Pesquisadores das Universidades de Pisa e Palermo encontraram recentemente, no subsolo da catedral de Florença, restos ósseos que poderiam ser de Giotto di Bondone, o grande pintor italiano que nos anos de 1300 deu a largada para a arte renascentista, inaugurando o emprego moderno da perspectiva. No material examinado havia resíduos de arsênico, chumbo, alumínio, manganês, zinco e cobre em quantidades acima do normal para alguém pouco acostumado a manipular pigmentos.
Essa descoberta guarda uma curiosa ironia. Porque talvez ninguém mais do que Giotto procurou ocultar a dimensão material da pintura, tornando-a tão-somente a mais bela revelação da espiritualidade cristã, das histórias de Deus e de sua gente.
No entanto, esse mesmo achado ganha uma curiosa atualidade nos nossos dias. Esses materiais coloridos que terminam por ganhar os próprios ossos do pintor parecem constituir uma metáfora da pintura moderna e contemporânea. Para ela, a cor sempre esteve associada a um fazer que intensificava sua presença material, sem ocultá-la pelos recursos do naturalismo renascentista.
As pinturas desta minha exposição não são diferentes. Para descrevê-las, não teremos muitas outras palavras senão as de que são planas, feitas de óleo, com pigmentos de alumínio e mica, e marcadas pelo trabalho de pincelar. Um olhar mais perspicaz vai notar que várias telas seguem um esquema parecido: aproximadamente 1/4 do espaço pintado de alumínio em estado mais puro, 3/4 com alguma cor metalizada, luminosa, de valor tonal próximo ao do quarto anterior. Uma análise ortomolecular deve propiciar a óbvia constatação de que sou da mesma matéria de Giotto.
Mas isso, que já é muito, também não parece, de certa forma, muito pouco? Mesmo que eu acredite estar produzindo belas cores, relações diferentes, e luminosidade atraente, não há aí um grande vazio da arte, sem significados, sem ligação com a vida, sem uma ética? Depois, já não se sustenta por si só o nobre argumento da virada dos anos de 1940, de que essa arte, aparentemente sem compromissos com fundos e mundos, em busca de autonomia, tem um compromisso básico com a liberdade de criar.
O que posso dizer é que procuro manter no interior das pinturas desta exposição - como venho fazendo desde os meus quadros pretos do final da década de 1980 - elementos colorísticos e formais que possam se entender com a luz, a mãe da sensação visual, e, ao mesmo tempo, que se desfaçam em dúvidas sobre sua capacidade de afirmar. As cores, na maioria das vezes, carregam pigmentações suplementares ou ceras que as remetem a outras possibilidades, seja por luminosidades diferentes, que nos distraem da sua pretensa inteireza; seja por opacidades que as silenciam; seja ainda por embranquecimentos que as enfraquecem. Trata-se de ir, de dizer, de fazer, mas também de encorajar a hesitação e a dúvida.
Ainda nestas pinturas, continuo encarando a dificuldade de juntar duas ou mais cores sem corromper a potência de cada uma delas. Para mim, duas coisas ou cores diferentes podem e devem continuar diferentes, explorando toda a riqueza da sua condição peculiar. Mas isso não significa que elas não possam e não devam associar-se àquilo que é diferente. Nestes últimos trabalhos, a aproximação das diferenças foi possibilitada pelo uso intensivo do alumínio e da mica, com certa unidade das pinceladas.
Esse mesmo trabalho de tornar solidários os corpos diferentes de cor ganha uma outra dimensão nas ripas. São grandes tiras verticais finas e longilíneas, colocadas lado a lado, em grupos de duas ou três, cada uma de uma cor, separadas entre si por alguns centímetros de distância. Elas são fixadas na parede apenas pela sua extremidade superior. Aqui, o que torna possível essa solidariedade não é a valoração tonal, a pigmentação ou o pincelar, como nas telas. Nas ripas, o ar e o espaço é que atuam na relação entre as cores. Para melhorar o fluxo entre o espaço concreto da parede e as ripas, uso quase sempre alguma cor que tenha alguma familiaridade com a sombra projetada das ripas e, também, com a própria parede branca. Assim, o olho pode correr mais fluido entre os volumes pintados e o resto, extraindo daí um jogo de colaboração entre as cores, e destas com o espaço comum.
Nos desenhos, ocorre um pouco daquilo que aparece nas pinturas em tela. Das pinturas, há aqui uma formatação de extrema horizontalidade e de extrema verticalidade, como se as duas única posições possíveis fossem as de repouso e de prontidão para a ação. Mas é apenas uma aparência. Por serem feitos em fino papel de fibra de arroz, esses desenhos permitem que as mesmas considerações de formato e as mesmas aproximações com a luz e com o espaço se dêem de forma mais flexível e errática. O papel é mole, amassa, rompe-se com facilidade, mas também reage, tolera ou rejeita toda essa matéria e esse jogo rápido de experimentações. Algo que lembra tanto o que ocorre com nós mesmos que, espero, deve nos dizer respeito.
notas
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Outros resíduos é o nome da exposição de Sérgio Sister na SÃO PAULO Galeria de Arte. De 07 a 28 de novembro. Endereço: rua Estados Unidos, 1456, São Paulo SP. De segunda a sábado das 10 às 20 horas.
sobre o autor
Sérgio Sister é jornalista e artista plástico. Participou, entre outras exposições coletivas, do Salão Paulista de Arte Moderna (1965 e 1966), IX Bienal Internacional de São Paulo (1967), Artistas Contemporâneos na Funarte (1989) e Desenho Contemporâneo no Centro Cultural São Paulo (2000). Expôs individualmente na Paulo Figueiredo Galeria de Arte (1983,1986), Galeria Millan (1988, 1990, 1995), Sala Macunaíma da Funarte RJ(1989), Centro Cultural São Paulo (1989), Capela do Morumbi em São Paulo (1992), Galeria André Millan (1993), Galeria Casa da Imagem em Curitiba (1993 e 1996), Galeria Marilia Razuk (1996), Museu de Arte de Ribeirão Preto, Marp (2000), Paço Imperial do Rio de Janeiro (2000) e Galeria São Paulo (2000).