forma de linearidade" (7).
Podemos assumir que, hoje, a cidade não precisa mais ser representada, mas sim des-representada pelo fotógrafo. Essa des-representação deve ser um ponto inicial na busca por um retrato da cidade – sempre um passo à frente do fotógrafo-classificador. A Fotografia da Periferia, então, opera dentro de um entendimento de que o alvo e a arma podem ser os mesmos: ela consente com todos os efeitos colaterais das imagens da cidade, tornando o que não é passível de se tornar cartão-postal em cartão-postal, mas também tentando inserir "doses de presença" em fragmentos da realidade. Vem daí sua proposta: por uma postura do fotógrafo, dos arquitetos e de todos os profissionais ligados à divulgação da arquitetura, que não parta para uma atitude de negação radical das imagens, mas sim para uma postura onde existam ainda mais canais para circulação e distribuição das imagens. Onde imagens descartáveis circulem com aquelas mais ricas em significados, aquelas que contribuam para uma percepção melhor do ambiente em que vivemos. Contra as imagens, mais imagens: uma crítica otimista da importância da fotografia nos atuais "sistemas de promoção" da arquitetura oficial (congressos, exposições, revistas especializadas, seminários, museus, galerias de arte, publicidade, etc.). Contra as imagens "oficiais", outras imagens que revelem – ou que procurem revelar – as várias faces das cidades e que tragam informações capazes de refletir outros ambientes onde se dá a arquitetura das metrópoles contemporâneas. Imagens abertas aos sistemas racionais que governam a cidade, mas abertas também a todos os impulsos irracionais que lhe escapam ao controle. Pela fotografia, em resumo, com "presença":
"As viagens já foram uma forma de se estar em outro lugar ou de se estar em lugar algum. Hoje elas são a única maneira de sentirmos que estamos em algum lugar. Em casa, envolvido por telas, por informações, não estou mais em lugar nenhum, mas em todos os lugares do mundo a um só tempo. Em meio à banalidade universal – a banalidade que é a mesma em todos os países. Chegar em uma nova cidade, ou em uma nova linguagem, é repentinamente se encontrar aqui e não mais em outros lugares. O corpo redescobre como olhar. Liberto das imagens, ele redescobre a imaginação" (8).
As viagens como forma de se afirmar em um mundo tecnológico. E é essa vontade de se chegar em uma nova cidade, em uma nova linguagem, que pode ser transferida, dentro da geografia de uma mesma cidade, para suas áreas ainda não conhecidas, para zonas que possam trazer uma dimensão nova de uma metrópole. É o que insinua, também, o cineasta Werner Herzog:
"É um dado sabido que já há poucas imagens.De fato, quando olho daqui, lá está tudo tapado com construções, e as imagens quase não são mais possíveis. Temos, quase como um arqueólogo, que escavar com a pá, e olhar justamente para tudo, para que possamos encontrar qualquer coisa nesta paisagem ofendida. Isso está, é claro, muito relacionado com riscos, mas eles nunca me inibiriam. E vejo justamente: há tão poucas pessoas no mundo que se arriscariam por essa necessidade que temos, a saber, a de termos muito poucas imagens adequadas. Temos uma necessidade imprescindível de imagens que concordem com o nosso estado de civilização e com o nosso interior, nosso âmago.Temos, então, se for preciso, que entrar no meio de uma guerra, ou onde quer ainda que seja necessário (...)Gostaria de lá estar com minha câmara, porque, na verdade, já não é fácil encontrar aqui na Terra o que perfaz a transparência das imagens. Aquilo que já existiu uma vez. Eu iria a qualquer lado" (9).
III.
a.
Por que a periferia das cidades? Há nas margens da cidade aquilo patente em todas as formas espontâneas, o encanto das coisas que só existem porque estão desprogramadas, que superam a indiferença funcional devido à "procedência do objeto em relação ao sujeito": qualidade de tudo que está além da capacidade do planejamento. O projeto da Fotografia da Periferia foi realizado por diferentes fotógrafos empregando diferentes abordagens, em diferentes épocas. Nas linhas abaixo, será feita uma descrição rápida de três fotógrafos e/ou cineastas significativos na tradição da representação das cidades ao longo deste século, cada qual marcando com clareza uma estratégia própria frente ao ‘problema’ da imagem das cidades: são eles o francês Eugène Atget, o americano Edward Weston e o alemão Wim Wenders.
O mais famoso fotógrafo/artista de seu tempo, Weston abraçou radicalmente o Precisionismo do grupo f/64, estabelecido em São Francisco e assim chamado por causa da exímia qualidade técnica procurada pelo grupo. Seu método de trabalho, que ele mesmo chamou de pré-visualização, lhe permitia prever, manter, aumentar ou diminuir as relações de intensidade entre os tons de cinza de uma fotografia em preto & branco – uma ferramenta técnica que lhe permitiria revelar um objeto em seu "momento mais profundo de percepção". Depois de seu rompimento com o Pictorialismo, manifestado nas fotos das indústrias Armco de 1922, passa a seguir uma carreira de artista livre, convencido de que tudo poderia ser realçado através de suas imagens: "imagens mais reais e compreensíveis do que o objeto real" (10).
Enquanto a maioria das pessoas que produzem fotos simplesmente seguem noções pré-concebidas do que é belo, inúmeros profissionais mais ambiciosos questionaram ou têm questionado os conceitos de beleza tradicionais. Weston é o fotógrafo da primeira metade desse século que procurou, em temas usualmente classificados como "feios", mostrar aspectos então não retratáveis das cidades. De um modo geral, podemos simplificar o gosto convencional como centro=beleza; periferia=feiúra. Não apenas Weston, mas vários outros modernistas tomaram essas congruências como um ponto de apoio e, além disso, definiram uma hierarquia entre elas como periferia > centro. A história da fotografia dos sítios "marginais" está intimamente ligada à vontade dos fotógrafos de contrariar conceitos fixos de beleza, de contrariar a arquitetura oficial, de contrariar os padrões do bom gosto. Em Ensaios sobre a Fotografia, a ensaísta americana Susan Sontag analisa como os fotógrafos modernistas mais "heróicos" tentaram utilizar a fotografia como um instrumento para mostrar a natureza profética, subversiva e revelatória da beleza urbana anti-clássica. Então, os fotógrafos proclamavam estarem desempenhando a função de purificadores dos sentidos, revelando para as outras pessoas, segundo Weston, "o mundo que as circundava"; "revelando aquilo que o olho menos atento havia perdido."
A fotografia modernista pôde alterar, engrandecer e distorcer nossas noções do que vale a pena ser visto e do que nós temos o direito de olhar. O fotógrafo passou a ser um turista profissional, um superturista, uma extensão do arqueologista, descobrindo novos territórios e nos trazendo novas formas das características exóticas de seus temas. Sempre tentando colonizar novas experiências ou encontrar novas maneiras de olhar para objetos familiares. Nas cidades, o modernista era uma versão do caminhante solitário cruzando o caos urbano, o andarilho voyerístico que descobria a cidade como uma paisagem de extremos voluptuosos. Distante do centro, escapando dos monumentos, consciente da empresa de retratar a paisagem urbana, ele nunca descobria a feiúra através das fotografias. Aqui, a feiúra só existia na realidade passível de ser domesticada: na verdade, esse fotógrafo heróico estava sempre tentando descobrir a beleza – a beleza na feiúra.
Hoje, se as áreas decadentes das cidades podem ser consideradas visualmente atraentes, isso ocorre devido à capacidade da fotografia, além de outras artes, de criar uma espécie de transcendência da marginalia. Ao fotografar cenas urbanas esquecidas, os fotógrafos conferiram importância a todos os objetos fotografados.
Edward Weston sonhava encontrar a beleza em tudo, provando que a natureza e a cidade ofereciam um infinito número de composições. Weston representa o standard da beleza fotográfica que dominou o trabalho dos olhos abstratos da fotografia da primeira metade do século; os artistas/fotógrafos dos anos vinte e trinta que estilizavam ao máximo seus temas. Em suas fotografias de fachadas mal conservadas no México, sua intenção era canonizar um objeto estranho através de seus próprios padrões de beleza, educando nossos olhos a apreciar a ordem na desordem, a poesia das coisas inexploradas, a poética do abandono. Mais do que revelar a beleza das paredes descascando, ele estava dizendo que a arte moderna também estava nas ruas, na beleza não estudada dos bordéis e dos bares da periferia. Porém, também é verdade que ao fazer fotos com composições equilibradas, com a alta definição proporcionada pelas câmeras de grande formato e com tons de cinza cuidadosamente trabalhados, o perfeccionismo de Weston deixava claro suas intenções de domesticar o caracter agressivo de temas como seus bares decadentes. Insistindo na importância da visão, olhando a realidade como um arranjo de fotos em potencial, ele também determinou uma certa ironia em seu trabalho pois, ao invés de revelar o mundo obscuro que estava ao lado de todas as pessoas, as belas fotos de Weston domesticaram todo o conteúdo incômodo que seus temas escondiam – um conteúdo devorado pela obsessão pelo mecanismo das objetivas, pela precisão racional das câmaras e pelo poder de resolução dos filmes e papéis fotográficos que usava.
b.
Os critérios técnicos que determinavam se uma fotografia é boa ou má há muito deixaram de ser referência para se julgar uma fotografia. Exatamente por isso, o fenômeno da recente "redescoberta" do trabalho do fotógrafo francês Eugène Atget não aconteceu por acaso: hoje, o que era considerado regra para se chegar a uma boa fotografia passou a ser feito pela imensa multidão de fotógrafos amadores com suas Olympus automáticas.
Depois de ser marinheiro, Atget foi ator de um teatro provinciano e, por fim, tornou-se fotógrafo já com meia idade. Por trinta anos, fotografou basicamente Paris – a cidade que era seu principal tema – fazendo o que uma placa na porta de seu escritório chamava de "Documentos para Artistas". Entre 1898 e 1910, Atget trabalhou também para arquitetos, decoradores e editores. Em 1911, seu projeto de fotografar Paris e a vida moderna da cidade iniciou um processo de mudança, quando Atget começou a retratar uma cidade que o crítico Molly Nesbit chamou de a "terceira cidade", partindo para os subúrbios e bairros distantes de todo o élan característico de Paris. Em 1921, um amigo lhe sugeriu publicar um livro sobre bordéis, mas o projeto jamais foi realizado. Quando morreu, em 1927, Atget era conhecido apenas pelos amigos e por um grupo seleto de artistas de vanguarda, entre eles o fotógrafo surrealista Man Ray.
A imensa quantidade de imagens que produziu – mais de 10.000, incluindo fachadas, ruas que seriam mais tarde demolidas pelas intervenções urbanas do Barão Haussmann, espaços públicos, parques e bares – descrevem uma Paris que parece surreal, mas ao mesmo tempo bastante concreta. Sua idéia era, acima de tudo, produzir um material simples e definido que servisse para que outros fizessem arte: não havia traços de virtuosismo, de maneirismos ou de manipulações. Era objetivo, abordava seu tema de forma crua e sabia como adaptar suas fotografias à função que elas desempenhariam mais tarde, nas mãos de artistas a procura de imagens da cidade. As imagens de Atget nos dão um painel da modernidade completamente diferente daquele imaginado por Weston, um cenário onde o aleatório se manifesta, e onde o olhar imóvel do fotógrafo nunca está claramente definido. Atget não procurava apreender a cidade visualmente, revelar a periferia de forma mística, embelezar a feiúra, mas talvez "deixar a feiúra em paz". Evitava monumentos, boulevards e a charmosa vida noturna deliberadamente, buscando a Paris ainda não representada, buscando um lugar onde ele mesmo poderia se sentir caminhando pela cidade real.
Talvez devido à aparente ausência de perseverança, talento e concentração, suas fotos passaram a ser valorizadas em nossa época de questionamento da utopia moderna. O fotógrafo modernista, sempre procurando o melhor ângulo, limitava sua experiência a uma procura pelo fotogênico, em converter sua percepção da cidade em um souvenir. Contrário a isso, Atget aceitou a cidade como um imenso espaço onde não caberia maiores esforços como belas composições de vielas ou detalhes de muros abandonados. Ele não acrescentava nada a seu tema: nenhuma ideologia, nenhuma polêmica, nenhuma excitação estética. Seu distanciamento do mundo dos grandes fotógrafos o separou do fotojornalismo convencional e das novas naturezas mortas da modernidade, recusando as extravagâncias técnicas de fotógrafos "comprometidos" que davam a suas fotos belos jogos de luz e sombra e sedutores ângulos inusitados.
Nas fotos de ruas desprovidas de qualquer presença humana – Paris transformada em uma cidade fantasma -, Atget delineava um estranhamento entre as cidades e seus habitantes, descrevendo espaços urbanos como enigmáticos e inóspitos. Ao mesmo tempo, essas fotos não trazem um conceito de beleza original ou algum segredo fotográfico revelado pelo olhar privilegiado de um fotógrafo talentoso. A periferia de Paris é o que ela é, e não o que Atget queria que ela fosse. Sua fotografia – seus documentos -, descrevia coisas, artefatos e volumes; porém, ela também subvertia o caracter secundário da fotografia descritiva. O inusitado, o acaso e as próprias manifestação casuais das cidades foram retratadas com a mesma contingência das fotos de pontos turísticos de Paris, revelando assim uma beleza única, puramente fotográfica e simultaneamente realista. Sente-se que suas imagens são incompletas, que lhes falta equilíbrio, que parecem desajeitadas e amadoras. Fotos que apresentam o incômodo ponto de fuga celeste, e onde o assunto poucas vezes é apresentado em sua integridade: a cidade representada como fragmentos desconectados, distantes da organização simplificada desejada pela ideologia do urbanismo funcional.
c.
Um exemplo do que se poderia chamar de representação "pós-moderna" da periferia está na obra de uma das figuras mais interessantes entre os fazedores-de-imagens da atualidade. No cult místico Asas do Desejo (França/Alemanha Ocidental, 1987), do fotógrafo/cineasta Wim Wenders, os atores Bruno Ganz e Oto Sander contracenam como dois anjos que circulam em uma Berlim fotografada em preto-e-branco, onde eles observam e testemunham o que os envolve, e não são vistos por ninguém exceto pelas crianças. Os anjos concentram suas atenções em três indivíduos: um poeta, uma estrela do cinema americano e uma artista de circo. Mas durante a tentativa angustiada de ajudar estes mortais, um dos anjos luta com seus desejos de ser capaz de sentir, não apenas emocionalmente mas também fisicamente, a cidade e seus habitantes. A Berlim de Asas do Desejo é descrita simultaneamente como uma cidade ímpar e uma cidade a mais entre mil outras no espaço interativo global. Ela existe no mundo cosmopolita do internacionalismo e homogeneização universais, mas também fica clara a intenção do cineasta de forjar uma imagem personalista da cidade. Dois sítios são destacados: primeiro, o vazio de Potsdamer Platz, a praça que era o antigo centro de Berlim e que foi dividida ao meio pelo Muro. (Potsdamer Platz, quando o filme foi realizado, nada mais era que um estranho terreno vago no coração da cidade.) É nela que o poeta, confuso por tal terra de ninguém, senta em uma poltrona insistindo que sua causa – a importância do narrador como o guardião da memória coletiva e da história – não é nem impossível nem desimportante. O aspecto mágico e desolador do que um dia foi o centro da vida de Berlim contrasta com o desespero do poeta, como se sua descrição coincidisse com a poesia visual do filme – o poeta como o fotógrafo na ambiciosa tarefa de procurar lugares com significado na cidade.
O segundo lugar, um espaço vazio onde um circo foi montado, é um sítio urbano aberto ao acaso e onde mesmo um evento pleno de evocações tradicionais, como um circo, pode acontecer. Sua aparente não-função que o torno sublime e melancólico. O lote chama a atenção por ser talvez o local que simboliza uma nova Berlim, longe das amarras de seu passado e que aponta para as direções de seu futuro. Símbolo de esperança mas também de desespero, a qualidade não-funcional desse lugar lhe garante atratividade e instabilidade, além de delinear uma paisagem urbana que diferencia Berlim de todas as outras capitais européias: a periferia como um lugar de identidade e fuga; como o que encanta e desafia, um lugar onde as formas de preservar e renovar são mescladas de forma criptografadas. Wenders:
"Não acredito que qualquer pessoa será capaz de fazer a prefeitura de uma cidade entender, de um ponto de vista urbanístico, que as partes mais atrativas de uma cidade são exatamente aquelas áreas onde ninguém fez coisa alguma. Acredito que uma cidade, por definição, quer ter alguma coisa construída nessas áreas; essa é a tragédia" (11).
Em Asas do Desejo, a periferia não é apenas espaços vazios sem significado ou terrenos que devem ser ocupados, mas sim um elemento próprio das cidades. Wenders parece fazer um elogio da incompletude. É bastante significativo o fato de que a capital da Alemanha, ao mesmo tempo que não se assemelha às cidades históricas européias, lembra o caracter fragmentado da imensa maioria das cidades do continente americano, sejam elas na América Central, do Sul ou do Norte. Berlim, portanto, seria uma reserva espacial "americana", segmentada, aberta a renovações e improvisações numa Europa de cidades completas, "prontas" e fechadas.
Ao invés de uma simples conivência, as imagens do diretor/cineasta parecem provar que ainda é possível cultivar uma estância de "superficialidade crítica" nas cidades já bastante simuladas; parecem mostrar que as imagens podem servir também para se olhar as partes simbólicas e invisíveis da cidade. A fotografia, enquanto reduz todas as cidades a turismo e/ou jornalismo, também pode nos trazer de volta o que ela tornou mais difícil: a possibilidade de sempre pensar espaços urbanos como uma tradução dos conflitos e esperanças dos habitantes de uma cidade.
Se a periferia se apresenta não apenas como fonte de abordagens formalistas ou investigações sociológicas, e se ela pode se tornar uma alternativa razoável dado a recente falência do urbanismo moderno como uma prática projetiva, a visão poética dessa periferia tem um papel e um símbolo na condição do urbanismo contemporâneo. Obviamente, isto não garante uma ligação direta entre a fotografia da periferia e o valor da periferia para arquitetos e urbanistas mas, de certa forma, demonstra que o caracter especulativo deste texto pode encontrar ressonâncias na situação das cidades de hoje e indica, provavelmente, que certas atitudes em urbanismo foram primeiro imaginadas no mundo imaterial das imagens. E não seriam esses espaços urbanos, essa abordagem aberta e imprecisa, talvez um prenúncio de uma nova forma de se enxergar as cidades? Uma antecipação de propostas que lidem com fenômenos mais estratégicos que formalizadores, mais abstratos que concretos, mais relacionados com linhas de forças básicas que com o desenho pormenorizado dos elementos de uma intervenção; que estejam, por fim, mais sintonizadas com as complexidades e necessidades das cidades contemporâneas. Um prenúncio de um espaços dinâmicos imprecisos, progressivamente aformais e imprevisíveis (12). Palco para manifestações de silhuetas mais difusas, para as manifestações de movimentos que substituiriam a rigidez das linhas retas e a elementaridade da figuras geométricas puras.
Uma forma de intervenção que leve em conta toda a vivência e a cultura urbana, que diga mais sobre os movimentos espontâneos da alma das cidades. Um desafio para profissionais não mais satisfeitos com as imposições das geometrias racionais ou com a condição de recombinação simulada de velhos conceitos de espaços do pós-modernismo. Partindo das pistas implícitas nas nossas atuais cidades fotográficas, a estratégia para um novo modo de intervenção urbana talvez passasse pela criação de um espaço levemente "fora-de-foco" em relação ao que já existe, uma intervenção entre a tabula rasa moderna e o contextualismo pós-moderno: a ecologia urbana da cidade dominada por imagens.
notas
1
O presente texto foi publicado originalmente em espanhol na revista CA, nº 83.
2
Pérez-Gómez, Alberto: "Architectural Representation Beyond Perspectivism" in Perspecta nº 27, Yale University Press, New Haven, o que não implica que a representação das imagens de arquitetura devem passar por uma denúncia da "tirania" do ponto de vista único, "ciclópico", da fotografia, críticas muito comuns nas últimas décadas; mas sim por uma outra estratégia para se usar o status científico intrínseco à fotografia.
3
Pérez-Gómez, Alberto: Poliphilo, or the Dark Forest Revisited, MIT Press, Cambridge MA, 1992.
4
Baudrillard, Jean: The Transparency of Evil, Verso, Londres, 1993.
5
Baudrillard, Jean: Idem.
6
Diane Arbus, citado em Sontag, Susan: On Photography, Penguim Books, Londres, 1979.
7
Baudrillard, Jean: A Violência do Objeto, in AU nº 64, São Paulo, 1996.
8
Baudrillard, Jean: The Transparency of Evil, Verso, Londres, 1993.
9
Herzog, Werner, citado em Wenders, Wim: A Lógica das Imagens, Edições 70, Lisboa, 1990.
10
Weston, Edward, citado em Rosenblum, Naomi: A World History of Photography, Nova York, 1984.
11
The Berlin City Forum: Jacques Derrida, Kurt Foster and Wim Wenders, in Architectural Design vol. 62, nº. 11/12, Londres, 1992.
12
Editorial, Quaderns nº 211, Colegio de Arquitectos de Cataluña, Barcelona, 1996.
sobre o autor
Carlos M Teixeira é arquiteto em Belo Horizonte e autor do livro "Em obras: história do vazio em Belo Horizonte".