A recepção arquitetural da "fenomenologia", a partir da década de 1960 até o presente, tem sido fonte de inúmeros debates acadêmicos sobre os seus vícios e virtudes, ainda que os motivos, a maneira e o resultado desta apropriação tenham escapado da exegese histórica. As dificuldades que enfrentamos na interpretação do significado de "fenomenologia arquitetural", como é habitualmente chamada para distingui-la da filosofia, não são apenas em função do fato de que estamos lidando com o passado recente. O assunto foge das categorias tradicionais da historiografia da arquitetura, cujo foco tradicional tem sido ou pessoas (arquitetos) ou objetos (edifícios, ambientes, e assim por diante). A fenomenologia arquitetural é isto e muito mais. Ela é também um grupo intelectual e social definido por sua busca de unidade e de pureza através da arquitetura. Suas ramificações são impressionantes: elas existem dentro e fora das academias do Atlântico Norte, em publicações, nas genealogias acadêmicas, em projetos construídos, práticas discursivas e em redes fluidas. Além de amizades pessoais, os agentes que defendem a fenomenologia arquitetural sequer se reconhecem como um coletivo; freqüentemente se opuseram nas simpatias políticas e muitas vezes contradizem-se entre si. Somando-se à dificuldade de captar esse grupo historicamente, há o fato de que ele surgiu em um período de grandes mudanças no campo da arquitetura. O período de trinta anos que chamamos de pós-modernismo coincide com a ascensão e queda da fenomenologia no discurso arquitetônico. A compreensão das transformações de ordem cultural da arquitetura, do Modernismo ao Pós-modernismo, não pode ser completa sem entender o papel que a fenomenologia arquitetural desempenhou no processo.
Antes de começar, devemos filtrar muitas interpretações e compreensões equivocadas. A mais importante delas é a identificação errônea da fenomenologia arquitetural com o Modernismo, que foi avançada por críticos pós-estruturalistas como K. Michael Hays. Com efeito, a fenomenologia arquitetural apresentou-se como um "retorno à essência" da arquitetura moderna. Mas, na verdade, este era apenas um retorno “aparente”, uma vez que ele foi separado do movimento moderno histórico através de uma referência negativa ao que o movimento moderno se tornara na década de 1960. Por mais reacionário que possa parecer hoje, a postura “essencialista” da fenomenologia arquitetural foi o caminho para uma nova geração de arquitetos, que obtiveram seus diplomas no final dos anos 1950, para marcar suas diferenças em relação aos seus antecessores imediatos. Para os neófitos, como Charles Moore, Christian Norberg-Schulz, Kenneth Frampton, Robert Venturi, Joseph Rykwert, Vesley Dalibor, Juhani Pallasmaa, e inúmeros outros, os mais velhos teriam desviado o Modernismo, tornando-o subserviente à economia de mercado, um fenômeno que eles pensavam haver sido particularmente agudo nos Estados Unidos. Eles se insurgiram de modo hostil contra a articulação fetichista estrutural de Paul Rudolph, contra o funcionalismo corporativo de Gordon Bunshaft, contra a cumplicidade com grandes empresas de Eero Saarinen, e assim por diante. Esse antagonismo revela as pretensões neovanguardistas da fenomenologia arquitetural. A fim de se distinguirem da vanguarda consagrada, eles lutaram para ganhar um monopólio acima da aura de autodeterminação, exigido para qualquer posicionamento vanguardista. O fato de que arquitetos consagrados que dominavam o campo de produção também dominassem o mercado só jogou a favor da fenomenologia arquitetural.
Para entender exatamente como esses recém-chegados estabeleceram seu vanguardismo precisamos reconstruir o espaço de posições possíveis disponíveis para eles, no final dos anos 1950. Obviamente, eles estudavam arquitetura com a intenção de tornarem-se arquitetos. Sem passar por cima das nuances das diferenças nacionais específicas, o ensino de arquitetura nas sociedades do Atlântico Norte, durante a década de 1950, estava destinado a incutir nos alunos as categorias de ação, concepção, imaginação e percepção do arquiteto que eles deveriam vir a ser. Em outras palavras, os alunos deviam adquirir a postura necessária para ocupar o cargo de arquiteto. Mas o que definia a posição de arquiteto, então? Ela era definida como a do comando do campo da arquitetura, uma posição que comportava o status da maior autonomia (liberdade de autodireção) e autoridade (poder de comando) para determinar o que é arquitetura (em oposição à mera construção).
A diferença entre a posição de arquiteto e aquela do arquiteto moderno é que este afirmou ser a vanguarda do precedente. O campo do arquiteto moderno reivindicou o monopólio sobre o futuro, ou sobre aquilo que seria considerado arquitetura amanhã, pois a vanguarda não tinha público, a não ser no futuro. A posição do arquiteto moderno baseou sua autoridade na ideologia carismática do gênio criador romântico. Esta longa tradição equipara o trabalho dos "melhores" arquitetos ao vaticínio poético, que é a arte de fazer desenhos e escritos proféticos que intuitivamente apreendem a natureza emergente da arquitetura. Para aqueles top gênios, o campo restrito da arquitetura moderna reservou uma posição de privilégio central, o que garantiu a autoridade deles sobre todas as outras posições e garantiu que as declarações deles fossem aceitas como a Verdade do oráculo. O movimento da Arquitetura Moderna foi definido pela crença compartilhada na hegemonia e na conveniência da posição de arquiteto modernista. Foi, em outras palavras, a epistéme da arquitetura moderna.
O campo da arquitetura moderna estabeleceu o seu vanguardismo em relação ao campo mais amplo da arquitetura, restringindo o seu vocabulário, de modo a chamar a atenção para sua diferença (ou "pureza", se preferirmos) e limitando as possibilidades de acesso aos arquitetos aspirantes. Assim, organizações como o CIAM foram formadas para regular a adesão "apenas por convite", consagrar arquitetos exemplares e homogeneizar práticas. Um aspecto comum aos agentes que viriam a compor a fenomenologia arquitetural era o interesse que eles tinham pelo movimento moderno, exatamente pelo elitismo da vanguarda associada a ele. Eles eram, realmente, orientados para o cargo de arquiteto moderno através da sua educação, se não totalmente moldados por ela. Este, por exemplo, foi o caso de Norberg-Schulz, que Giedion, mentor da ETH, convidou pessoalmente para o CIAM como membro júnior, incentivando-o a fundar, na Noruega, o grupo PAGON, inspirado no CIAM.
Assim, para compreender a origem da fenomenologia arquitetural, não basta olhar para a história das idéias de forma isolada. A ordem cultural da arquitetura moderna foi a expressão do seu espaço social. A crença de que o arquiteto moderno era, de fato, um agente autônomo, um gênio criador, transmitiu as regras da ordem cultural que rege o espaço social em que o poder de falar de arquitetura era restrito a poucos gênios-criadores consagrados, cuja posição era cobiçada e, portanto, legitimada, pelo resto.
Este espaço social sofreu alterações importantes, ao final da década de 1950, provocando a sua homóloga manifestação no campo restrito da arquitetura moderna. Como o ensino superior foi democratizado e ampliado na América, e com os países europeus beneficiando do Plano Marshall, as oportunidades de acesso ao campo restrito da arquitetura moderna aumentaram drasticamente nestas sociedades. Somente nos Estados Unidos, os programas NAAB (National Architecture Accrediting Board) de Bacharelado credenciados em Arquitetura quase triplicaram entre 1947 e 1973 (um aumento de 26-65). Este foi o resultado de um amplo programa de subsídios pesados do governo, iniciado pelo presidente Eisenhower, em 1955, no alvorecer da Guerra Fria, para tornar o ensino universitário "mais eficiente", ou seja, para aumentar a produção intelectual dos professores universitários e educar mais estudantes. Uma Comissão Federal sobre o estudo experimental da utilização de pessoal da Escola Secundária foi criada para ser o combustível da "produtividade" nas universidades. Ela colaborou com os governos estaduais (1) e com instituições privadas, como a Fundação Ford, na produção de soluções integradas de educação, combinando os currículos disciplinares com tipos específicos de edifícios para maior eficiência do ensino (2). Cinco anos depois, Architectural Forum relatou que havia “uma necessidade imediata” de construir o astronômico número de 132.400 salas de aula. Os jovens arquitetos formados na década de 1960 encontraram um mercado de trabalho com vagas em abundância. A administração Eisenhower impulsionou ativamente a atividade de construção para reforçar a prosperidade nacional. A indústria da construção em 1959 ascendeu a 11,3% do produto interno bruto, um aumento de 400 por cento desde 1929 (3). Em suma, a expansão do número de professores universitários ativos, estudantes e arquitetos praticantes era consoante com uma mudança externa na economia americana e na sociedade, a qual fornecia novos produtores e consumidores socialmente homólogos.
Como Jean-Louis Cohen apontou, a massificação do ensino da arquitetura na Itália e na França também foi absorvido pelo aumento da demanda social de um tipo diferente do arquiteto-moderno, mais "profissional" do que "único". Esta oscilação na demanda, no sentido de um arquiteto-moderno mais "técnico" e menos "artístico", resultou na banalização da arquitetura moderna "(como Cohen chama) ou na “rotinização "(para nós, segundo a terminologia de Max Weber) (4).
A concordância entre mudanças internas e externas precipitou uma importante reordenação da cultura da arquitetura moderna. Esta nova ordem cultural trouxe para o centro do discurso arquitetônico uma série de definições concorrentes do arquiteto moderno, que haviam estado em circulação, embora tivessem sido relegadas a um plano secundário, até o início do século XX. Por exemplo, a idéia, defendida por Gropius no seu período americano, de que o arquiteto moderno era um “chefe de equipe” de tecnocratas. A inundação de recém-chegados à arquitetura, a intenção de colher os benefícios econômicos da graduação profissional legitimaram esta nova definição do arquiteto moderno perseguindo ansiosamente novas maneiras de fazer com que a prática obtivesse mais lucros financeiros através de novas organizações de trabalho como a corporação. Reinhold Martin examinou recentemente o conjunto de idéias sobre redes e sistemas para os quais gravitavam estes arquitetos, cujo interesse principal era a heteronomia do mercado (5).
O sucesso dos agentes tecnocraticamente colocados na reordenação da definição do arquiteto moderno aconteceu mais rápido na prática profissional do que nas universidades estaduais, com adaptação mais lenta ou resistência mais ardorosa, acontecendo em escolas de elite com pedagogias que visavam a produção de "líderes". Esta luta entre universidades com clientela estudantis de elite e de massa foi mais acentuada nos países onde as instituições tiveram que disputar estudantes, tais como os Estados Unidos, o Reino Unido e a Suíça. Produziu rivalidades famosas, como entre Syracusa e Cornell. Quando Gropius orientou Harvard – o emblema do privilégio de classe norte-americano – para o "trabalho de equipe", ele criou um sentimento de crise na academia. Norberg-Schulz, que tinha ido para Harvard para estudar com Gropius, desistiu de seus cursos, protestando que o professor nunca dava as suas próprias aulas e que não era a mesma coisa estudar com Gropius e com a equipe de trabalho "de seus assistentes”. Estudantes de instituições de elite, que estavam preparados para o cargo de gênio criador, e que se haviam negado os benefícios econômicos imediatos e a busca da posição de arquiteto do mercado, em troca de recompensas a longo prazo e do prestígio em tornar-se um arquiteto moderno, também se desiludiram ao descobrir que seus investimentos tinham sido desvalorizados pelo aumento em números absolutos dos arquitetos modernos.
Pelo final dos anos 1950, algumas escolas de elite e revistas estavam lutando de volta, para preservar a definição que tinham do arquiteto moderno como líder, visionário, ou vates poeta. Jean Labatut liderou a luta na Universidade de Princeton, e, bem independentemente, Ernesto N. Rogers fez a sua mobilização, vociferando através de Casabella Continuità. Estes foram os primeiros convites para um "retorno às fontes" do movimento moderno. Eles são, nesse sentido, os precursores da fenomenologia arquitetural. Ambos, Labatut e Rogers deixaram sua marca como arquitetos modernos, na década de 1930, e estiveram fortemente engajados na ideologia carismática do gênio criador. Labatut invectivou contra a idéia de Gropius de “trabalho de equipe” como algo para se dar “descarga nos toaletes”. Rogers condenou Reyner Banham por reduzir o Modernismo ao formalismo e não apreender a sua "verdadeira essência criativa". Labatut e Rogers foram considerados “professores de professores”, e, de fato, eles foram mentores bem sucedidos de uma geração de educadores que iriam tomar importantes posições de poder dentro de academias americanas e italianas, como Robert Venturi, Charles Moore, Aldo Rossi, Vittorio Gregotti, e Giancarlo de Carlo. O que começou como um "retorno à essência" do modernismo tornou-se o elemento que permitiu aos seus alunos uma sensibilidade pós-moderna, na medida em que a nova geração ganhou consciência da diferença entre ela e as "raízes" invocadas pelos seus professores e, portanto, da historicidade do Movimento Moderno.
Não é insignificante que este primeiro “retorno às fontes” tenha sido lançado a partir de plataformas que, como Cohen apontou, são os mecanismos de afirmação e constituição tradicionalmente utilizados pelas vanguardas, ou seja, a seita social, a escola e a imprensa (6). Labatut e Rogers usaram esses veículos para estabelecer a autonomia deles em relação à heteronomia do mundo dos negócios e, portanto, da definição concorrente do arquiteto moderno como tecnocrata. Embora eles sempre insistissem em serem considerados arquitetos modernos, eles definiram o vanguardismo deles e conquistaram a consagração cultural através de posições como professores e escritores. Labatut e Rogers ajudam-nos a completar o universo de possíveis posições disponíveis para os jovens arquitetos que desejavam o reconhecimento como arquitetos modernos, ansiosos para serem colocados à parte como uma nova vanguarda.
Com efeito, no momento em que a prática do arquiteto era governada pelo princípio do “business as business”, a posição do praticante é a que mais aparece no campo profissional, e, portanto, é a mais desfavorecida do capital cultural reservado aos gênios autônomos. Os estudantes de Labatut e Rogers gravitaram para ensinar e escrever mas, com uma espécie de intenção esquizofrênica de serem reconhecidos como grandes arquitetos modernos, tornando-se professores e críticos. Este momento é de grande importância para a história da arquitetura moderna. Quando os alunos treinados para assumirem o cargo de arquiteto, estranha e intuitivamente, descobriram que o único lugar onde poderiam praticar aquilo para o qual haviam sido educados era a universidade, houve um ponto de inflexão determinante na ordem cultural do campo da arquitetura. Foi o racha entre a universidade e a profissão que iria tornar-se, vinte anos mais tarde, no final de 1970, uma fenda monumental entre a teoria e a prática, entre os historiadores e arquitetos envolvidos em uma luta pela autonomia e autoridade sobre o campo, que definiu o período pós-moderno na arquitetura. Não é por acaso que Labatut fundou o primeiro doutorado em arquitetura na Universidade de Princeton, em 1949, e que, até o início dos anos 1970, houve um boom de programas de doutorados para os arquitetos na História, Teoria e Crítica.
Norberg-Schulz, Moore, Venturi, Frampton e outros trouxeram suas posturas como arquitetos para as posições que assumiram como professores de arquitetura, críticos e historiadores. Talvez a mais poderosa entre essas posturas foi a idéia de que o arquiteto tinha que agir sobre a cultura, mudar coisas. No entanto, sua carreira universitária relegava-os às posições passivas de "leitores" da cultura arquitetural. Para compensar a sua ambição de serem “atores” no campo, eles se concentraram sobre a noção de “leitura criativa”, como algo equivalente a “projeto criativo”. Assim, o trabalho deles começou a concentrar-se na teoria e métodos de análise de arquitetura.
Nas escolas de arquitetura dos anos 1950, a coisa mais próxima de uma teoria da análise visual era ensinada nas aulas de história da arquitetura. Norberg-Schulz, herdou a linhagem de Wölfflin, através de Giedion, e rapidamente passou a interessar-se pela psicologia da Gestalt. Seus livros elevaram a técnica da análise visual comparativa de Wölfflin a novas alturas. Em Princeton foi diferente, pois Labatut se opunha profundamente à “história oficial”, como ele chamava. Labatut, por seu intercâmbio intelectual com Jacques Maritain, o filósofo católico tomista, desenvolveu a noção de que a história era aprendida nas imagens resultantes do vaticínio poético. Este foi o modelo que Moore aprendeu e a razão pela qual, em 1956, ele se interessou pelas “imagens poéticas” de Bachelard.
O problema, evidentemente, residia no fato de que os historiadores não acolhem com boas vindas a incursão dos arquitetos em seu campo. As revistas especializadas de História arquitetura, desde os anos 1950 e 1960, são registros de um campo dominado por tradicionalistas, que consideravam heresia a idéia de que a história fosse escrita como uma intervenção criativa na cultura contemporânea. Norberg-Schulz foi isolado e expulso pelos historiadores da arquitetura da Academia Norueguesa de Roma. Frampton foi atacado por ser “light” nas suas fontes primárias. Os historiadores da Arquitetura chamaram esses arquitetos de "teóricos" para enfatizar a natureza especulativa e não científica da historiografia deles.
A Fenomenologia arquitetural surgiu deste duplo movimento de rebaixamento e marginalização, tanto pela definição dominante do arquiteto moderno quanto pelos historiadores tradicionais da arquitetura. Essas duas facções detinham o monopólio da autoridade sobre a definição da arquitetura. O arquiteto moderno legislava sobre o que poderia ser considerado arquitetura no futuro, o historiador tradicional estabelecia o que havia sido no passado. A fenomenologia da arquitetura surgiu como a luta coletiva de uma geração de neófitos para impor e legitimar a posição do historiador-arquiteto no campo da arquitetura.
Tendo conquistado a independência do arquiteto moderno com a noção de “leitura criativa”, o arquiteto-historiador também teve que ganhar a sua autonomia em relação à história da arquitetura. Isto foi feito marcando positivamente o que era estigmatizado: a historiografia “embaçada” (7). O arquiteto-historiador livrou-se dos historiadores e do discurso deles da mesma forma que os arquitetos e artistas se libertaram dos críticos: criando obras intrinsecamente polissêmicas além de todo o discurso, e desenvolvendo um discurso antiintelectual sobre a arquitetura que declara a inadequação de todo discurso. Em suma, eles próprios buscaram imbuir-se da ideologia carismática do gênio criador profético.
A fenomenologia foi fundamental nessa busca de uma autonomia disciplinar considerada como um individualismo radical, pois apresentava os arquitetos-historiadores confirmando a interpretação como um ato criativo comparável ao projeto. A fenomenologia foi abraçada, mas lida com superficialidade estratégica, apenas para confirmar a nulidade, em ultima instância, do discurso e a primazia da criatividade. Ela ajudou a dar credibilidade filosófica à ilusão arquitetônica da autoria.
Mais ainda, permitiu aos arquitetos-historiadores desenharem uma homologia entre o "retorno às raízes" da arquitetura moderna que eles efetuavam e o "retorno às coisas" da fenomenologia. A fenomenologia da arquitetura forneceu a base teórica para a crença de que a autonomia conquistada, tornando-se um arquiteto-historiador, era vanguardista.
O aumento do poder e da autoridade do arquiteto-historiador apenas ressaltou o poder extraordinário de consagração das universidades, e a capacidade que elas têm de se reproduzirem, verrugas e tudo. A maioria daqueles que se tornaram arquitetos-historiadores eram de origem pequeno-burguesa, sem os meios para desdenharem um contracheque da universidade, mas educados para aspirarem a ser livres de constrangimentos econômicos. No plano social, a história deles é a de um triunfo no sentido de que, embora sem os meios econômicos de um Philip Johnson, que pode seguir uma prática financeiramente arriscada, ainda assim eles ganharam reconhecimento e autoridade igual ou superior, assumindo riscos intelectuais. Foi a luta social para assumir as posições que corporificam a autoridade máxima no jogo de arquitetura que definiu a fenomenologia arquitetural. Ao trazer as posturas do arquiteto para a posição de historiador e vice-versa, ela ganhou a capacidade para, como Jean-François Lyotard disse, “fazer uma nova mudança ou alterar as regras do jogo” (8).
A fenomenologia da arquitetura não mudou as regras. Ela desenvolveu uma nova mudança possível dentro do jogo já existente, a posição do arquiteto-historiador. A ênfase na experiência ajudou a estabelecer a “leitura criativa” como condição para a “produção criativa”. Isto criou um público de consumidores para os tipos de livros de “análise formal”, que se tornaram um gênero típico da fenomenologia arquitetônica. Este gênero, de uma maneira auto – conscientemente ingênua, iniciou o processo de desmantelamento do objeto de arquitetura em códigos. Intentions in Architecture de Norberg-Schulz é a obra-prima que empurrou este gênero para ir além da sua ingenuidade para o positivismo, a semiótica e as ciências sociais, inaugurando assim o que hoje chamamos estruturalismo.
O estatuto de best-seller de livros de arquitetos-historiadores entre os arquitetos atesta a legitimidade deles dentro do campo mais amplo da arquitetura. Os arquitetos-historiadores conseguiram alcançar uma posição de autonomia e autoridade sobre arquitetura com trabalhos que jogam imagens contra textos para substituir a historiografia com um efeito mistificador; uma técnica que foi aperfeiçoada por Rem Koolhaas e Bruce Mau em S, M, L, XL.
O sucesso da estratégia subversiva do arquiteto-historiador foi baseado em sua capacidade de reverter a hierarquia do campo, sem perturbar os princípios sobre os quais o campo é baseado. Este artifício permitiu que Norberg-Schulz, Frampton, Moore e outros quebrassem as censuras e convenções estabelecidas pela geração anterior de modernistas com relação ao que um arquiteto ou um historiador “deveria ser” e que fizessem isto exatamente em nome dos mesmos princípios subjacentes. Esta é a astúcia do “retorno às fontes” da fenomenologia arquitetural, uma estratégia que, como notou Pierre Bourdieu, é a base para toda subversão herética e todas as revoluções estéticas, porque ela permite aos insurgentes apontarem contra o poder estabelecido as armas que eles usam para justificar a dominação, em particular o ascetismo, a ousadia, o ardor, o rigor e o desinteresse (9).
Os arquitetos-historiadores venceram os grupos dominantes dos arquitetos modernos e dos antigos historiadores da arquitetura jogando o jogo deles, exigindo que respeitassem a lei fundamental do campo, a denegação de qualquer constrangimento externo que pudesse limitar ou prejudicar a originalidade do gênio criador, como a “economia capitalista”, a escolaridade e a aversão pequeno-burguesa a riscos. Assim, arquitetos-historiadores como Norberg-Schulz e Moore detrataram arquitetos de mercado, minimizaram as convenções do conhecimento acadêmico e mantiveram os padrões inatingíveis de egomania intransigente para os arquitetos modernos. Quanto mais forte eram as reivindicações dos primeiros por um retorno às fontes da arquitetura moderna, mais desesperadamente os arquitetos modernos, assombrados por sua inadequação exposta, disputavam ser consagrados pelos arquitetos-historiadores. Assim, o arquiteto moderno lentamente cedeu sua autoridade para o arquiteto-historiador.
O “retorno” aos estilos do passado, às raízes do modernismo percebidas na arquitetura revolucionária francesa ou em estilos vernáculos, nunca foi mais freqüente ou desesperado que durante o período em que a busca da unidade, pureza, autenticidade e originalidade era exigida aos arquitetos modernos pelos arquitetos-historiadores. Estes edifícios são o traço silencioso da luta entre arquitetos modernos e arquitetos-historiadores. Eles não podem ser reduzidos ao trabalho do arquiteto ou do construtor, pois foram concebidos para exercer e cumprir as expectativas de leitura criativa do arquiteto-historiador, que, por sua vez consagraria o edifício, com seus escritos. Os tributos de Norberg Schulz à “originalidade” de Michael Graves ou a defesa de Kenneth Frampton de Mario Botta, provam que o discurso é apenas uma etapa na produção da obra e não um mero acompanhamento.
A fenomenologia arquitetural nos dá uma visão ampliada das mudanças estruturais que pela primeira vez desarticularam a epistéme do arquiteto moderno e deram ao arquiteto-historiador uma nova vantagem na luta pela autoridade. A história crítica da fenomenologia arquitetônica deveria ajudar-nos a reconhecer e, talvez, a mudar, a luta social reproduzida na oposição reificada da prática versus teoria, produtores versus consumidores, as massas versus o gênio, convenção versus exceção, e autonomia versus heteronomia.
Uma coisa que nos resguarda desta historiografia crítica é que sabemos muito pouco sobre outras posições em arquitetura além da do arquiteto moderno e menos ainda sobre o arquiteto-historiador. Em parte porque para realizar a revolucionária mudança do arquiteto-historiador em direção ao trabalho, os agentes tiveram de manifestar uma sinceridade completa na denegação de seu próprio interesse por autoridade. Isso explica porque o arquiteto-historiador teve de fingir desinteresse ingênuo na história de sua própria luta pela legitimidade e porque escrever a história dos historiadores é considerado heresia. Não é por acaso que muitos historiadores da arquitetura desde a década de 1970, declararam-se "não-operativos" em arquitetura, um gesto apotropaico destinado a proteger a privilegiada posição de autoridade que desfrutam do escrutínio. A lacuna atual é também uma função dos métodos historiográficos utilizados pelos arquitetos-historiadores, que não conseguem compreender a posição do arquiteto moderno "em jogo" contra as posições concorrentes (como as dos arquitetos historiadores do passado) lutando para impor definições alternativas do arquiteto. O resultado é que as histórias atuais do período pós-moderno criam a ilusão de que a epistéme do arquiteto moderno simplesmente se autotransformou, como se tivesse sido animada por alguma magia interna.
Se uma historiografia crítica puder ser provisoriamente esboçada, seguindo a definição de Pierre Bourdieu, como uma tentativa de “explorar os limites da caixa teórica em que cada um de nós está preso [...] proporcionar os meios para saber o que estamos fazendo e para libertarmo-nos da ingenuidade associada à falta de consciência dos nossos próprios limites” (10), então, analisar a história da fenomenologia da arquitetura é também reconhecer que não estamos inteiramente livres de suas garras. Escrevo a partir da posição do arquiteto-historiador, tornada disponível pela fenomenologia arquitetônica, ainda que eu agora tente libertar a “descrição do ofício” (11) dos limites que lhe são impostos e da própria fenomenologia arquitetônica.
notas
[Tradução de Sonia Marques feita, com pequenas variações permitidas pelo autor, a partir de publicação disponível no link <www.inha.fr/colloques/document.php?id=1449>]
1
Um dos melhores exemplos conhecidos que serve de modelo para outros estudos patrocinados pelo estados foi BARK, William C., et al. Report of the San Francisco Curriculum Survey Committee, San Francisco, 1960.
2
A referência para a integração do ensino e aprendizado com edificações escolares específicas foi o relatório do Dr. Lloyd Trump de 1959. Os resultados foram apresentados no simpósio da Universidade de Michigan, patrocinado pela Educational Facilities Laboratories (um ramo da Ford Foundation). Um grupo seleto dos melhores arquitetos das escolas do país recebeu $1,000 per capita para desenvolver projetos típicos baseados no modelo de Trump: Donald Barthelme, Charles W. Brubaker de Perkins e Will; Willian W. Caudill de Caudill, Rowlett & Scott; Charles R. Colbert of Colbert, Lowrey, Hess, Boudreaux; Phillip J. Daniel de Daniel, Mann, Johnson & Mendenhall; John C. Harkness do Architect’s Collaborative; Samuel E. Homsey de Victorine & Samuel Homsey; John Mcleod of Mcleod & Ferrara; John Lyon Reid of Reid, Rockwell, Banwell & Tarics; e Eberle M. Smith. Ver “Three Ace Schools for the Trump Plan,” Architectural Forum, n. 3, v. 112, Março, 1960, p. 118-128.
3
“Building’s Soaring Statistics”, Architectural Forum, n. 2, v. 112, Fevereiro, 1960, p. 107-112.
4
COHEN, Jean-Louis. La Coupure entre architectes et intellectuels, ou les enseignements de l'italophilie. Paris, L’Ecole d’architecture Paris-Villemin, 1984.
5
MARTIN, Reinhold. The Organizational Complex: Architecture, Media, and Corporate Space. MIT Press, 2003.
6
COHEN, Jean-Louis. “La Coupure entre architectes et intellectuels ou les enseignements de l’italophilie”, Extenso, n. 1, 1984.
7
N. d. T.: No original fuzzy, sem nitidez.
8
LYOTARD, Jean-François. The Postmodern Condition: A Report on Knowledge, trans. Geoff Bennington and Brian Massumi. Minneapolis, University of Minnesota Press, 1984, p. 52.
9
BOURDIEU Pierre. The Field of Cultural Production: Essays on Art and Literature. New York, Ed. Randal Johnson, Columbia University Press, 1993, p. 84.
10
Idem, p. 184.
11
N. d. T.: Segundo o autor o termo “job descrition” vem de Bourdieu, consideramos que provavelmente traduz “description du métier” donde nossa tradução.
sobre o autor
Jorge Otero-Pailos é arquiteto, artista e teórico especializado em formas experimentais de preservação. Autor de Architecture’s Historical Turn: Phenomenology and the Rise of the Postmodern (University of Minnesota Press, 2010) que retraça as origens intelectuais da teoria da pós-modernidade em arquitetura. Suas instalações experimentais repensam a preservação como uma poderosa prática da contracultura que cria futuras alternativas para nosso patrimônio mundial e foram exibidas na Bienal de Arte de Veneza (2009) e na Manifesta 7: The European Contemporary Art Biennal (2008). Ele é o fundador e Editor do periódico Future Anterior.