“A arquitetura é um gesto. Nem todo movimento intencional do corpo humano é um gesto. Nem tão pouco se concebem como arquitetura todos os edifícios construídos de um propósito” (1).
Wittgenstein
Vitor Amaral Lotufo formou-se em 1967 pela FAU Mackenzie em uma década de profunda instabilidade política: otimismo simbolizado pela fundação de Brasília, comprometimento das instituições sob o golpe militar, mercado de trabalho próspero à custa de progressiva dívida externa; tais condicionantes ditaram um debate político truncado entre tradição, facções ideológicas e uma nova geração que viria assumir a ruptura de paradigma em todos os níveis culturais.
O ponto de partida de Lotufo foi, em princípio, previsível, considerando-se a sólida formação modernista legada pelo pai, o engenheiro-arquiteto Zenon Lotufo; entretanto, da construção do Parque do Ibirapuera, que acompanhou ainda menino, pois Zenon Lotufo era um dos arquitetos da equipe, à participação no escritório como arquiteto associado, o paradigma da arquitetura moderna sempre estivera presente no desenvolvimento profissional de Lotufo, embora dele viesse a se distanciar, contrariando o previsível, para investir em suas próprias ideias, tendo como ponto de partida a cúpula geodésica. Espírito inquieto, que a imagem zen parece contradizer, Lotufo irá trabalhar conceitos da arquitetura contemporânea aproximando vernacular e tecnologia sob o arco da techné.
Na década de 1970, o interesse pelo conhecimento levou Lotufo ao ensino e pesquisa. Estudou o dimensionamento da cúpula geodésica sistematizado por Buckminster Füller, incluindo detalhes construtivos, economia de meios e reciclagem de materiais. Da teoria à prática, seu binômio constante, empreende em 1979 o projeto da Casa de Botucatu, uma alternativa à tecnologia de materiais empregada nas geodésicas de Füller. A planta compacta, independente da estrutura, tem programa de 3 dormitórios, cozinha e banheiro ao redor da sala de jantar, implantada no centro do círculo. O novo sistema estrutural é contemplado com materiais mais modestos visando um objetivo de autossuficiência. São caibros de madeira aparelhados, aparafusados em módulos triangulares, fechamento em painéis mistos de madeira compensada e miolo de isopor, pintura à base de poliuretano. A economia de meios e redução do impacto ambiental vem com a adoção de materiais recicláveis, atitude embasada nos começos da sustentabilidade, e pelo gerenciamento do canteiro de obra.
Cogitava-se uma proposta para habitações econômicas, uma vez que o projeto poderia ser executado por um único profissional carpinteiro em três meses. Lotufo assumiria algumas propostas da obra O canteiro e o desenho, de Sérgio Ferro (2). O carpinteiro, por exemplo, expôs ao arquiteto sua prática sobre a fixação dos módulos de fechamento da geodésica, a ser executada, em sua opinião, de cima para baixo e não o contrário; a solução aceita é colocada em prática com resultado. Lotufo, ao preferir soluções construtivas mais próximas da realidade do canteiro; aproximando saber e fazer, reduz o papel da indústria, assumindo a escala artesanal em que o controle da obra repousa nas mãos do arquiteto. Essas ações, aparentemente menores, nos colocam diante do significado etimológico de arquitetura e, portanto, de sua perspectiva histórica. Não nos parece demasiado recordar que em grego architectonik significa – arquitetônico, arte do arquiteto, vocábulo do qual derivam arquitetura como arte de edificar, arte no sentido de techné, portanto fazer, ofício, e não artifício, este fundamento da pintura, literatura romanesca, etc., e enfim arquiteto – o que comanda a construção. Assim arquitetos como Lotufo atuam na origem do significado da profissão. Esta característica de construtor é destacada pelo professor Sylvio Sawaya:
“importante definir Vitor Lotufo como um grande arquiteto-construtor, que faz uma síntese das habilidades e possibilidades dos materiais e processos construtivos extremamente criativa e rica; a isto se associa uma relação geométrica muito forte, de expressão artística, com curvas, rotações, mandalas e por aí afora. Se há alguém, que nesses últimos trinta anos, avançou uma arquitetura entre nós, foi o Vitor” (3).
A casa de Botucatu tornou-se o ponto de inflexão na carreira de Lotufo. Nela materializa uma alternativa à Escola Brutalista Paulista, sem uma ideologia político partidária, sem uma diretriz rígida enfeixando adeptos, com materiais e técnicas fundados na adesão ao canteiro em oposição à indústria, neste caso sem uma total autonomia, mas em sintonia com a Sustentabilidade, filosofia que em nenhum outro momento histórico será tão premente, entendendo-se enfim que projeta o futuro do homem. A alternativa de Lotufo, entretanto, segue com a verdade dos materiais, talvez o único ponto de contato mantido em relação ao Brutalismo.
Ampliando suas pesquisas, em 1981 Lotufo publica Geodésicas & Cia, em coautoria com o arquiteto João Marcos A. Lopes (4). O compêndio trata das relações geométrico-estruturais via materiais e técnicas alternativos à geodésica serial de Füller. O tema é iluminado de vários pontos de vista: experimentos de Lotufo no meio acadêmico, habitações alternativas na comunidade semiagrária Drop City, EUA; projetos de Eládio Dieste e Hassam Fathy com obras em tijolo e adobe; em todos os casos, geometria e técnicas construtivas são uma constante. Outro aspecto importante é a proposta editorial. Desenhado à mão, com ilustrações de cartum e adoção de gírias, dirige-se a um público mais participativo. Conquistou espaço na área educacional com cursos em São Paulo, Brasília, Belo Horizonte, Salvador, entre outros. Seus conceitos foram aplicados no meio acadêmico, em aulas e ensaios de laboratório, amarrando geometria, cálculo estrutural e técnicas construtivas, principalmente na PUC-Campinas, onde Lotufo atuou durante mais de duas décadas.
Em 1975, Lotufo abre o Oficina de Arquitetura em sociedade com João Marcos A. Lopes e Wagner Germano. Novamente questões relativas à organização dos níveis de atividade, em um escritório de arquitetura, foram observadas. O Oficina revê o princípio de hierarquia, esta forma tradicional das organizações de trabalho, visando a cooperação entre arquitetos e clientes e a contribuição criativa da mão de obra.
Uma nova solução de geodésica é posta em prática na residência de Itapevi em 1981. Com 9,00m de diâmetro, o telhado é composto de um sistema estrutural de triângulos e hexágonos em madeira e telhas cerâmicas, tipo capa e canal, do topo aos peitoris das janelas. A maior parte da madeira utilizada veio de depósitos de demolição. Os dormitórios, localizados no pavimento superior, recebem a luz e o ar através de mansardas e claraboia. A entrada da residência é marcada por um arco de pedra e torre da lareira, quebrando, deliberadamente, com a geometria ideal da cúpula.
Os mesmos princípios, relativos à participação do cliente, técnicas e canteiro, conduzirão a concepção da residência Rebouças em 1985. A declividade do terreno levou à adoção de um partido em que os ambientes foram distribuídos em três níveis que correspondem a três blocos interligados: serviço e jantar, salas de estar e repouso. A residência também foi construída, em grande parte, com materiais de demolição. A pedra rústica foi adotada para muretas, pisos e escadas, pérgula em madeira na forma de paraboloide parabólico, vedos em tijolo de barro à vista, e jardim. Os operários opinaram na resolução de detalhes de pisos, muros e caixilharia.
O uso de um edifício pressupõe sua adequação. No entanto, a questão pode ser revista; hospitais, lojas ou residências, podem sofrer alterações no tempo, devido à manutenção, alteração de programa ou do tecido urbano. Em face da ampliação da Igreja Presbiteriana em 1987, Lotufo projetará um anexo, nos fundos do lote, em abóbadas de tijolos à vista na sua concavidade interna, revestidas externamente com argamassa aditivada e pintura impermeabilizante, vigas-calha em concreto aparente, colunas helicoidais em tijolos à vista. A abóbada bem executada atende às necessidades de estanqueidade e desempenho termo-acústico.
A Oficina de Arquitetura cumpriria seu ciclo em dez anos. Lotufo viaja a Grenoble, França, em 1985, participando de um intercâmbio acadêmico gerido pelo Professor Carlos Henrique Heck. O programa teve segmento com professores e alunos da PUC-Campinas.
Em 1989 Lotufo abre um novo escritório, o Oficina de Habitação. Consoante à iniciativa da administração municipal, iniciaram-se projetos de habitação social inseridos em Plano de Mutirões para a construção de conjuntos habitacionais em 1989. Com 131 casas, foi iniciado pela construção do centro comunitário, a fim de abrigar reuniões entre comunidade, técnicos e poder público, necessárias ao planejamento dos mutirões. Lotufo, dispondo de materiais como laje mista de blocos cerâmicos e vigotas de concreto, construiu coberturas em paraboloides parabólicos. A inclinação das lajes tornaria desnecessária a impermeabilização convencional, proporcionando melhor conforto devido ao pé-direito ampliado dos ambientes. O arquiteto colocava em prática que soluções inusuais podem ser executadas com mão de obra não especializada e materiais vulgares, com resultados superiores aos projetos insípidos praticados pelas companhias de habitação. A população de baixa renda, é escusado dizer, também é sensível ao desenho, à forma é à cor, como sabemos há uma identidade essencial entre casa e morador, em latim habito – significa morar e habitat – ele habita.
A residência Victor Rebouças, em 1991/1996, é mais um exemplo de interação entre arquiteto, cliente e canteiro de obra. O proprietário, que conhecia Lotufo desde a realização da casa dos pais, desejava materializar o sonho de uma casa “rústica como uma gruta”. Lotufo adotou um partido de volumetria recortada, favorável ao ar e à luz. Especificou materiais de demolição, construindo pilares de paralelepípedos, vedos em tijolo de barro à vista, e industrializados como vidrotil nos banheiros e piscina. Os espaços internos foram resolvidos através de cúpula, cobertura parabólica, pirâmide de vidro, arcos em tijolo de barro à vista, ricos de texturas e cores, amplos e iluminados. Anexo ao corpo principal da casa, um telhado paraboloide abriga um grande pátio-garagem.
O professor Carlos Lemos, autor de Cozinhas e Etc., costuma comentar em aula que os melhores fornos caipiras são construídos com terra de cupinzeiro, devido ao aglutinante existente na saliva do inseto. Em 2004, diante da presença de muitos cupinzeiros em seu sítio de Botucatu, Lotufo resolve dar um fim ao material e constrói um sobrado tradicional e sustentável; fundações e alvenarias em terra de cupinzeiro; circulação vertical a cargo de uma escada helicoidal em argamassa armada e uma pequena laje para o banheiro; executado em tábuas sobre vigas de madeira os dormitórios são distribuídos no andar superior. O telhado em telhas de barro sustenta as placas de aquecimento solar.
Em um edifício de escritórios com quatro pavimentos, em 2004, Lotufo, incansável na busca de novas soluções, exemplifica como a concepção arquitetônica pode permear todas as etapas de projeto. O edifício, implantado em um lote urbano de 5,00m de frente, foi concebido mediante duas paredes estruturais que descarregam sobre um radier em abóbada moldada in loco. As salas comerciais são interligadas por rampas ao redor de um vão central descoberto. Além das instalações convencionais, o abastecimento de água é suprido por uma cisterna. Trabalhando com materiais de demolição, vedos estruturais em tijolo à vista e um robusto quebra-sol em madeira determinam a expressão plástica do projeto.
Em 2005 o arquiteto projeta, em argamassa armada, uma residência com 56,00m², adequada a um programa de sala, dois dormitórios, banheiro, cozinha, e uma pequena área de serviço. Para uma solução em abóbadas nervuradas, o sistema foi resolvido mediante três modelos de formas: cobertura, topo da cobertura e pilares. As peças prontas, o arquiteto montou a edificação para verificar os encaixes, antes que fosse transportada para o local da implantação em Botucatu. A argamassa armada bem executada é impermeável, assim apenas as juntas das peças receberam impermeabilização. Os vedos, sem função estrutural, foram executados em tijolo de barro revestidos. Depois de habitada, um tecido de vegetações na cobertura contribui com as necessidades de conforto.
Contando com uma muito consistente experiência na arte de construir, a residência de campo Eduardo Manzano em 2007 é inteiramente projetada em tijolo de barro à vista, inclusive a cobertura na forma de tronco de pirâmide denteado, uma das tipologias desenvolvidas com êxito pelo arquiteto; a exceção ficou por conta da caixa d’água, um icosaedro em argamassa armada. A planta tem a distribuição dos dormitórios, estar e serviços ao redor da sala de jantar no centro de um octógono, forma que amplia as possibilidades de ar e luz. Recortes nas alvenarias permitiram também o recuo de aberturas nos dormitórios e sala de estar. Apesar do programa compacto, há sensação de espaço devido ao pé-direito ampliado dos ambientes.
Ao longo de sua trajetória, Lotufo manteve seus estudos da geometria associada ao dimensionamento estrutural. Reconsiderou o papel da representação do projeto, entendendo que a técnica é o meio fundamental às atividades de canteiro, e que o conjunto de suas peças gráficas dependerá sempre daquele meio. Via de regra, seu processo de projeto associa desenhos e modelos tridimensionais. De qualquer forma, considera o projeto executivo imprescindível, mas seu desenvolvimento, enquanto cortes e detalhes, pode ser resumido em favor de soluções adequadas à realidade do canteiro, recursos financeiros e mão de obra. O caminho de Lotufo exigirá pesquisa e prática em profundidade.
O Refeitório da Secretaria da Habitação de Osasco em 2008, enquanto espaço que melhor atendesse às necessidades de programa, livre de entraves de elementos estruturais, não foi encarado como meramente utilitário. A junção de abóbadas nervuradas em tijolo de barro, com um vão de 7,00m entre eixos, contribuiu para um ambiente de visuais contínuas e amplas. Garrafas de vidro, nos vãos das nervuras, fazem um jogo de luz que dilui os limites dos materiais. Mesmo em projetos de menor status, como um refeitório, o arquiteto tem sempre a preocupação em criar um ambiente de texturas, cores e luzes; a nós recorda o poeta: “a liberdade é uma conquista diária”, afirma Goethe.
No Sítio dos Anjos em 2008, em uma área semirrural, técnicas construtivas tradicionais foram associadas a novas soluções formais no projeto de residência para um pequeno grupo de sacerdotes. A planta, determinada por três quadrados imbricados pela diagonal, cria um jogo de arestas entre vedos em taipa de pilão e laje parabólica de cobertura. A experiência faz com que os materiais ganhem maior plasticidade nas mãos do arquiteto. No caso, uma treliça em ferro tijolo alivia o balanço de maior envergadura no principal eixo de acesso à obra. A professora Mônica Junqueira de Camargo avalia da seguinte forma:
“Lotufo propõe alternativas inéditas para intervenções complexas, seja pelos programas, seja pelos sítios onde são implantados. Vitor cria sob condições precárias, interfere em espaços consolidados e geralmente de ocupação informal, e ainda assim produz arquitetura, no sentido mais essencial do termo, isto é, de melhorar o habitat humano” (5).
O primeiro contato entre Lotufo e os missionários espiritanos ocorreu por volta de 1984. O Padre Patrick e Padre Airton foram ao Laboratório de Habitação da Faculdade de Belas Artes de São Paulo – LABHAB, em busca de apoio técnico para o Centro Cultural de Vila Prudente – CCVP. Lotufo integrava o corpo docente juntamente com Joan Villá, Yves de Freitas, Reginaldo L. N. Ronconi, João Marcos A. Lopes, Olair de Camilo, Raquel Rolnik, Nabil Bonduki, Antonio Carlos Santanna Jr, Carlos Roberto Andrade, Maria Amélia, Mauro Bondi, Marco A. Ossello, além da colaboração dos estudantes Ema Paula, Luis Caroprezzo, Maria Nelci Frangipani e Martha Genta; o coordenador do curso era o arquiteto Jorge Caron.
O laboratório foi mantido de maio de 1982 a março de 1986, quando interditado devido a uma crise político-administrativa entre instituição e corpo docente. Segundo Nabil Bonduki, a proposta do LABHAB “visava aproximar a Universidade e os Bairros populares” (6) e o modelo foi adotado em outras instituições de ensino, como o Habitafaus da FAUSantos, o Laboratório do Habitat na FAU PUC-Campinas e o Laboratório de Habitação do Núcleo de desenvolvimento de Criatividade da Unicamp, este conduzido pelo arquiteto Joan Villá, nas suas palavras:
“O laboratório não só veio a se constituir numa assessoria técnica, com as características necessárias para se adequar às necessidades e exigências dos movimentos de moradia, como organicamente, a partir de seu interior, foi rigorosamente pioneiro na construção de um saber e de uma prática profissionais que caracterizaram futuramente os técnicos da comunidade” (7).
Com o fim do LABHAB, o projeto do CCVP será retomado por Lotufo, Martha Genta e o engenheiro professor Yopanan Rebello, formando o núcleo técnico para a construção de uma creche. Lotufo então irá engajar-se em uma série de projetos entre 1990 a 2008.
A construção das unidades do CCVP, na dependência de doações escassas e irregulares, foi árdua. Os projetos foram alocados em seis unidades descontínuas típicas da autoconstrução, isto é, alvenaria de blocos cerâmicos vulgares sem revestimento, pilares concretados sem controle tecnológico, laje mista em vigotas de concreto e blocos cerâmicos, telhado de estrutura de madeira e telhas onduladas de fibrocimento.
Como princípio de racionalização, Lotufo empregará a técnica do ferro-tijolo sistematizada da seguinte forma: vergalhões de aço encurvados e chumbados nas suas extremidades são emparedados por tijolos tipo bi-queima, mais resistentes e impermeáveis, sustentados através de grampos metálicos durante a cura da argamassa. O sistema é artesanal e autossuficiente; exclui a necessidade de equipamentos e movimentação de caminhões betoneira, o que é desejável em função das características das intervenções, além de reduzir ou eliminar o uso de escoramentos ou formas de madeira.
Quanto às circulações verticais, na maioria das vezes, foi utilizada uma escada helicoidal desenvolvida por Lotufo. Construída em ferro-tijolo é apoiada em um único vergalhão chumbado no eixo central. Da maneira como é construída, a escada é um elemento autoportante, compacto e estável, sem a trepidação tão frequente em escadas desse tipo.
CCVP Milton Santos
Para a oficina de mosaicos os missionários conseguiram uma pequena habitação de 60.79m² de área em três pavimentos. Lotufo substituiu a cobertura existente por um tronco de pirâmide denteada com iluminação e ventilação zenitais permanentes. A solução é econômica em comparação às lajes de concreto armado impermeabilizadas. Neste projeto a circulação vertical foi resolvida por uma escada helicoidal, também desenvolvida por Lotufo, em argamassa armada. A escada é moldada in loco, com economia de material, mão de obra reduzida ao estritamente necessário e estrutura biapoiada.
CCVP Chico Mendes
A unidade de refeitório e cozinha foi implantada em uma habitação de dois pavimentos e área de 67.31m². Lotufo integrou os ambientes no pavimento térreo em um único salão, o que exigiu uma nova estrutura resolvida por um arco de tijolos de barro com a função de sustentar a laje do pavimento superior. Uma nova escada autoportante, em tijolos de barro argamassados, resolve a circulação vertical.
No pavimento superior os ambientes também são integrados. Duas pirâmides helicoidais, com iluminação e ventilação zenitais, revelaram-se eficientes para a sucção do ar quente da cozinha, ambas funcionando como grandes coifas. Estudantes das oficinas de mosaico executaram um mural para a fachada da edificação.
CCVP Nossa Senhora de Guadalupe
Para os espaços administrativos de apoio, foi adquirida uma habitação de três pavimentos com área de 183.13m². Lotufo demoliu parcialmente as paredes internas e as escadas existentes construindo arcos de sustentação às lajes do pavimento superior. A laje de cobertura teve solução em cúpula com raio de 4,20m, iluminação zenital e caixilho tipo rosácea. As paredes internas, a exemplo do projeto anterior, também receberam tratamento em murais de mosaicos executados pelos jovens da comunidade.
Salão e Capela São Patrício
A maior das unidades, uma habitação com 3 pavimentos e com 227,80m², possuía uma área livre nos fundos do lote, algo raro no espaço congestionado da favela, único espaço sem reformas projetado pelo arquiteto.
Esta unidade multidisciplinar destinada às artes marciais, danças e administração, terá pé-direito duplo, cerca de 5.20m, construído em abóbadas nervuradas de ferro-tijolo e garrafas de vidro.
No último pavimento, para um espaço tão exíguo quanto o da Capela São Patrício, Lotufo construiu uma abóbada em ferro-tijolo, vedos laterais em uma trama de tijolos assentados nos eixos horizontal e vertical, formando triângulos com garrafas coloridas incrustadas nos intervalos; com a finalidade de se constituir um vitral, o vedo posterior foi resolvido mediante trama de tijolos entrelaçados e fechamento em vidro martelado colorido. A luz filtrada, matéria essencial ao sagrado, modela o ambiente de forma inversa: “Os vitrais nunca se irisavam tanto como nos dias em que o sol se mostrava pouco, de modo que, por mais cinzento que estivesse o céu lá fora, tinha-se a certeza de que haveria bom tempo na igreja”, afirma Marcel Proust (8).
Escola de educação infantil São Francisco de Assis
Para a escola os missionários adquiriram uma habitação de dois pavimentos e área de 125m². No pavimento térreo, foram projetados dois novos sanitários e biblioteca com alvenaria de tijolos de barro e prateleiras de argamassa armada. No pavimento superior está localizada a grande sala de aula. Como estrutura auxiliar, um mezanino com a função de guarda de material escolar é apoiado sobre uma viga vagão de 5,00m de vão.
A cobertura, em laje mista de vigotas de concreto e blocos cerâmicos, teve solução inusual. Biapoiada no sentido transversal, se desenvolve através de curvaturas defasadas formando um shed no desvão entre as lâminas. O arquiteto riscou in loco as curvas da laje auxiliando o trabalho do pedreiro.
A comunidade também se apropriou do espaço com a execução de mosaicos e murais multicoloridos, reforçando o caráter lúdico dos espaços.
Pastoral Dom Oscar Romero
Localizado na rua central, defronte a Igreja Matriz, o Centro Pastoral Dom Oscar Romero conta com um programa de cerimônias religiosas, festas e apresentações musicais.
A edificação original com três pavimentos e área de 170.30 m², possuía quatro habitações. Para a implantação dessa unidade o arquiteto unificou os espaços, fazendo-se necessária a demolição das colunas centrais existentes e construção de sistema estrutural com novos apoios executados em colunas-feixe desenvolvidas a partir de arcos com a função de sustentar as lajes dos pavimentos. No último andar, as colunas-feixe formam paraboloides. Os tijolos assentados no sentido longitudinal acompanham a curvatura das barras de aço. Em intervalos não modulares, garrafas foram incrustadas nos vãos entre os tijolos. Na face externa, as abóbadas foram revestidas com argamassa e pintura impermeabilizante.
O professor Yopanan Rebello comenta os projetos do CCVP:
“São projetos muito bonitos e de grande audácia estrutural, usando formas em que prevalece a compressão, apropriadas ao uso de tijolos. São estruturas que o Vitor vem pesquisando, tendo um de seus restaurantes como exemplo dessa solução. No que me concerne, o Vitor sempre foi um admirador de Gaudí e usou muito os conceitos desse grande arquiteto catalão.”
Os espaços construídos por Lotufo, devido às formas, texturas e cores dos materiais, atenuaram a dura realidade dos espaços da favela. É notável a aceitação pela comunidade, observável nos trabalhos de mosaicos internos e externos às unidades, tornando mais agradáveis as ruas estreitas da favela, reivindicando uma urbanidade desejada, legítima e necessária. Igualmente notável o prestígio do mestre José Paulo Silva, responsável pela execução das unidades, junto à sua comunidade. Por outro lado, as obras de Lotufo, dadas as condicionantes, não alteraram o conjunto dominante de autoconstrução da comunidade. Entretanto, são intervenções capazes de favorecer a participação da população, do indivíduo como um valor a ser respeitado, vencendo limites materiais, realizando, longe das exclusivas ambições monumentais da profissão, uma beleza franciscana.
Na vertente teórica, Lotufo seguia com suas considerações a respeito da geometria, enquanto ramo da matemática, entendido como um ambiente de formas e desenhos mais compatível com a arquitetura, comparado aos esquemas gráficos adotados pela engenharia. Longe de qualquer divergência entre as profissões, ao arquiteto não basta saber qual o sistema estrutural mais adequado ou o limite de uma viga. Seu trabalho exige o domínio da forma enquanto estabilidade e plástica da concepção. O arquiteto não projeta em linha reta; é um constante ir e vir entre plástica, programa de necessidades, matérias e técnicas, escalas da cidade do lote e do homem, dados culturais, socioeconômicos, políticos, entre outros. Assim, o recurso gráfico-analógico, estudado por Lotufo, nos parece mais adequado ao universo de representação da arquitetura.
Em continuidade à sua pesquisa iniciada com Füller, Lotufo tem aprofundado suas pesquisas sobre as construções em cúpula, resultando na monografia Da natureza das estruturas (9). Nela retoma estudos baseados em Brunelleschi, Gaudí e Nervi, dissecando as várias modalidades de cúpula, no seu eterno devir entre teoria e techné.
Lotufo, ao transpor o moderno, opera uma síntese do saber-fazer, arco do barro ao tijolo, atuando como architektonic extemporâneo, assumindo riscos, avançando a obra na obra.
notas
[Publicado originalmente em AU, n. 194 maio 2010]
1
WITTGENSTEIN, Ludwig. Cultura e valor. Lisboa, Edições 70, 1996.
2
FERRO, Sérgio. O canteiro e o desenho. São Paulo, Projeto, 1979.
3
SAWAYA, Sylvio. Depoimento aos autores do artigo.
4
LOTUFO, Vitor Amaral; LOPES, João Marcos Almeida Lopes. Geodésicas & cia. São Paulo, Projeto, 1981.
5
CAMARGO, Mônica Junqueira de. Depoimento aos autores do artigo.
6
BONDUKI, Nabil Georges. Criando territórios de utopia: a luta pela gestão popular em projetos habitacionais. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 1987, p. 13.
7
VILLÀ, Joan. A construção com componentes pré-fabricados cerâmicos: sistema construtivo desenvolvido entre 1984 e 1994. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU Mackenzie, 2002, p. 43.
8
PROUST, Marcel. Em busca do tempo perdido. São Paulo, Folha de São Paulo, 2003.
9
LOTUFO, Vitor Amaral. Da natureza das estruturas. <www.purpurinapapeis.com.br>.
sobre os autores
Edite Galote R. Carranza é arquiteta e mestre pela FAU Mackenzie e doutoranda pela FAU USP. Diretora da G&C Arquitectônica e editora da Revista Eletrônica 5% arquitetura+arte
Ricardo Carranza é poeta, escritor, pintor, professor universitário. Arquiteto pela FAU Mackenzie e mestre pela FAU USP. Diretor da G&C Arquitectônica e editor da Revista Eletrônica 5% arquitetura+arte