Há, em um artigo de Bernard Tschumi, intitulado “O Prazer na Arquitetura” (1), uma interessante discussão relativa ao valor moral implicado na justificação funcional da arquitetura. O artigo, segundo Kate Nesbitt, insere-se no contexto do desenvolvimento da crítica de Tschumi ao programa arquitetônico (2). Na discussão, estão envolvidos dois conceitos fundamentais da arquitetura: utilidade e necessidade. Mais precisamente, a discussão versa sobre o valor moral da utilidade e da necessidade na justificação da obra de arquitetura. Segundo Tschumi,
“É apenas com muita relutância que se admite associar a inutilidade à arquitetura. Mesmo em uma época em que o prazer encontra um certo apoio teórico (o “deleite” ao lado da “comodidade” e da “solidez”), a utilidade oferecia sempre uma justificação prática” (3).
Tschumi cita um fragmento da introdução do celebre verbete de Quattremère de Quincy na Encyclopédie Méthodique, publicada em Paris em 1778:
“Entre todas as artes, estas filhas do prazer e da necessidade, (...), não se pode negar que a arquitetura ocupa um papel destacado. Considerada unicamente a partir do ponto de vista da utilidade, a arquitetura é superior a todas as artes. Ela provê a salubridade das cidades, cuida da saúde das pessoas, protege suas propriedades, e trabalha apenas em favor da segurança, da tranquilidade e do bom ordenamento da vida civil” (4).
Salvaguardando a coerência de De Quincy com a ideologia arquitetônica de seu tempo, Tschumi atenta para que a necessidade social da arquitetura “reduziu-se a sonhos e utopias nostálgicas” (5). Segundo ele, a salubridade das cidades é hoje determinada pela lógica da economia do uso do solo, ao passo que “a boa ordem da vida civil é quase sempre a ordem dos mercados privados” (6).
A questão discutida por Tschumi diz respeito à natureza peculiar da arquitetura que, segundo ele, se dissocia da “necessidade da pura construção” (7).
“Afinal, se a arquitetura é inútil, e o é de modo radical, esta mesma inutilidade poderá ser sua força (...). Mais uma vez, se nos últimos tempos há motivos para duvidar da necessidade da arquitetura, então a necessidade da arquitetura pode muito bem estar em sua desnecessidade” (8).
Necessidade e utilidade são conceitos centrais nas definições mais aceitas da arquitetura e fundamentais em seus tratados fundadores. No De Architectura, (40 a.c.), de Marcus Vitruvius Pollio, utilitas, venustas e firmitas são os conceitos que a condicionam e é comum encontrarmos o último associado ao de necessidade. No De re ædificatoria (1485), Leon Batista Alberti define o arquiteto (Architectum ego constituam), como aquele que, “pela força da razão e pelo poder do espírito”, deve atender às três exigências da sociedade: necessitas, commoditas e delectatio (9).
Em Alberti, a necessidade é explicitada como tal, e a utilidade pode ser associada à comodidade, pois esta é a qualidade do que é feito com modo. Diz respeito a um modo de fazer ou estar, ou mesmo ser. O sentido em que usamos o conceito de comodidade é similar ao que adotamos para conforto. Diz respeito à conservação de forças, físicas ou psíquicas (com / for - ça). O cômodo é o modo pelo qual estas forças são conservadas, ou não são despendidas. Em arquitetura o cômodo é o útil que presta um serviço que substitui um esforço.
O terceiro termo é o que Tschumi procura colocar em relevo, através do conceito prazer. Em Alberti, encontramos o delectatio, o deleite. O deleite é a sensação de prazer, sensível ou psíquica, produzida pela experiência de algo; por sua fruição. Françoise Choay relaciona este conceito à experiência estética, mais especificamente, à fruição da beleza, a venustas de Vitruvius. No texto de Alberti, segundo ela, “O ‘prazer’, é atingido pela ‘beleza’, que se define como um ‘acordo’ (concinnitas) de todas as suas partes conforme uma ‘lei precisa’ (certa ratione)” (10). A beleza, “numa acepção mais sexualizada”, segundo Choay, corresponde, ao nível da estética, “ao ‘desejo’ (cupiditas) que leva realmente ao ‘prazer’ (voluptas) que, tal como o belo corpo, o edifício belo proporciona ao espectador” (11).
Poderíamos dizer que às ideias ou intenções gerais, representadas pelos conceitos de necessidade, utilidade e prazer, podem ser reduzidas as condições mais essenciais da arquitetura, aquelas que são comuns e presentes em tudo o que pode ser considerado como tal e sem as quais não se faz a obra arquitetônica.
Admitindo, prima facie, que necessidade e utilidade dizem respeito ao uso prático e objetivo, e que prazer refere-se à fruição e ao universo do subjetivo, podemos dizer não só que estamos tratando da dialética fundamental da arquitetura mas, também, daquela que, desde os primórdios da filosofia, procura explicar a natureza do próprio homem. Nas fundações do pensamento de Alberti (1404 – 1472), iremos encontrar Agostinho de Hipona (354 – 430), Plotino (205 – 270) e Platão (427 – 347 a.c).
Para Agostinho, para quem “os homens somos os que fruímos e utilizamos” (12), a fruição se distingue do simples uso porque seu objeto satisfaz em si mesmo. Ele não visa atingir algo além.
“Não fruímos quando queremos algo, por causa de outra coisa. Ora, só o fim último não é desejado por causa de nada. Logo, só dele há fruição” (13).
Se os objetos de uso se justificam apenas pelo fim último ao qual dão acesso o que, então, justifica os objetos de fruição? Segundo Agostinho, podemos encontrar esta justificativa apenas na subjetividade humana. Em seus termos, no amor, razão pela qual “os brutos não podem fruir” (14).
“Fruir é aderir por amor, a alguma coisa, em si mesma” (15).
É a esta dialética da arquitetura, ou a esta dinâmica da alma, situada na tensão entre uso e fruição, que a discussão proposta por Tschumi estilhaça. Ao colocar estes termos em contradição irreconciliável, condicionando o valor da obra arquitetônica à sua desnecessidade e inutilidade, ele situa a arquitetura no estrito campo da fruição. O caráter negativo e opositivo dos conceitos nega, ao valor de uso, a qualificação da obra arquitetônica. A este valor, e ao imperativo da necessidade, responderia a simples edificação.
As condições de necessidade e utilidade, ou as ideias que estão contidas nestas representações conceituais, de fato adquiriram, no contexto das pragmáticas da técnica industrial e do urbanismo ordenado pela lógica do capital, tal capacidade de normatizar esteticamente e justificar moralmente a produção arquitetônica, que julgamos oportuno aprofundar o sentido mais essencial destes conceitos e o modo pelo qual a arquitetura com eles se relaciona.
Necessidade é o conceito que expressa o que é condição sine qua non para que algo seja. Em termos ontológicos, é a condição do ser. O que é essencial a esta condição e sem o que algo não é. No fragmento de Tschumi, este conceito parece confundir-se com o de utilidade. São, no entanto, bastante distintos. A água, ou o acesso a ela, é necessário à vida. É condição sine qua non desta. Sistemas hidráulicos que tornem mais cômodo ou confortável esse acesso são úteis ao prestarem o serviço que reduz o esforço ou incomodo implicados neste acesso. Mas não são necessários, são apenas úteis.
Em Alberti esta discussão já está claramente colocada. Para ele, segundo Choay, “a ‘necessidade’ é tanto a que rege o ‘mundo natural’, [como] (…) aquela que subentende o ‘mundo humano’” (16). Porém, ele alerta que é tênue a fronteira que distingue a necessidade da comodidade ou da utilidade.
“Et nos, quando sic aedificationes ratio suadeat, non ita distinguemus ut comoda ab ipsis necessariis segreguemus” (17).
Choay comenta que ele
“denuncia a falsa necessidade na qual deixa crer o processo de naturalização das demandas que o hábito transforma em carências e adorna falaciosamente com o qualificativo necessário” (18).
Este enlace entre hábito e necessidade, que sustenta o questionamento de Alberti, também encontra seu suporte nas “Confissões” de Agostinho:
“… da vontade perversa nasce o desejo, do desejo atendido nasce o hábito, e da não resistência ao hábito, provém a necessidade; e como se fossem anéis enlaçados entre si – por isso chamei cadeia – mantinha-me em escravidão” (19).
Deste modo, a questão da distinção entre o útil e o necessário adquire uma perspectiva de caráter fortemente subjetivo. Além disso, o desenvolvimento da vida social de cada povo ou comunidade, e de seus hábitos e costumes, coloca o problema desta distinção também na perspectiva do tempo histórico. Esta perspectiva é a do homem enquanto ser historicamente situado em seu aqui e agora. Situação esta determinada não só pelos valores morais que estruturam a vida subjetiva de uma comunidade ou de um povo histórico, mas também pelas possibilidades e limites impostos pelos meios sócio-técnicos que intermedeiam sua relação com o ambiente. Seu modo de estar no mundo.
Considerando esta discussão sobre o hábito, o exemplo anterior sobre o problema da água e do acesso a ela deve ser revisto: os sistemas hidráulicos, neste contexto, são mais do que uma utilidade; são uma necessidade. Não seria possível a vida humana nas densidades populacionais das metrópoles contemporâneas, e nos ritmos e tempos que marcam todos os fazeres e estares que a caracterizam, se o acesso a água para todos os usos relativos ao consumo, à produção e à higiene não se fizesse por meio dos dispositivos técnicos que suportam tal situação. Os hábitos historicamente desenvolvidos pela vida social e os meios técnicos que os suportam determinam ou abrem um mundo próprio e o que, do ponto de vista da necessidade, é, nele, a condição da habitação.
Se o útil é o que intermedeia a relação técnica do homem com a terra na abertura de um mundo, e se o mundo e o homem são, assim, uma unidade, então a condição necessária desta unidade mundo-homem dada é o útil que a determinou. Deste modo, todo o útil é necessário para esta unidade mundo-homem, ou para esta situação do ser assim situado. Nesta relação, é o próprio mundo que impõe, através do útil (o ambiente técnico) que o determinou, o necessário que o condiciona.
Esta determinação, do necessário como o útil situado, não implica, no entanto, que sejam, um ou outro, condições da arquitetura. A questão referente a desnecessidade como a condição pela qual a arquitetura se diferencia da necessidade da simples construção permanece em aberto.
Tschumi propõe que esta diferença situa-se na prioridade que a arquitetura atribui ao prazer estético, o qual deriva da pulsão erótica implicada no modo como o arquiteto manipula o conjunto de regras e cânones sustentados pelo aparato teórico, histórico e conceitual que constrange a concepção da obra arquitetônica. Ao passo que a necessidade e a utilidade seriam articuladas pela razão pragmática, a ação poética encontraria seu móvel na paixão. Esta, segundo ele, é tão mais metódica quanto mais excessiva, pois “a organização invade o prazer a tal ponto que nem sempre é possível distinguir as restrições impostas pela organização do objeto erótico” (20). Ele ilustra a ideia através das refinadas o obsessivas práticas do marquês de Sade, cujos heróis gostavam de confinar as suas vítimas nos conventos mais rigorosos, antes de maltratá-las de acordo com regras cuidadosamente estabelecidas por uma lógica precisa e obsessiva (21).
“O jogo da arquitetura é igualmente intrincado, com regras que podem ser aceitas ou rejeitadas. (...), essa trama onipresente de leis articuladas constrange o projeto arquitetônico. (...), essas regras (...), quando bem manejadas, tem a significação erótica do cativeiro” (22).
O argumento de Tschumi é sumamente interessante. São notáveis as relações que a psicanálise já estabeleceu entre sexualidade e erotismo sublimados e prazer estético. No entanto, a determinação erótica do prazer estético não determina, por si, a necessidade da desnecessidade ou inutilidade do objeto. Outra questão distinta, são as tensões que se estabelecem na justificação da obra arquitetônica, ou das decisões e escolhas poéticas e pragmáticas que condicionam sua feitura. Tal tensão é situada. Ela provém dos valores que estruturam moral, ética e esteticamente um dado mundo, determinado pelos hábitos e práticas sócio-técnicas do povo histórico que o constitui.
O caráter moral de que se revestem tais pragmáticas está, de um modo geral, associado a ideia de desperdício. Julgamos de modo moralmente negativo o desperdício de recursos, econômicos ou técnicos, no que não é necessário ou, pelo menos, útil e, de um modo geral, não incluímos o prazer estético nos universos da necessidade e da utilidade. Muito pelo contrário, o prazer estético, justamente por suas conotações eróticas, ou pelo apelo que faz à sensualidade latente dos homens, inspira sempre o temor da desordem, da perdição e do caos, e de todo o desperdício neles implicado. Segundo Tschumi,
“Estas oposições são quase sempre eivadas de conotações morais. O ataque de Adolf Loos ao caráter criminoso do ornamento mascarou o seu medo do caos e da desordem sensual. E a insistência do De Stijl na forma elementar não foi apenas um retorno a uma pureza anacrômica, mas uma regressão deliberada a uma ordem segura” (23).
Compreende-se, tanto pela ameaça representada pela perdição erótica, quanto pelo simples desperdício representado pelo investimento de recursos no prazer, no contexto de uma cultura que não o inclua entre o útil e necessário, o modo como, nas tomadas de decisão implicadas no ato poético, a justificação moral, baseada nestes últimos, se sobrepõe à justificação estética. A psicanálise já demonstrou amplamente que a condição da cultura é a repressão do desejo. O mal estar que predomina na vida cultural como decorrência desta condição foi inclusive o tema de um dos mais conhecidos livros de Sigmund Freud (24). No entanto, nada disso determina que a inutilidade seja condição da obra arquitetônica.
A questão que permanece é a relativa à tensão dialética entre a obra e o útil. Porém, esta não é uma questão isolada, pois se há uma obra não arquitetônica capaz de atender ao necessário e ao útil, então também há uma dialética arquitetônico / não arquitetônico presente nas tensões que se estabelecem na obra.
Para a discussão destas questões gostaria de acompanhar um ensaio de Martin Heidegger, intitulado “A origem da obra de arte” (Der Ursprung des Kunstwerkes), de 1952. Segundo Samuel Ramos, comentador de Heidegger, este foi um ponto de inflexão no pensamento sobre a arte, pois, ao contrário da estética do século XIX, que colocou em relevo o caráter subjetivo da atividade artística, Heidegger abordou a obra de arte em sua concretude, produzindo o que pode ser considerado uma ontologia da arte (25).
Para Heidegger, a obra de arte é um ente, cujo caráter singular sua pesquisa procura elucidar. Ela existe de um modo tão natural como uma coisa. “o quadro pendurado na parede como um fuzil de caça ou um chapéu... Os quartetos de Beethoven jazem nas prateleiras das editoras como as batatas no armazém” (26). A obra de arte é uma mera coisa ou é algo além disso?
Para esclarecer esta questão, Heidegger, busca elucidar de que modo a obra participa da natureza da coisa. Isso leva a uma questão ontológica mais geral, pois quase sempre a coisa foi tomada como modelo do ente. Heidegger reduz a três tipos as teorias que, desde a Grécia, pensaram deste modo: a substancialista, a sensualista e a teoria matéria e forma. Para a primeira, a estrutura da coisa é um substrato imutável, mas invisível, além de um conjunto de acidentes variáveis. Para a segunda, a coisa é somente um conjunto de sensações. Para a terceira, a acomodação da matéria a uma forma.
Para Heidegger, forma é o ordenamento, nos lugares do espaço, das partes da matéria; o contorno espacial que isso tem, como um bloco de granito. Mas existem determinados objetos de uso – os úteis – que não só tem forma, como são capazes de dar ou acomodar forma: um machado esculpe; os jarros, dão forma ao que contém; um sapato tem sua forma determinada pelo uso. Não somente isso, mas, também, a própria matéria com que são confeccionados é determinada pelas necessidades de uso: suficientemente dura para o machado, impermeável para o jarro, firme mas flexível para os sapatos. Nestes casos, segundo ele, a articulação que impera entre forma e matéria é determinada de antemão por aquilo a que serve, isto é, pelo serviço que prestam.
“Esta utilidade nunca se estabelece nem impõe suplementarmente a entes da classe do jarro, do machado, dos sapatos. Tampouco é irrelevante que, como fim, se encerre em algum momento” (27).
Este caráter utilitário do útil traz estes traços que lhes são comuns: sua estrutura forma matéria é previamente determinada pelas finalidades a que se destina. E sua utilidade se encerra no momento em que as finalidades a que se propõe puderem ser atingidas por outros meios, mais práticos ou eficientes, ou mesmo no momento em que os hábitos transformarem esta finalidade ou seu sentido sócio-cultural.
“Em tal utilidade se fundamenta a forma dada e a previa eleição da matéria (...). O ente que está subordinado a esta utilidade é sempre o produto de uma confecção. O produto é confeccionado como um útil para algo. Por decorrência, a matéria e a forma como determinações do ente estão naturalizadas na essência do útil” (28).
Esta relação entre matéria e forma, se dá num âmbito particular, que é o âmbito das coisas feitas pelo homem. O útil, como um produto, é o resultado de uma produção. E o âmbito de toda a produção é a técnica. Em “A questão da técnica”, texto publicado em 1954, Heidegger afirma que, em uma visão instrumental,
“a técnica pertence ao fazer e ao utilizar, portanto as necessidades e objetivos aos quais serve (…). O conjunto desta organização e destes dispositivos [do fazer] é a técnica, ela própria um dispositivo. Um ‘instrumentum’” (29).
A palavra técnica provém, segundo Heidegger do grego technikon. Segundo ele, duas considerações são devidas a ela: ela significa não só o fazer artesanal, mas também o das belas-artes e o das grandes artes.
“A ôέ÷íç [técnica] pertence à pro-dução, a ðïίçóéò [poiesis], é, portanto, algo poético” (30).
Deste modo, o útil, ao poder ser representado no esquema matéria / forma, aproxima-se da mera coisa mas, como artefato humano, aproxima-se da obra de arte. O útil situa-se, segundo Heidegger, em uma posição intermediária entre uma simples coisa, como um bloco de granito bruto, e uma obra de arte. Mas ele não tem a espontaneidade da simples coisa nem a autonomia em relação à utilidade que tem a obra arte.
“Assim, o útil é metade coisa, porque é determinado pela coisidade [a relação matéria forma que o constitui] e, sem dúvida, mais; ao mesmo tempo, metade obra de arte e, sem dúvida, menos, porque não tem a auto-suficiência da obra de arte. O útil tem uma peculiar posição intermediária entre a coisa e a obra, sempre que se permita essa seriação matemática” (31).
Esta posição intermediária do útil, em relação à coisa e à obra de arte, não determina, no entanto, a essência do útil. Esta, deve ser buscada no uso, que é onde o útil é. Mas o traço essencial do útil não é apenas o uso, ou o fato de servir ao que se propõe, mas o efetivamente ser usado, o existir em uso. O ser do útil é um ser situado no exercício de sua utilidade.
“O ser do útil enquanto tal consiste em servir para algo. Porém, (...) o que o útil tem de útil em seu serviço? A camponesa leva os sapatos na terra lavrada. Aqui é onde realmente são o que são [os sapatos]. O são tão mais autenticamente, quanto menos, ao trabalhar, pense neles a camponesa, (...). Assim é como realmente servem os sapatos” (32).
Em seu esforço de distinguir o ser do útil do ser da obra de arte, Heidegger está desenvolvendo a análise do quadro de Van Gogh, que tem como tema um par de sapatos de camponês e que é uma das razões da celebridade deste ensaio.
“Um par de sapatos de camponês e nada mais. E, no entanto...
Na obscura boca do gasto interior, boceja a fadiga dos passos laboriosos. No rude peso dos sapatos está representada a tenacidade da lenta marcha através dos longos e monótonos sulcos da terra lavrada (...). No couro está tudo o que tem de úmido e gorduroso o solo. Sob as solas desliza a solidão do caminho (...). No sapato vibra a tácita chamada da terra, seu repousado oferecer do trigo que madura (...). (...). Propriedade da terra é este útil e o resguarda o mundo da camponesa. Desta resguardada propriedade emerge o útil mesmo, em seu repousar em si” (33).
Este traço essencial do útil é encontrado não no serviço que presta, mas na intimidade do uso no mundo que lhe é íntimo. No modo como este uso abre este mundo ao usuário. Mais, no modo como esta relação é o próprio mundo daquele que usa. No entanto, o traço essencial do útil, para Heidegger, não é o servir para alguma coisa, mas o ser de confiança (Verlässlichkeit) que esta intimidade, ou a naturalidade que dela emana, estabelece.
“O ser do útil consiste sem dúvida em servir para algo. Porém este mesmo servir para algo descansa na plenitude de um mais essencial ser do útil. Vamos chamá-lo de “ser de confiança”. Em virtude dele, faz a camponesa, por intermédio deste útil, à silenciosa chamada da terra; por causa do ser de confiança do útil está a camponesa segura de seu mundo. Mundo e terra só existem para ela, e para os que existem com ela de seu mesmo modo, assim e somente assim: no útil” (34).
Deste modo, o útil só atinge a essência de seu ser no ser de confiança e não no mero serviço que pode prestar. A essência do útil não está no serviço que presta. Está no mundo que, sobre a terra, abre com este serviço. No modo de vida que esta abertura determina. No modo como ela resguarda da terra. Na segurança que esta confiança inspira e na estabilidade que ela proporciona.
“O ser do útil, o ser de confiança, concentra em si todas as coisas a seu modo e segundo seu alcance. O servir para algo do útil só é, a rigor, a consequência essencial do ser de confiança” (35).
No entanto, esta relação entre o útil e o ser de confiança não é uma relação estável e permanente. Não é somente um útil específico que se desgasta com o uso. Este mesmo, o uso, desgasta-se na cotidianidade do hábito, torna-se habitual. E este uso desgastado pelo hábito acaba por ocultar o ser de confiança que é a essência do útil.
“Assim é como o ser mesmo do útil entra em obliteração rebaixando-se ao mero útil. Tal obliteração do ser do útil é o desaparecer do ser de confiança. Porém, esta obliteração a que tendem as coisas de uso, sua monótona e pegajosa habitualidade, só é um testemunho a mais da essência original do ser do útil. A desgastada habitualidade do útil avança então como a única forma de ser que ao aparecer lhe é exclusivamente própria. Somente o mero servir para algo continua agora sendo visível. E suscita a aparência de que a origem do útil está no mero confeccioná-lo, imprimindo, a um material, uma forma” (36).
É no ser de confiança que repousa a essência do útil. Este saber, no entanto, não esclarece o ser coisa da coisa e, ainda menos o que tem de obra a obra. Nem tampouco estabelece como verdade a condição de inutilidade que Tschumi determina para a arquitetura.
O conceito “ser de confiança” permite, porém, pensar esta dialética a partir de uma nova perspectiva. Que o edifício útil se aproxima do arquitetônico na medida que, nele, permaneça visível e patente a essência do útil que estava em sua origem. Na medida em que ela seja capaz de, mesmo quando a obra já tenha perdido sua utilidade, revelar o etos que a justificou e os modos de ser da cultura ou do povo histórico que, em seu tempo, a utilizou.
Esta capacidade que tem a obra de arte de comunicar, de dar a saber ou de revelar algo que está além dela é, para Heidegger, um dos traços essenciais do ser obra da obra de arte. E é justamente através da análise da essência do útil, que realiza através do quadro de Van Gogh, que ele, por meio desta capacidade da obra de revelar o ser de confiança como a essência do útil, demonstra que um traço essencial do ser obra da obra é a revelação.
“Descobrimos o ser do útil. Porém, como? Não por meio da descrição e explicação de um sapato realmente presente; não graças a uma informação sobre o processo de confecção de sapatos, não em virtude de haver observado a maneira real e efetiva com que os sapatos são usados aqui ou ali, mas apenas pondo-nos frente a um quadro de Van Gogh. O quadro falou. Na proximidade da obra passamos subitamente a estar onde habitualmente não estamos” (37).
O que a obra fez visível foi o ser do útil. Mais do que uma imagem de um útil em particular, a obra revelou a essência do útil. Aquilo que o uso habitual acaba por ocultar, a obra é capaz de revelar. Assim, para Heidegger, a operação que a obra realiza é a des-ocultação do ente.
“O que acontece aqui? O que opera na obra? O quadro de Van Gogh é o fazer patente o que o útil, o par de sapatos de camponês, realmente é. Este ente sai ao estado de não ocultação de seu ser. O estado de não ocultação dos entes é o que os gregos chamavam alhqeia. Nós dizemos “verdade” (...). Se o que se passa na obra é um fazer patente os entes, o que são e como são, então há nela um acontecer da verdade” (38).
O conceito de verdade aqui não diz respeito ao de verossimilhança. Não se trata de que a obra seja um símile perfeito – basta observar o quadro de Van Gogh. Por verdade entende-se habitualmente uma correspondência entre a representação e o representado. Mas aqui não se trata de uma questão de representação. Trata-se da capacidade que a obra de arte tem de abrir um mundo, isto é, de revelar o ser de um ente, aquilo que ele é em si mesmo, sua essência.
Para escapar ao âmbito da representação, Heidegger opta por analisar uma obra que não seja figurativa.
“Um obra arquitetônica, como um templo grego, não representa nada. Se levanta com simplicidade no fendido vale rochoso. (...). O templo (...) constrói e congrega simultaneamente em torno de si a unidade daquelas vias e relações nas quais o nascimento e a morte, a desdita e a felicidade, a vitoria e a ignomínia, a perseverança e a ruína, tomam a forma e o curso no destino do ser humano. A poderosa amplitude destas relações patentes é o mundo deste povo histórico. Partindo de tal âmbito, e em seu interior, se volta um povo sobre si mesmo para cumprir seu destino” (39).
Porém, o templo não só revela algo que esteve presente em sua origem ou que se desenrolou em sua presença. Ele é também aquela presença cuja ausência faria com que o que é fosse distinto. Sua presença revela o lugar sobre o qual se estabelece, sob uma perspectiva que o faz ser o que é. O revela, em seu ser, como uma forma do acontecer da verdade.
“O edifício em pé descansa sobre o fundo rochoso. Este repouso da obra extrai da rocha o obscuro de seu suportar tão tosco e pujante para nada. (...). O brilho e a luminosidade da pedra, aparentemente devidas à graça do sol, sem dúvida, fazem com que se mostre a luz do dia, a amplitude do céu, o sombrio da noite. Sua firme proeminência faz visível o espaço invisível do ar. O inamovível da obra contrasta com a ondulação do mar e por sua quietude faz ressaltar sua agitação. (...). Ilumina à sua vez aquilo onde e no que funda o homem a sua morada. Nós o chamamos a terra. (...).
O templo em pé abre um mundo e, por sua vez, o volta por sobre a terra que, de tal modo, aparece ela mesma como o solo nativo. (...).
O estar em pé do templo dá as coisas a sua fisionomia, e aos homens a visão que tem de si mesmos (...)” (40).
Mas o que tem esta noção de revelação, como um acontecer da verdade que abre um mundo, com a noção habitual de arte que a determina como a atividade de fazer o belo? Foi por intermédio desta perspectiva que Tschumi contrapôs necessidade e utilidade ao prazer e à relação entre o deleite e a sensualidade. É justamente através desta dialética que se estabeleceu a tensão entre a arte e a não arte. Porém, para Heidegger, a beleza não é mais que um modo de ser da verdade.
“Quanto mais simples e essenciais sejam os sapatos, (...), tanto mais imediata e evidentemente se faz mais ente todo existente. Assim se ilumina o ser que se auto-oculta. A luz deste tipo põe seu brilho na obra. Este brilho posto na obra é o belo. A beleza é um modo de ser da verdade” (42).
No ensaio de Heidegger, está ainda distante o fim da discussão que visa esclarecer qual é a natureza particular da obra de arte, ou qual é o ser obra da obra ou o que, enfim, é a arte. Não é este o objeto desta pesquisa. Aqui, buscamos entender um pouco melhor apenas qual o sentido da utilidade na arquitetura. Porém, embora não tenhamos acompanhado até o fim a discussão quanto ao ser obra da obra, o fizemos o suficiente para entender claramente que este não reside em sua utilidade. Isto não determina, no entanto, a sua necessária inutilidade.
Por outro lado, vimos que o essencial no útil, o ser de confiança, abre um mundo e instala a morada do homem sobre a terra. Também, no entanto, que se oblitera na habitualidade do uso e se perde, restando o mero útil, que sucumbe na banalidade do cotidiano. Chegamos a propor que podemos distinguir o mero útil da obra arquitetônica simplesmente por ela permanecer, como obra, revelando o ser de confiança que imperou em sua origem, mesmo quando sua utilidade já caducou, diante das transformações no mundo no qual situa-se.
O que a faz permanecer? Não é o fato de que, nesta revelação, opera a verdade? Não é isso o belo? Qual é, então, a relação entre o útil e o belo? É esta uma relação na qual a simultaneidade é possível? Ora, o útil será belo no exato momento que ele for capaz de por em operação a verdade, da qual a beleza é um dos modos de ser. Porém, neste momento, em que pese sua utilidade, ele não será mais um útil. Por ser belo, será uma obra de arte, pois, nele, estará presente este modo de ser da verdade.
Deste modo, e apenas deste, podemos aceitar como verdade fundamentada a afirmação de Tschumi, quanto a necessária desnecessidade e inutilidade da arquitetura. Não porque a inutilidade tenha que imperar em sua origem mas porque, ao pôr em operação a verdade, a obra faz-se bela e, em sua beleza, transcende a mera utilidade, fazendo-se obra de arte, no mais estrito sentido das belas artes. Não como uma arte que é bela, mas que encontra seu sentido em fazer o belo.
Toda esta discussão, no entanto, parte de alguns pré-supostos. Que a arquitetura seja uma das ditas belas artes. Que a atividade do arquiteto é uma produção que tem como meio as técnicas de projeto e como fim uma obra arquitetônica. Que esta obra arquitetônica é um ente que, como uma coisa ou como um útil, é matéria conformada e, portanto, limitada, no espaço e no tempo, aos contornos de sua forma e à situação de seu sítio. É no contexto destes pressupostos que se estabelece, na arquitetura, a tensão entre o útil e a obra de arte. E é nele que se discutiu a afirmativa de Tschumi quanto à necessária desnecessidade da arquitetura. Mas, se os conceitos que sustentam estes pressupostos fossem reinterpretados? Se fossem cancelados certos antagonismos conceituais tidos como naturais, certas polaridades dialéticas, como aquelas que antagonizam natureza e técnica (cultura), prática e teoria, forma e função e, até mesmo, unicidade e multiplicidade, por exemplo?
É a este trabalho de desconstrução, conceitual e arquitetônica, que se dedica, de forma bastante consistente, boa parte da obra pratica e teórica de Tschumi. Esta última, segundo Nesbit, situa-se na tradição do pensamento francês por seu vínculo com o pós-estruturalismo de Michel Foucault, através do conceito de corte epistemológico, e com o desconstrutivismo de Jacques Derrida, através do conceito de intertextualidade (42). Segundo ela, citando o próprio Tschumi, o que o atrai no pós-estruturalismo e na desconstrução é que “(...) põem em xeque a ideia de um conjunto unificado de imagens, a ideia de certeza e, é claro, a ideia de uma linguagem identificável” (43). Não é necessário, segundo Nesbit, haver uma linguagem identificável, já que para ele a arquitetura não ilustra pensamentos (44).
Derrida pensa que, no momento em que distinguimos a teoria da práxis, percebemos a arquitetura como uma mera técnica, descolada do pensamento. Quem sabe, não haverá, pergunta-se ele, “um caminho de pensamento, ainda por descobrir, que faça parte do momento da concepção da arquitetura, do momento do desejo, da invenção” (45). Este caminho, para ele, passa por um “procedimento desconstrutivo”, no qual está implicada uma tentativa de “emancipação em relação as oposições impostas pela história da filosofia” (46), dentre as quais, além da oposição entre teoria e prática, destaca physis/téchne, Deus/homem, filosofia/arquitetura (47).
O pensamento arquitetônico só pode ser desconstrutivo, segundo Derrida, neste sentido: “como tentativa de visualizar o que estabelece a autoridade da concatenação arquitetônica na filosofia” (48). Deste modo, o ato projetual desloca-se do manejo descritivo da forma na épura projetiva para o manejo do conceito no espaço filosófico, onde “o pensamento é concebido como um caminho” (49). Este espaço se constitui através da escrita e, nele, estamos na escritura, pois “abrir um caminho é uma escritura” (50). Como essa escritura, segundo ele, é como um labirinto, pois não tem começo nem fim, nela, estamos sempre em movimento. Deste modo,
“a oposição entre tempo e espaço, entre tempo do discurso e espaço do templo, ou da casa não tem mais nenhum sentido. Vive-se na escritura, e escrever é um modo de vida” (51).
A concepção de Tschumi para o parque de La Villette é, sem dúvidas, a mais marcante transcrição dos conceitos definidos por Derrida na escala e na concretude dos espaços urbanos e paisagísticos. Os objetos arquitetônicos suprafuncionais, os folies, e os eixos e passeios que os articulam são uma escritura assintética, desprovida de significação, início, fim ou função. É apenas o labirinto onde, como eventos, movem-se os corpos.
"o projeto do Parc de la Villette pode assim ser visto para incentivar o conflito sobre a síntese, a fragmentação sobre a unidade, a loucura e o jogo sobre a gerência cuidadosa” (52).
Tschumi recusa “o estreitamento da arquitetura como forma de conhecimento a uma arquitetura de mero conhecimento da forma” (53) e, embora reconheça que não há arquitetura sem desenho, adverte que, do mesmo modo, não há arquitetura sem texto. As complexas demandas culturais, sociais e filosóficas que se desenvolveram ao longo dos séculos fizeram da arquitetura “uma forma de conhecimento em si e por si” (54). Os seus Manhattan Transcripts são a mais adequada expressão de uma arquitetura que se divorcia da construção para se manifestar como puro conceito sobre o espaço plano do papel.
O que se discute, tanto nos Manhattan Transcripts como no Parque de La Villette, segundo Tschumi, é a “noção de unidade” (55). Da forma como foram concebidos, segundo ele, “esses projetos não tem começo nem fim” (56).
“São antes operações, compostas por repetições, distorções, sobre-imposições etc. (...) A ideia de ordem é permanentemente questionada, desafiada e levada ao extremo (...) os fatos nunca se conectam e as relações de conflito são cuidadosamente preservadas em detrimento da síntese ou da totalidade. O projeto nunca se realiza, assim como as fronteiras nunca são definidas” (57).
Tschumi sugere, segundo Nesbit, que não se deve conceber a arquitetura em termos estruturalistas, como um objeto ou obra, mas em termos pós-estruturalistas, como uma atividade humana ou como um texto aberto. Para ele, a aplicação da semiótica à arquitetura “exacerbou o hábito de exacerbar a obra singular como objeto, ignorando sua complexa ‘intertextualidade’ (58)” (59)
Deste modo, a própria noção de obra de arte, como um ente finito, definido, situado, do mesmo modo que um útil ou uma coisa é desconstruída. Metodicamente desconstruída, tanto ao nível conceitual quanto no da prática projetual. O método, o qual Tschumi aplica de modo sistemático, consiste na dissociação ou disjunção de unidades estabelecidas – sejam oposições conceituais, sejam simetrias formais. Na arquitetura, segundo ele, a “disjunção implica que nenhuma das partes, em momento algum, pode transformar-se em uma síntese ou totalidade autossuficiente” (60). São os seguintes os “denominadores comuns para um método arquitetônico disjuntivo” (61):
“- rejeição da noção de “síntese” em favor da ideia de dissociação, de análise disjuntiva;
- rejeição da oposição tradicional entre uso e forma arquitetônica em favor da sobreposição e justaposição de dois termos (...); ênfase dada, como um método, à dissociação, à superposição e à combinação (...)” (62).
Se tal método disjuntivo é incompatível com uma visão estática, autônoma e estrutural da arquitetura, não é, segundo Tschumi, contrário à autonomia ou à estrutura:
“apenas implica operações mecânicas constantes que produzem sistematicamente a dissociação (Derrida designaria estas operações de différance) no espaço e no tempo, em que um elemento arquitetônico somente funciona por meio da colisão com um elemento programático, com o movimento dos corpos ou coisas do tipo. Desta maneira, a disjunção se torna uma ferramenta sistemática e teórica para a produção da arquitetura” (63).
Há um texto particularmente interessante na produção teórica de Tschumi, “Conceito, Contexto, Conteúdo” (64), no qual ele desenvolve, através destas operações dissociativas de seu método disjuntivo, um conjunto de combinações possíveis sobre os modos como o fato arquitetônico (65) pode responder a estes três fatos implicados no jogo conceitual da arquitetura. A partir dele pode-se contextualizar melhor algumas de suas assertivas.
Ele abre o texto afirmando que é “o conceito, não a forma, o que distingue a arquitetura da mera construção” (66), para logo a seguir emendar que, “sem dúvida, não há arquitetura sem contexto (exceto para a utopia)”. Uma obra arquitetônica, segundo ele, “está sempre situada, ou ‘em situação’, localizada em um sítio”. O contexto, para ele, pode ser histórico, geográfico cultural, político ou econômico. “Não é nuca só um assunto visual (...)” (67).
No entanto, embora considere que conceito e contexto sejam inseparáveis, pondera que frequentemente estão em conflito, pois, segundo ele, “o conceito pode negar ou ignorar as circunstâncias que o rodeiam, ao passo que o contexto pode obscurecer ou diluir a precisão de uma ideia arquitetônica” (68). Propõe, portanto, a seguinte reflexão:
“Deveria prevalecer algum destes dois termos sobre o outro? A história da arquitetura é abundante em debates entre os partidários da tabula rasa – o conceito – e os do genius loci – o contexto – ou, dito de outro modo, entre conceitos genéricos e específicos. A resposta pode repousar não no triunfo de um sobre o outro, mas em explorar a relação entre ambos” (69).
A resposta é, mais do que pragmática, metodológica. As dissociações, ou justaposições disjuntivas possíveis são três, segundo ele: 1) indiferença; 2) reciprocidade; 3) Conflito (70). No primeiro caso, o resultado pode ser tanto “justaposições poéticas” como “imposições irresponsáveis” (71). No segundo, conceito e contexto complementam-se em uma “unidade contínua e sem fraturas”. No terceiro, “se faz chocar estrategicamente o conceito com o contexto em uma batalha de opostos que os faz negociar sua própria sobrevivência” (72).
O próximo par conceitual a ser desconstruído por Tschumi é a relação entre conceito e conteúdo. Nesta discussão está implicado o problema do lugar, através do qual Tschumi estabelece novo contato com o pensamento de Derrida. Ambos, segundo Nesbit, se interessam pelo estudo do lugar, do “ter lugar” de um acontecimento, e da dimensão temporal da experiência do espaço (73). Para Derrida,
“A grande questão da arquitetura, de fato, é a do lugar, a do ter lugar no espaço. O estabelecimento de um lugar que até então não existia e que é compatível com o que nele terá lugar um dia, isto é um lugar” (74).
Para Tschumi, “não há espaço arquitetônico sem algo que tenha lugar ali: não há espaço sem conteúdo” (75). Segundo ele, a maioria dos arquitetos começa com um programa, isto é, uma lista de requerimentos do usuário que descreve o propósito do edifício. Deste modo, o que dirige o projeto são os requerimentos do usuário, isto é, os usos aos quais, como um útil, a obra se destina.
Em vários momentos da história da arquitetura afirmou-se, segundo Tschumi, que o programa ou a função podem ser geradores da forma, que “a forma segue a função”. Ele propõe que se substitua o conceito por “a forma segue o conteúdo” (76). Para evitar discussões sobre a “forma por si ou a forma contra o conteúdo” (77), propõe também substituir a palavra forma por conceito. “É possível substituir a fórmula ‘a forma segue a função’ por ‘o conceito segue o conteúdo’?” (78).
Sem dúvida, o conceito de um edifício pode preceder a inserção do programa ou conteúdo, já que um contentor neutro pode alojar numerosas atividades. Do mesmo modo, um elemento programático pode exacerbar-se ou tematizar-se de tal modo que se converta no conceito do edifício (79).
O exemplo anterior sugere, segundo ele, que a relação entre conteúdo e conceito, como aquela entre conceito e contexto, também pode ser de indiferença, reciprocidade ou conflito (80). Deste modo, forma, função, contexto são dados de um jogo conceitual. De um jogo compositivo, no qual o conceito não deve resposta direta nem ao programa nem ao contexto, muito pelo contrário, a indiferença, junto com o conflito (resposta reativa) ou a reciprocidade, são meras estratégias compositivas em um processo disjuntivo de composição por dissociação. De uma forma de composição arquitetônica que se dá mais no espaço filosófico dos conceitos do que no espaço técnico da épura projetiva.
Se não são nem o lugar nem os usos que determinam o projeto, se
“(...) uma quantidade suficiente de programas conseguiu funcionar em edifícios para fins completamente diferentes, comprovando o argumento simples de que não havia nenhuma relação causal necessária entre uma função e uma forma subsequente, ou entre um dado tipo construtivo e um uso específico” (81).
Então, quais os compromissos que mobilizam o arquiteto? Teria a arquitetura chegado à arquitetura pela arquitetura, do mesmo modo que chegou a pintura quando, através de Cézanne, rompeu com a perspectiva e a representação e voltou-se para a materialidade da própria pintura? Não, segundo Tschumi. Comentando o último termo da trilogia vitruviana, ele determina o corpo, “o seu corpo, o meu corpo” (82).
“O único juiz competente sobre o último termo da trilogia, “acomodação espacial adequada”, é, naturalmente, o corpo, (...) – o ponto de partida e o ponto de chegada da arquitetura” (83).
A “concepção cartesiana do corpo-como-objeto” foi, segundo ele, contraposta pela “visão fenomenológica do corpo-como-sujeito”. Como decorrência, a materialidade e a lógica do corpo se opuseram a materialidade e a lógica dos espaços (84).
“Do espaço do corpo para o corpo-no-espaço a passagem é intrincada. Este deslisamento, a brecha na obscuridade do inconsciente, algum lugar entre o corpo e o Ego, entre o Ego e o Outro. A arquitetura ainda não começou a analisar as descobertas vienenses do final do século, se é que algum dia a arquitetura virá a informar a psicanálise mais do que esta informou a arquitetura” (85).
O espaço não é simplesmente a projeção tridimensional de uma representação mental, mas, segundo Tschumi, “é algo que se ouve e no qual se age” (86). Trata-se, o espaço arquitetônico, do lugar onde se dá o movimento dos corpos. É aí, segundo ele,
“que começa a articulação entre o espaço dos sentidos e o espaço da sociedade, as danças e os gestos que combinam a representação do espaço e o espaço da representação” (87).
Os corpos, segundo Tschumi, não apenas se movem no interior dos espaços, mas produzem espaços por meio e através de seus movimentos. Movimentos, segundo ele, “são a intromissão dos eventos nos espaços arquitetônicos” (88). No limite,
“estes eventos se transformam em cenários ou programas, esvaziados de implicações morais ou funcionais, independentes, porém inseparáveis dos espaços que os encerram” (89).
Assim, segundo Tschumi, emerge uma “nova formulação da velha trilogia”, que, se de certo modo se sobrepõe aos termos originais, os amplia em outras direções. Distinções podem ser estabelecidas entre espaços mentais, físicos e sociais ou, dito de outra forma, “entre a linguagem a matéria e o corpo” (90).
“É certo que estas distinções são esquemáticas e, embora correspondam a categorias de análise reais e convenientes (o “concebido”, o “percebido”, o “vivencido”), levam a diferentes modos de notação arquitetônica” (91).
Deste modo, conceito, percepção e vivência corpórea, a partir de um corpo fenomenologicamente entendido como sujeito, fundamentam as categorias esquemáticas e, portanto, de certo modo estruturais, com as quais pode trabalhar a análise disjuntiva do problema arquitetônico e urbano.
A arquitetura, segundo Tschumi, se parece a uma grande cidade contemporânea, onde não predomina nenhum sistema sobre outros mas, ao contrário, onde “as tensões inerentes e as diferenças levam a alternativas e, as vezes, a novos modos de ação” (92). Para Derrida, o fato de que esta intervenção na arquitetura, como uma construção que também é uma des-construção, represente “o fracasso ou a limitação imposta sobre uma linguagem universal para impedir um plano de dominação política e linguística do mundo” (93) nos informa sobre a impossibilidade da existência de uma “tradução universal” (94).
“Nos informa também que a construção da arquitetura sempre permanecerá labiríntica. Não se trata de renunciar a um ponto de vista em favor de outro, que seria único e absoluto, mas de encarar a diversidade de pontos de vista” (95).
As investigações de Tschumi sugerem que os “conflitos, confrontações e contaminações entre conceito, contexto e conteúdo” (96) são parte da definição contemporânea desta cultura urbana marcada pela inevitável confrontação das diferenças proposta por Derrida e, portanto, segundo ele, da arquitetura. Deste modo, na perspectiva metodológica desconstrucionista, a arquitetura é uma prática conceitual, o que é o mesmo que dizer uma filosofia prática.
“A teoria é uma prática, a prática dos conceitos. A prática é uma teoria. A teoria dos conceitos” (97).
Pensada deste modo, a arquitetura penetra em um universo particular, semelhante àquele no qual se instalou a arte conceitual, a partir dos readymades de Marcel Duchamp. O artista Sol LeWitt definiu tal forma de arte como aquela onde
“(...) a ideia ou conceito é o aspecto mais importante da obra. Significa que todo o planejamento e decisões são tomadas antecipadamente, sendo a execução um assunto secundário” (98).
Nestes termos, a negação da utilidade ou da necessidade, como condição da arquitetura, adquirem seu sentido mais essencial na obra de Tschumi. Do mesmo modo o divorcio entre a arquitetura e a mera construção, à qual a utilidade e a necessidade são destinadas como causa.
No entanto, as cidades continuam a ser construídas. A necessidade e a utilidade continuam a ser o móvel essencial desta construção. Não estará, a arquitetura, ao apartar-se destas causas, capitulando de seu direito já ancestral de fazer da cidade uma obra de arte, como sugere o título da célebre obra de Giulio Carlo Argan, A história da arte como história da cidade? Simplesmente, não estará, a arquitetura, capitulando de seu direito de participar da construção da cidade ali onde esta construção encontra as suas causas?
De fato, não é possível negar que a arquitetura, assim como a arte de um modo geral, encontram acolhimento na vontade social na exata medida em que são capazes de estabelecer comunicação com aquilo que, em que pesem todas as diferenças, pode-se chamar de senso comum. Este, de fato, varia quando a sociedade é atravessada, tanto horizontal quanto verticalmente. Mas uma arquitetura que encontra suas razões na desconstrução das razões sobre as quais o mínimo senso comum pode se fundar não pode deixar de admitir o risco do isolamento social, ao qual costumam ser relegados os fatos culturais marcados pelo hermetismo.
Não se pode negar o cansaço do modernismo reduzido a estilo que sucedeu as diferentes formas pelas quais a produção arquitetônica do final do século passado repudiou o modernismo. Mas parece importante questionar se o hermetismo conceitual é a fonte da juventude que a arquitetura atualmente anseia encontrar.
notas
1
“The Pleasure of Architecture” foi publicado originalmente em Architectural Design 47, n. 3, 1977, p. 214-218. Aqui está citado a partir da tradução em português constante em: NESBIT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965 – 1995). São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 573 - 584.
2
Idem, p. 573.
3
Idem, p. 578.
4
Idem, p. 578.
5
Idem.
6
Idem.
7
Idem, p. 579.
8
Idem, p. 578.
9
Apud: CHOAY, Françoise. A Regra e o Modelo. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1985, p. 78.
10
Idem, ps. 89 e 90.
11
Idem, ps. 103 e 104.
12
De doctrina christiana, cap. XXII
13
De Trinitate libri,cap. XI.
14
De doctrina christiana, cap. XXII.
15
De doctrina christiana, cap. IV; De Trinitate libri, caps. X, XI.
16
CHOAY, Françoise. A Regra e o Modelo. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1985, p. 78.
17
ALBERTI, Leon Batista. De re ædificatoria. Florença, Policiano, 1485, Livro V, cap. I apud: CHOAY, Françoise. A Regra e o Modelo. São Paulo, Ed. Perspectiva, 1985, p. 89-90.
18
CHOAY, Françoise. Op. cit., p. 89-90.
19
Confissões. VIII, v, 10.
20
TSCHUMI, Bernard. “O Prazer na Arquitetura”, In: NESBIT, Kate (org.). Uma nova agenda para a arquitetura: antologia teórica (1965 – 1995). São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 579.
21
Idem.
22
Idem.
23
Idem, p. 575.
24
O Mal-Estar na Civilização (Das Unbehagen in der Kultur, Internationaler Psychoanalytischer. Verlag, 1930).
25
RAMOS, Samuel. Prefácio da edição citada, p.7.
26
HEIDEGGER, Martin. “El Origen de la Obra de Arte”, In: Arte y Poesia. Tradução e prólogo de Samuel Ramos. 2ª edição. México, FCE, 1973, p. 39-40.
27
Idem, p. 52.
28
Idem, p. 53.
29
HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica. In: Ensaios e conferências. Petrópolis, Ed. Vozes, 2001, p. 2.
30
Idem, p. 17.
31
HEIDEGGER, Martin. “El Origen de la Obra de Arte”, In: Arte y Poesia. Op. cit., p. 53.
32
Idem, p. 59.
33
Idem, p. 60.
34
Idem, ps. 60-61.
35
Idem.
36
Idem.
37
Idem, p. 62.
38
Idem, p. 63.
39
Idem, p. 70-71.
40
Idem, p. 71-72.
41
Idem, p. 90.
42
NESBIT, Kate (org.). Op. cit., p. 184.
43
TSCHUMI, Bernard. “Six concepts”, In: Architecture and Disjunction. Cambridge, MIT Press, 1994, p. 87. Apud: NESBIT, Kate. Op. cit., p. 184.
44
Idem.
45
DERRIDA, Jacques. “Uma arquitetura onde o desejo pode morar. Entrevista de Jacques Derrida a Eva Meyer”, In: NESBIT, Kate. Op. cit., p. 164.
46
Idem.
47
Idem.
48
Idem.
49
Idem, p. 169.
50
Idem.
51
Idem.
52
PADOVANO, Bruno Roberto. “Bernard Tschumi”. Entrevista, São Paulo, 02.008, Vitruvius, out 2001 <http://www.vitruvius.com.br/revistas/read/entrevista/02.008/3344>.
53
TSCHUMI, Bernard. “Architecture and Limits 1”, Artforum 19, n. 4, dez, 1980, p. 36. Apud: NESBIT, Kate. Op. cit., p. 175.
54
Idem, p. 174.
55
TSCHUMI, Bernard. “Introdução: notas para uma teoria da disjunção arquitetônica”, In: NESBIT, Kate. Op. cit., p. 189.
56
Idem.
57
Idem, p. 189-190.
58
Esta ideia, segundo Nesbit, é tomada de empréstimo de Roland Barthes e Julia Kristeva, que concebem intertextualidade como “uma teia ou rede de relações entre os componentes de um signo, ou entre uma obra individual e as obras que a precedem ou a cercam, e das quais depende o seu significado” (p. 183-184).
59
NESBIT, Kate. “Apresentação de Arquitetura e Limites III de Tschumi”. Op. cit., p. 183.
60
TSCHUMI Bernard. “Introdução: notas para uma teoria da disjunção arquitetônica” In: NESBIT, Kate. Op. cit., p. 190-191.
61
Idem, p. 191.
62
Idem.
63
Idem.
64
“Concepto, Contexto, Contenido”, Arquine, Revista Internacional de Arquitectura y Deseño, vol. 34, p. 76-89.
65
Na impossibilidade, neste contexto conceitual, de adotar o conceito “obra arquitetônica”.
66
Idem, p. 78.
67
Idem.
68
Idem.
69
Idem.
70
Idem, p. 78-79.
71
Idem, p. 79.
72
Idem.
73
NESBIT, Kate. Op. cit., p. 165.
74
DERRIDA, Jacques. Op. cit., p. 168.
75
TSCHUMI, Bernard. “Concepto, Contexto, Contenido”, Op. cit. p. 79.
76
Idem, p 79-80.
77
Idem
78
Idem.
79
Idem.
80
Idem, p. 80-81.
81
TSCHUMI, Bernard. “Arquitetura e Limites III”, In: NESBIT, Kate. Op. cit, p. 186.
82
TSCHUMI, Bernard. “Arquitetura e Limites II”, In: NESBIT, Kate. Op. cit., p. 180.
83
Idem.
84
Idem.
85
Idem, p. 180-181.
86
Idem.
87
Idem.
88
Idem.
89
Idem.
90
Idem, p. 181.
91
Idem.
92
TSCHUMI, Bernard. “Concepto, Contexto, Contenido”. Op. cit., p. 87.
93
DERRIDA, Jacques. Op. cit., p. 170.
94
Idem.
95
Idem.
96
TSCHUMI, Bernard. “Concepto, Contexto, Contenido”. Op. cit., p. 87.
97
Idem.
98
OSBORNE, Peter. Conceptual Art. Phaidon, 2002, p.22.
sobre o autor
Luiz Felipe da Cunha e Silva é Mestre em Ciências pela ENSP-Fiocruz, Doutor em Psicologia pela PUC-Rio, Doutor em Urbanismo pelo ProUrb FAU-UFRJ e Prof. Adj. DPA/FAU-UFRJ