Hipótese
O projeto de Toyo Ito “Nomad Women Housing for Tokyo” propõe, e simultaneamente problematiza, um novo entendimento de tempo e de práticas quotidianas no Japão. É bastante conhecido: um sistema efêmero, portátil, flexível, modular destinado a uma cosmopolita mulher solteira que vive em Tóquio. Um terço dos agregados familiares de Tóquio são indivíduos sós. O modelo nas fotografias é a arquiteto Kazuyo Sejima, então colaboradora de Toyo Ito. Em sua casa não necessita de frigorífico, máquina de lavar nem sala de estar; todos estes serviços são providenciados por instalações públicas em espaços públicos. Seguindo este processo, começou um círculo fechado, em que os espaços públicos são apropriados e se tornam interiorizados e os espaços privados são reduzidos ao mínimo. A dinâmica acelerada da vida quotidiana mudou as estruturas de sociabilidade e as relações público/privado, e criou uma disrupção entre as rotinas hierárquicas e as estruturas de tempo. Extrapolando esta realidade, toda a cidade de Tóquio tende a tornar-se num grande e genérico hotel superplano. A superplaneidade (2) é “um mundo sem dimensões transcendentais, no qual a estrutura social piramidal falhou em favor de modelos horizontais e onde as rotinas da vida quotidiana caem numa situação de indiferença” (3).
É impossível pensar sobre tempo e quotidianos acelerados no Japão sem considerar os principais programas que hoje o estruturam. Tendo uma casa tão pequena, onde é que Kazuyo Sejima realmente vive?
O Japão tem um conhecido programa de superfuncionalismo capitalista alargado a (quase) todos os campos da sociedade (economia, política, produção, educação, construção, entretenimento). O indivíduo é visto como um potencial consumidor e a sua individualidade é lida pela/através da sua relação com objetos e bens de consumo. A apropriação de bens produzidos em massa define a individualidade e a identidade. Isto pode ser entendido como um modelo de distopia tecnológica. Tanto a ilusão de liberdade de escolha como o forte poder econômico escondem uma total submersão num duro sistema hiper-tecno-capitalista que se alimenta deste modo de suave “liberdade”. Existe um paradoxo de fundo: quanto mais submersos na homogeneidade e no genérico, e quanto mais fetichizados são os objetos, mais carismática e visível de torna uma identidade própria. Mesmo o tempo é um importante subproduto da mercantilização generalizada.
Neste contexto, combinando consumo e tempo, as redes de konbini (loja de conveniência em japonês) são uma infra-estrutura de importância crescente. Konbini é uma loja multifuncional que apóia os novos estilos de vida quotidiana. Está direcionada para hábitos de consumo japoneses tradicionais: não armazenar, mas comprar todos os dias. As redes substituíram praticamente todo o comércio tradicional e os grandes centros comerciais. Os seus principais clientes são indivíduos sem estruturas familiares nucleares e estudantes com dinâmicas nômades after-hours. Os konbini vendem-lhes tanto os produtos como o tempo de que necessitam.
Através das tecnologias de informação os konbini introduziram uma mudança nos ciclos de consumo: a passagem do modelo de consumo de massas taylorista e totalitário, para um modo de consumo direcionado para o indivíduo, garantido por uma rede de POS (points of sale information). Este sistema baseia-se na coleta e registro de informação individual dos movimentos, compras e pedidos de cada consumidor de modo a especificar horários e necessidades de clientes tipo. Atento às necessidades específicas, o POS, contribui para adaptar progressivamente cada loja à sua vizinhança, fidelizando clientes.
Os Konbini estendem-se para além da própria loja, podendo ser entendidos como uma interface físico interativo: terminal de compras e vendas virtuais, terminal de serviços públicos, ATM, cybercafé, centro de downloads. Simultaneamente é um novo espaço de sociabilidade. É um dos espaços em que a inversão interior/exterior do espaço público acontece: funciona como uma íntima sala de estar, um lugar de encontro, e ao mesmo tempo um lugar de deriva onde um novo tipo de flânerie encerrada acontece.
Konbini é um paradigma do Japão superplano-hiper-capitalista. Referindo-se ao seu projeto de mediateca, Toyo Ito disse: “quanto a Sendai, pretendo uma loja de conveniência da cultura” (4). Ito pretende “produzir” arquitetura como konbini. Neste sentido, os conceitos de arquitetura são completamente diferentes, não se relacionam com significado, volume, escala nem com as relações público/privado ou interior/exterior. O que Ito pretende é “uma loja de conveniência que organize todas as suas partes como uma loja, e que possa racional e homogeneamente atingir a secura ou a funcionalidade que os arquitetos tentam procuram faz tempo” (5). Estes são tempos e declarações Supermodernos. Tal como o modernismo usou o taylorismo como metáfora funcionalista para os seus espaços, com o konbini pode estar a trasladar-se um outro modelo da economia para a sociedade contemporânea. Soluções não-arquitectônicas para espaços ditadas pela gestão e pelo mercado são referências para novas arquiteturas.
Mas, enquanto o conceito de superplaneidade se refere criticamente à sociedade, parece-nos que o conceito de konbini é usado como metáfora acrítica para discursos e práticas arquitetônicas. O que deve ser sublinhado é que o konbini é provavelmente o exemplo mais expressivo da superplaneidade Japonesa. E, uma vez mais, a superplaneidade foi um forte conceito crítico dirigido à sociedade Japonesa. É perigoso ser seduzido, especialmente por um conceito tão insidioso: ao mesmo tempo em que propõe ferramentas para a hiper-organização de tempo e de espaço, e que contém qualidades de um modelo de sociabilidade, é um forte instrumento para manter a alienação e a “presentificação” de estruturas recentemente impostas (E arriscaríamos dizer que é revelador que Ito tenha usado uma sua colaboradora mulher para ilustrar este projeto).
Após 17 anos, a casa nomâde é ainda contemporânea. A casa, ainda que fluída – está fisicamente dispersa por Tóquio e complementada por diferentes espaços fragmentados – é rígida, apenas funciona, e perpetua, um presente cristalizado. É uma compacta cápsula do tempo do hiper-capitalismo. A casa (house) não necessita ser conectada ao passado nem a uma idéia de lar (home). Ela chega mesmo a negar-se agressivamente. E sendo estritamente planejada para/por indivíduos, não permite ser moldada, não projeta, nem se projeta, (n)um futuro diferente. Diríamos que esta casa ilustra um impasse geral. Das macro às micro estruturas sociais e espaciais, o projeto está preso no presente. E, mais do que em diferentes espaços, é neste único layer de tempo onde (e quando) Kazuyo Sejima ainda vive.
Sayonara!
notas
1
Artigo publicado originalmente na revista estudantil NU, Coimbra, fevereiro de 2003.
2
Superplaneidade é uma tradução livre do termo inglês Superflatness.
3
IGARASHI, Taro. Arquitectura superplana y subcultura japonesa. Pasajes Especial Japon, nº 29.
4
IGARASHI, Taro. 21st Architecture, Superflat interview (Entrevista a Toyo Ito). Bijutsu Techo, Vol. 52, nº 784, maio 2000.
5
ITO, Toyo; SAKAMOTO, Issei; SHINOHARA, Kazuo. Architectural discussions in the edge of our century, Kenchikugijutsu, 1999.
sobre os autores
Inês Moreira (1977) licenciada em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto. Pós-Graduada em Arquitetura e Cultura Urbana pela Universidade Politécnica da Catalunha. Desenvolve tese de Mestrado sobre relações entre Arquitetura, Corpo Humano e Novas Tecnologias, nas áreas de Teoria e Crítica da Arquitetura em Barcelona (UPC). Co-comissária do evento “Arquitetura – Prótese do Corpo”, Janeiro 2002, na Faculdade de Arquitetura U. P. e na Casa das Artes do Porto. Co-editora do catálogo com o mesmo nome. Exerce nas áreas de Arquitetura e Cultura Urbana em Barcelona e no Porto
Yuji Yoshimura (1977) licenciado em Arquitetura pela Chubu University, Nagoya. Recebeu 1º prêmio de projeto de licenciatura da J.I.A.(Japanese Institute of Architecture). Pós-graduado em Arquitetura e Cultura Urbana pela Universidade Politécnica da Catalunha. Desenvolve tese de Mestrado sobre relações entre Arquitetura e Economia