A arquitetura produzida em Mato Grosso a partir dos anos 1950 foi testemunha privilegiada de uma série de transformações culturais ligadas ao acidentado processo de interiorização da economia nacional, tendo algo a dizer sobre surtos migratórios, contrastes regionais e modernização predatória. Relações conflituosas entre espaços novos e antigos, importados e enraizados são visíveis nessa produção e remetem a certas particularidades do território mato-grossense e da sua história de ocupação.
Por mais de dois séculos, a navegação fluvial representou o principal meio de ligação dos mato-grossenses com o mundo exterior. Como que partindo esse mundo em dois, um extenso divisor de águas formado pelos Planaltos dos Parecis e dos Guimarães corta a região central do estado, entre afluentes da bacia Amazônica, ao norte, e da bacia Platina, ao sul. Das hidrovias platinas dependiam os contatos com os centros mais populosos do sudeste brasileiro, dos países do Cone Sul e de além-mar. Pelos rios Paraná, Paraguai e Cuiabá, aliás, chegaram os bandeirantes paulistas que, descobrindo ouro num dos afluentes desse último, fundaram o arraial do Senhor Bom Jesus de Cuiabá em 1719. Outros tantos povoados de conformação “espontânea” acabaram por se consolidar nas franjas do Pantanal, como Poconé (1777) e Nossa Senhora do Livramento (1730), escoando sua produção pelos mesmos rios que traziam imigrantes e produtos manufaturados. Enquanto as águas platinas anunciavam as novidades do progresso material, os rios do norte mergulhavam Mato Grosso no primitivo universo amazônico, povoado de tribos, feras e riquezas a descobrir. Seus leitos caudalosos, mas pontuados de corredeiras, opuseram sérios obstáculos à navegação comercial e à ocupação das fronteiras ocidentais. Núcleos populacionais geometricamente projetados para esse fim, Vila Bela da Santíssima Trindade (1752) e Casalvasco (1783) sucumbiram em princípios do século 19 ao isolamento e às dificuldades então impostas pelo vale do Guaporé (1).
A história econômica de Mato Grosso encarregou-se de contrapor as partes norte e sul do seu antigo território indiviso, correspondentes aos atuais estados de Mato Grosso e Mato Grosso do Sul. Desprovidos das pedras que fizeram do norte um foco de peregrinação garimpeira, os solos férteis do sul atraíram migrantes dispostos a se fixar e investir na região, que não tardaria a se modernizar por força da técnica e do capital. No final do século 19, a extração da erva-mate monopolizada pela Companhia Mate Laranjeira transformou o porto de Corumbá, na divisa com a Bolívia, num dos maiores do continente em volume de negócios. A inauguração da ferrovia Noroeste do Brasil, em 1914, promoveu crescimento econômico e demográfico ao longo de todo seu trajeto, de Bauru, no interior de São Paulo, ao distrito corumbaense de Porto Esperança. Um conjunto de quartéis militares construído pela Companhia Construtora de Santos, em princípio dos anos 1920, concorreu para atrair mão-de-obra especializada e novidades arquitetônicas a Campo Grande, que logo suplantaria Corumbá como principal centro econômico e populacional do estado. O quanto esse crescimento distanciou-se da volatilidade característica da zona mineradora, demonstram-no a moderna ortogonalidade do Plano de Ruas e Praças de Campo Grande (1909) traçado por Nilo Barém, o Plano de Saneamento e Drenagem (1938) encomendado ao escritório Saturnino de Brito, e o primeiro Plano Diretor da cidade (1941) (2).
A trajetória do norte foi bem outra. Passados os “surtos” extrativistas que lhe deram origem, as povoações mais afastadas dos portos platinos viram-se relegadas, basicamente, à pecuária extensiva e à agricultura de subsistência. É o que explica a sobrevivência de boa parte da arquitetura eclética patrocinada pela febre da borracha em Diamantino, ou pelos ciclos do diamante em Poxoréu. As distâncias que dificultavam o comércio acabaram criando um território cultural à parte, marcado por festividades religiosas, encenações de origem espanhola e danças típicas que lembram os divertimentos indígenas. A esse caldo de influências culturais, acrescente-se a carioca. Apesar da divisa sul-mato-grossense com São Paulo, o que a ferrovia só fez estreitar, os cuiabanos sempre se sentiram mais próximos do Rio de Janeiro, alcançado em viagem de até 30 dias, via estuário do Prata e oceano Atlântico. Compreensível que Cuiabá tenha cruzado o século 20 carregando as marcas do seu passado colonial, nos casarões simples de adobe ou tijolo faceando ruas estreitas, tortuosas, conformadas à topografia. A iluminação pública dava-se por meio de lampiões a querosene e a rede de água encanada limitava-se aos tanques e chafarizes das praças centrais (3).
São frutos da política nacionalista de Vargas as primeiras intervenções modernizadoras na arquitetura do atual estado. Cuiabá representou ponto de apoio para a chamada Marcha para o Oeste, projeto federal de desbravamento do sertão brasileiro lançado durante o regime do Estado Novo (1937-1945). Para dotá-la de infraestrutura condizente com sua nova condição de “Portal da Amazônia”, um conjunto de obras oficiais foi encomendado pelo interventor Júlio Müller à construtora Coimbra Bueno, sediada no Rio de Janeiro (4). Os edifícios então construídos impõem-se pelo peso e austeridade de suas formas, pendendo ora para o neocolonial, como a Residência dos Governadores (1939), ora para o art déco, como Cine Teatro (1942), ambos projetados pelo arquiteto Humberto Kaulino, do Rio de Janeiro. As intervenções da era Vargas transformaram a fisionomia da cidade e se não foram inovadoras do ponto de vista arquitetônico, tampouco rivalizavam com o tecido urbano preexistente. A ligação com o passado vai além das reminiscências estilísticas no caso do Grande Hotel, projeto de Carlos Porto construído no encontro da histórica Praça Alencastro com a então recém-inaugurada Avenida Getúlio Vargas. A varanda destacada do térreo dialoga com a escala da outrora arborizada avenida de acesso. O corpo elevado do edifício, com a praça que lhe confere representatividade urbana.
Em 1948, instala-se em Cuiabá o arquiteto alemão Frederico João Urlass (1902-60). À semelhança das obras pioneiras que projetou para a firma Thomé & Irmãos de Campo Grande, durante os anos 1930-40, sua produção cuiabana distingue-se pelo apuro técnico e domínio da gramática art déco (5). Tais habilidades permitiram-no projetar o primeiro edifício de seis pavimentos da capital, ao lado da sua primeira igreja de adobe. A série de varandas convexas do Hotel Centro América (1950), demolido em 1990, ajudava a enquadrar a antiga Praça da Sé de Cuiabá, produzindo um efeito de horizontalidade direcionada à catedral - movimento reforçado simetricamente pelas linhas, também de inspiração art déco, da sede dos Correios e Telégrafos construída vinte anos antes na esquina oposta da praça.
Se do ponto de vista arquitetônico pouca coisa parecia ter mudado nesses vinte anos, tal se deve, em boa dose, às dificuldades de comunicação com o restante do país. Cimento, ferro, vidro, tinta e todos os materiais de acabamento eram despachados de trem de São Paulo até o povoado sul-mato-grossense de Porto Esperança, às margens do rio Paraguai, de onde subiam de barco rumo a Cuiabá. Digno de nota, nesse contexto, é a fundação em 1949 da primeira empresa de engenharia cuiabana, a Construtora Comércio Ltda., cuja história se confunde com as origens da arquitetura moderna em Mato Grosso. Coube ao engenheiro sergipano José Garcia Neto (1922-2009), diretor técnico da empresa, tocar a construção das primeiras obras modernistas do estado, a começar pela sua própria residência em Cuiabá, construída em 1953 conforme projeto do arquiteto Donato Mello Júnior, do Rio de Janeiro. A casa exibe um setor social de linhas modernas, assinalado pela laje ondulante de concreto que anima a fachada sul, e um setor íntimo absolutamente convencional voltado para o norte. Este com telhado tradicional de duas águas apoiado em paredes de tijolos cerâmicos, confusamente dispostas em respeito a uma planta-baixa rabiscada pelo próprio morador. Enfatizando essa polaridade, uma cobertura intermediária com calha central, tipo borboleta, abre um fosso entre as amplas e arejadas salas da frente e a conservadora ala dos fundos. Invertia-se o sentido de movimento das águas, doravante concorrentes, do progresso e do passado.
Outra incumbência histórica da Construtora Comércio: a execução nas cidades de Campo Grande e Corumbá (hoje sul-mato-grossenses) de um mesmo projeto de Escola Estadual doado por Oscar Niemeyer, marcos seminais da arquitetura moderna mato-grossense inaugurados em 1954. A duplicação da obra dava a medida da demanda por espaços condizentes com a imagem de “estado do futuro” vendida, no âmbito das primeiras experiências locais de colonização privada, a migrantes oriundos majoritariamente do sudeste do país. Da mesma região vieram profissionais contratados pelo governo Fernando Correa da Costa (1951-56) para enfrentar as múltiplas carências estruturais do estado, e que levariam para as periferias urbanas boa parte dos forasteiros. No Departamento de Obras do Estado (DOP/MT) foi empossado João Timotheo da Costa (1926) que se diplomara no ano anterior pela Faculdade Nacional de Arquitetura, do Rio de Janeiro. Na condição de fiscal da construção das escolas de Niemeyer, o arquiteto mineiro acompanhou de perto as dificuldades acarretadas pela implantação de uma obra em contexto distinto daquele para o qual foi projetada, como se vê na orientação desfavorável da escola campo-grandense, cuja fachada sul repete um sistema de brise-soleil pensado originalmente para o norte de Corumbá. Multiplicar de modo menos mecânico os benefícios daquela nova arquitetura era a missão que se impunha ao DOP.
O pioneirismo dos projetos oficiais desenvolvidos por João Timotheo da Costa repousa, com efeito, na adequação do repertório modernista carioca às condições materiais, climáticas e culturais verificadas nas diferentes regiões do estado. As maquetes de escolas, centros de saúde, fóruns e edifícios administrativos que apresentou na Primeira Exposição de Arquitetura do Estado, por ele organizada em 1955, destoavam do conservadorismo das outras obras oficiais ali expostas, que dirá dos padrões populares então correntes. Num cenário de arraigadas tradições construtivas, a plasticidade da nova linguagem encontrou menos resistência que suas implicações técnicas e funcionais, como a modulação da estrutura, a ventilação cruzada e, no caso das moradias, o banheiro acoplado ao corpo da residência. Talvez por isso, a popularização dos elementos modernistas ainda transcorria sem maiores conflitos. Na Praça da Matriz de Poconé, a Casa de Festas projetada por João Thimoteo convive com casarões do século 19 e pitorescas releituras dos palácios de Brasília. Enquanto a fachada neutra da obra erudita atua como um pano de fundo para o patrimônio eclético do entorno, os pórticos modernizantes das casas vizinhas somam-se a ele, brindam-no com mais um estilo do passado.
Na capital mato-grossense, as relações entre espaços novos e antigos assumem contornos dramáticos em finais dos anos 1950. Com a construção de Brasília, a sociedade local rendeu-se ao clima de euforia que unia o país em torno das pretensões desenvolvimentista do governo Juscelino Kubitschek. É o que sugere a construção do Palácio Alencastro (1959-65), sede do governo estadual, sobre os destroços de um conjunto de casarões do centro histórico de Cuiabá. O edifício de sete pavimentos projetado pelo escritório Monteiro Wigderowitz e Monteiro Ltda., do Rio de Janeiro, segue os preceitos daquela arquitetura de matriz corbusieriana que Mário de Andrade batizou de “escola carioca” (6). Se os pilotis, o terraço-jardim, a independente marquise de acesso e a rua-corredor do Palácio remetem à Unité d´Habitation de Marselha (1946-52), a relação conflituosa da torre com o tecido histórico do entorno evoca projetos bem anteriores de Le Corbusier, Plan Voisin (1925) em particular, com seus arranha-céus cravados no coração da velha Paris. Como Macunaíma, a arquitetura moderna em Mato Grosso já nasceu velha, ultrapassada em sua ortodoxia.
A saga do anti-herói andradiano em busca do talismã distintivo de sua tribo lança luzes sobre a crise cultural deflagrada pelo o avanço das intervenções renovadoras nos centros históricos de Mato Grosso, em meio a manifestações de perplexidade e deslumbramento (7). Esse movimento de renovação destrutiva atinge seu paroxismo aos 14 de agosto de 1968, quando uma multidão se reúne em torno da praça da matriz por ocasião de um lastimável espetáculo: a demolição da catedral do Senhor Bom Jesus de Cuiabá, construção tão antiga quanto a cidade nascida sob sua proteção. À população coube decidir, num plebiscito, o estilo da nova igreja. Clássico ou moderno? A julgar pela obra do arquiteto Benedito Calixto, inaugurada em 1973, deu empate. Terminava sem vencedores a primeira fase de modernização da arquitetura regional, com um templo de formas duras, pesadas, pseudomodernas roubando o lugar do monumento que balizava a identidade histórica da cidade - sua pedra Muiraquitã.
À dinamitação da catedral seguiu-se o boom da arquitetura moderna pelo interior de Mato Grosso. Obra do ex-governador Pedro Pedrossian (1966-1971) que, como um “Juscelino de Mato Grosso” (8), valeu-se da linguagem arquitetônica para cantar o progresso e contagiar seu eleitorado. À frente dos projetos estava o diretor do Departamento de Obras Públicas daquele governo, o arquiteto paulistano Oscar Arine, diplomado em 1964 pela Universidade de São Paulo (USP). Em parceria com Armênio Iranick Arakelian, também formado na FAU/USP, Arine projetou em 1966 o Fórum da cidade de Três Lagoas, na divisa com o estado de São Paulo. A arquitetura do prédio distancia-se das curvas que os mato-grossenses chamavam de modernidade, bem como daquilo que julgavam ser um espaço forense. Em lugar da imponência de praxe, delgados pórticos de concreto dominam o exterior, conferindo-lhe um democrático sentido de total permeabilidade.
Diante da urgência de se construir sete centros educacionais e dois campi universitários, Arine encomenda os projetos, em 1966, a um grupo de colegas então instalados no edifício Quinta Avenida, em São Paulo. Apesar da diversidade de autores, essas obras partilhavam muitas características além do uso ostensivo do concreto aparente. A leveza das lajes de cobertura, concebidas como pórticos abertos à cidade, reforça a generosidade e fluidez dos espaços de uso coletivo, algo evidente na escola de Corumbá projetada pelos arquitetos Paulo de Mello Bastos e Léo Bomfim, e na de Rondonópolis, de Caio Boucinhas e Antônio Lúcio Ferrari. O favorecimento da iluminação natural e da ventilação cruzada representou um paliativo contra os efeitos contrários das coberturas planas de concreto, como bem demonstraram o projeto de Haron Cohen e Raymundo de Paschoal para o centro educacional de Campo Grande, e o de Júlio Yamazaki e Teru Tamaki para o de Cáceres. Muitas vezes, os apoios perimetrais distendem-se longitudinalmente para fins de conforto térmico ou de dramatização dos esforços estruturais, ambos levados às últimas consequências no projeto de Arine e Arakelian para os restaurantes das universidades de Cuiabá e de Campo Grande. O recurso foi explorado com suprema delicadeza por Motoi Tsubouchi nos Ginásios de Ladário e de Anastácio, hoje em Mato Grosso do Sul, cujas calhas de concretos descansam sobre os anteparos de alvenaria, prolongando-se na forma de gárgulas e marquises de acesso.
Os projetos padronizados desenvolvidos à época pelo DOP supriram carências essenciais da população nos mais recônditos lugarejos, onde motivos bem prosaicos recomendavam o cercamento dos prédios: a presença de vacas, porcos e cachorros a vagar livremente pelas ruas. Atenta ao problema, a equipe de Arine desenvolveu projetos escolares em que a cercadura foi pensada como parte integrante da concepção arquitetônica, toda orientada para o espaço interno (9). Muitas dessas localidades abrigavam conjuntos de considerável valor histórico, com os quais os arquitetos paulistas travaram uma relação marcada pela horizontalidade e introspecção. Esta postura fica patente no Centro Educacional projetado por Cohen e De Paschoal no morro fronteiro ao centro antigo de Cuiabá, ou no projeto de Oscar Arine para um auditório em Rosário Oeste.
A escalada de demolições nas cidades históricas de Mato Grosso ensejou uma reação de caráter preservacionista, organizada nos anos 1970 pela intelectualidade cuiabana. Esse movimento redundará no tombamento, em nível federal, do centro antigo de Cuiabá em 1987. Nesse ínterim, obras estrategicamente periféricas favoreceram o patrimônio histórico da capital, ao nortear o crescimento urbano para além dos seus limites. Foi o caso do Centro Político-Administrativo – CPA (1972-76) construído no extremo leste da cidade, para abrigar a estrutura administrativa do governo estadual. Composta pelos arquitetos Júlio De Lamônica Freira, Manoel Perez, José Antônio Lemos, Moacyr Freitas, Sérgio de Maraes, Antônio Rodrigues Carvalho, Antônio Carlos Carpintero, assessoria de Frank Svensson e Paulo Zimbres, e coordenação geral de Sátyro Phol M. de Castilho, a equipe responsável pelo projeto submeteu os diversos edifícios governamentais a uma malha reguladora tão flexível quanto unitária. Procurou-se imprimir um acento regional ao vocabulário moderno, adaptando-o a certas condições do seu ambiente físico e cultural. A estrutura acomoda-se ao desnível do terreno, define amplos pátios arejados, além de exibir um mural do artista mato-grossense Humberto Espíndola. O projeto da mesma equipe para o CPA-I (1977-78), conjunto habitacional vizinho ao novo centro de poder, guarda analogias com os tipos tradicionais de moradia cuiabana, considerando suas alternativas de uso e ampliação.
A implantação do Estado de Mato Grosso do Sul em 1979, dois anos após sua criação legal, abriu novos desafios e perspectivas ao território remanescente. Uma das metas declaradas do governo Frederico Campos (1979-83) foi restabelecer a auto-estima da população mato-grossense, então reduzida a 1.200 habitantes espalhados por 38 municípios. A arquitetura e o urbanismo modernos teriam seu papel na estratégia de firmar a identidade de um “novo Mato Grosso”. Neste, o campo torna-se palco de conflitos provocados pela a expansão das fronteiras agrícolas sobre áreas dominadas por índios e posseiros, enquanto empresas colonizadoras vendiam a imagem de um paraíso de prosperidade futura a colonos do Sul e de outros focos de tensão fundiária espalhados pelo país (10). Projetos urbanos como os de Primavera do Leste (1979) ou Lucas do Rio Verde (1979) podem ter contribuído para essa imagem, desde que se tome o paraíso como um espaço perfeitamente planejado, o primeiro, de acordo com o Gênesis (11). A questão do confronto entre o novo e o primitivo, que permeia o processo de modernização em estudo, desdobra-se, aqui, no contraste ordem geométrica versus natureza inculta.
A arquitetura mato-grossense dos anos 1980 conheceu maior diversidade de linguagens e revestimentos. Dessacralizado, o concreto aparente desvinca-se, aos poucos, da tradição paulista que o consolidara. No projeto de Mário Gomes Monteiro para o Haddad Park Hotel (1985), as empenas cegas de concreto libertam-se da tipologia da caixa para girar, visualmente, ao sabor do vento. Embora tenham provocado o embargo da obra, as dimensões das aberturas enviesadas são coerentes com um hotel de partido tão introspectivo, “de centro de São Paulo”, como diz o autor (12). A abertura total para a paisagem não livrou de problemas outras obras precursoras da verticalização urbana da Cuiabá. Quis o clima tropical de savana (quente semi-úmido, com picos acima de 40°C) que a pureza das primeiras torres de vidro da capital fosse perturbada pela proliferação desordenada de aparelhos de ar-condicionado em suas fachadas. No caso do Edifício Milão, projeto de Rui Fernandes, a justificativa para o desconforto térmico não estava em São Paulo, mas na cidade que lhe emprestou o nome e um modelo acabado de arranha-céu envidraçado, imposto ao arquiteto pelos contratantes italianos.
Enquanto o mercado imobiliário investia no sonho de uma Cuiabá cosmopolita, mais parecida com os centros industrializados do Brasil e do mundo, projetos encomendados nesses mesmos centros apontavam para a direção contrária. A proposta do escritório paulistano Königsberger e Vannucchi para o extinto Banco Comind (1984), por exemplo, afasta-se das cinzentas agências construídas nos centros históricos de Mato Grosso, durante as décadas de 1970 e 1980. O prédio adota alvenaria de tijolos aparentes, aberturas estrategicamente orientadas e tratamento paisagístico idem, o que lhe garante proteção contra a insolação excessiva e o burburinho do ambiente externo. “Nunca pensei que, no centro da América do Sul, existisse uma cidade tão agitada, até nervosa” (13). Eis a Cuiabá dos anos 1980 aos olhos do arquiteto alemão Hans S. Amen, que também se valeu de um material tradicional para compor uma obra moderna tão destacada quanto inseparável do seu contexto. Os pórticos de madeira laminada colada da igreja Nossa Senhora de Guadalupe (1986) concorrem para a sacralidade do espaço interno, que parece transcender as contingências terrenas que condicionaram sua volumetria. No projeto de Eleuteríades Stephan para o teatro universitário do campus da UFMT (1982), em Cuiabá, os condicionantes do partido arquitetônico vão das particularidades locais às continentais, passando por uma suposta identidade latino-americana. Cercados por uma faixa contínua de concreto aparente, dois herméticos prismas coloridos à maneira de Barragán conversam sobre liberdade, ruptura e herança pré-colombiana.
O incremento da produtividade agrícola, ao longo das décadas de 1980 e 1990, elevará Mato Grosso ao posto de maior exportador de grãos do país. Investimentos federais em infra-estrutura terminam por globalizar a economia da outrora remota e desassistida região. A chegada dos trilhos da Ferronorte às cidades de Alto Taquari (1999) e Alto Araguaia (2002), no sul do atual estado, é parte de um projeto maior destinado a favorecer o escoamento da safra pelos portos do Pacífico. As florestas mato-grossenses passam de vazios a ocupar a santuários a proteger, invertendo a importância geopolítica do estado: de guardião das fronteiras coloniais e portal da Amazônia, passa a guardião da Amazônia e portal do Mercosul. A emergência do paradigma ecológico refletiu-se na cultura artística regional dos anos 1990. Encorajada pelo reconhecimento internacional de um grupo de pintores mato-grossenses, boa parte da sociedade mato-grossense passou a se identificar com os motivos regionalistas, populares e naturais retratados naquelas telas (14).
Seguindo os passos de Macunaíma, os mato-grossenses teriam finalmente encontrado sua pedra sagrada, há muito roubada por obras modernistas sem nenhum caráter. Mas como os arquitetos iriam se posicionar diante dela? Como reagiriam a esse fenômeno cultural de retorno às raízes? É algo a ser pesquisado, começando pela tendência de se forçar uma união superficial do antigo com o novo. Característicos dessa postura são alguns edifícios da Av. Rubens de Mendonça, em Cuiabá, que tiveram suas empenas preenchidas por gigantescos murais, representando paisagens pantaneiras, pescadores, mangas, pacus, entre outros ícones da cultura nativa. Em diferentes cidades do interior, imagens de índios, onças e bananas passaram a cobrir indistintamente viadutos, postes e muros de arrimo. Como se vê, os contrastes que distinguiam as porções norte e sul do antigo Mato Grosso, e que depois passaram a se manifestar na escala urbana dos centros históricos, já podem ser reconhecidos no âmbito das obras arquitetônicas individuais, e nem sempre como embelezamentos a posteriori. Nos projetos de revitalização do antigo Arsenal de Guerra (1989-2002) e do Mercado do Porto (2000) de Cuiabá, procurou-se valorizar por contraste a historicidade dos edifícios. Com seu vai-e-vem, a marquise de concreto concebida por Ernesto Galbiatto realça a ortogonalidade do pátio interno do Arsenal, assim como a treliça espacial criada por Ademar Poppi ganha em leveza sobre a figura atarracada do Mercado. Os elementos modernos estão claramente subordinados à tipologia dos edifícios restaurados, embora a recíproca não pareça menos verdadeira.
Se nas décadas de 1970 e 1980 houve tentativas felizes de adaptação da linguagem moderna às condições específicas do entorno, essas experiências tenderão a evoluir para um estágio seguinte, em que o termo adaptação não mais se aplica. O estudo da morfologia simbólica das aldeias bororo, por exemplo, tem motivado os arquitetos José Afonso Portocarrero e Paulo Molina a incorporá-la ao repertório da arquitetura contemporânea, em projetos como o Memorial Rondon (2000), em Mimoso. Difícil decidir nesses casos, se estamos diante de obras modernas adaptadas às condições locais, ou de obras locais adaptas às condições modernas. Paralelamente, arquitetos de outros Estados têm oferecido respostas interessantes aos rigores climáticos da região. Dando um novo sentido à proposta inicial do CPA, o Tribunal de Contas da União (1997), assinado por João Filgueiras Lima, e o premiado Fórum de Cuiabá (2000), projeto de Marcelo Suzuki, seguem linguagens arquitetônicas diferentes, mas nem por isso desconexas. Cada qual ao seu modo, filtram a radiação solar sem prejudicar a ventilação cruzada e a iluminação natural dos ambientes, dispostos ao redor de arborizadas praças internas. Pode-se dizer que suas espacialidades dialogam significativamente entre si pelo simples fato de oferecer respostas distintas a desafios que lhe são comuns, ligados às características do território e ao perfil dos seus usuários. São esses condicionantes comuns, aliás, que permitem relacionar as diferentes fases da arquitetura mato-grossense - recentes ou não - como episódios de uma mesma história.
notas
1
DELSON, Roberta Marx. Novas Vilas para o Brasil-Colônia: planejamento espacial e social no século XVIII. Brasília, Alva-Ciord, 1997.
2
ARRUDA, Ângelo Marcos V. de. Campo Grande: arquitetura, urbanismo e memória. Campo Grande, Ed. UFMS, 2006.
3
SIQUEIRA, Elizabeth M. S. História de Mato Grosso: da ancestralidade aos dias atuais. Cuiabá, Entrelinhas, 2002.
4
SÁ, Cássio V. de. Memórias de um cuiabano honorário: 1939-1945. Cuiabá, [s.n.], 1980.
5
ARRUDA, Ângelo Marcos V. de. Pioneiros da arquitetura e da construção em Campo Grande. Campo Grande, Uniderp, 2002.
6
ANDRADE, Mário de. “Brazil Builds”, In: XAVIER, Alberto (Org.). Depoimento de uma geração: arquitetura moderna brasileira. São Paulo, Casac Naify, 2003, p.179.
7
ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte, Villa Rica, 2000.
8
ARINE, Oscar. Oscar Arine: depoimento. Entrevistador: Ricardo S. Castor. Valinhos-SP, abr. 2006. 2 Cassetes sonoros.
9
SEGAWA, Hugo. Dossiê interior: arquiteturas realizadas fora dos grandes centros. Projeto, São Paulo, n. 135, p. 49-78, out. 1990.
10
OLIVEIRA, Carlos E. de. Famílias e natureza: a relação entre família e natureza na colonização de Tangará da Serra. Tangará da Serra, Sanches, 2004.
11
RYKWERT, Joseph. A casa de Adão no paraíso: a idéia da cabana primitiva na história da arquitetura. São Paulo, Perspectiva, 2003.
12
MONTEIRO, Mário Gomes. Depoimento. Entrevistador: Ricardo Silveira Castor. Cuiabá, fev. 2006. Dois cassetes sonoros.
13
DETTLING, Bernardo. A presença franciscana em Cuiabá. Cuiabá: [s.d.].
14
FIGUEIREDO, Aline. Arte aqui é mato. Cuiabá, EdUFMT, 1990.
sobre o autor
Ricardo Silveira Castor é Arquiteto graduado em 1996 pela Escola de Engenharia de São Carlos, professor da Faculdade de Arquitetura, Engenharia e Tecnologia da Universidade Federal de Mato Grosso, mestre em Estética da Arquitetura pela Universidade de Brasília, doutorando em Teoria e Fundamentos da Arquitetura pela Universidade de São Paulo (bolsista da CAPES)