Destino singular o desta casa. É um repositório de lições.
1ª lição – “Museu do Ouro”, imagina-se logo um palácio resplandecente; nada disto, é uma simples casa brasileira do melhor teor, casa mineira, – harmoniosa e pacífica.
Possuo, desde 1926, um pequeno jarro italiano de barro com desenhos azuis sobre fundo branco e uma inscrição a que Leleta, minha mulher, tinha particular apego; diz assim: “Nella vita c’è un tesoro, più gradito assai del’oro, voi saper che cosa sia? È la pace e l’armonia.”
2ª lição – “As aparências enganam”. A casa, tal como a fotografia original o documenta, estava em precário estado quando foi inscrita nos livros de tombo, mas a lei obriga ao responsável cuidar pela preservação da coisa tombada; o poder público só intervém quando se comprova carência de meios para o fazer. Dinheiro, não faltava. O proprietário, porém, não se dispôs a empregá-lo por entender, erroneamente, que as limitações impostas o impediriam de transformar a casa numa residência condigna. E como não a pudesse demolir, resolveu então desfazer-se dela: “Se acham que vale, então fiquem com ela”.
É que o simpático e experimentado luxemburguês não sabia que o zelo, a honradez e a proficiência de D. Pedro II no trato da coisa pública estavam encarnados na pessoa do servidor público n° 1 do Brasil, o diretor do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Rodrigo Mello Franco de Andrade. O aspecto de contido apuro adquirido pela casa o surpreendeu, mas, apesar do logro, sentiu-se honrado e feliz por ter contribuído com a doação. Perdeu o indivíduo, ganhou a coletividade.
3ª lição – Há muita gente saudável e atuante, mas idosa de nascença, que descrê, por princípio, da coisa pública, e só vê mérito no que é fruto de iniciativa privada ou da generosidade que lhe resulte das sobras. Mocidade, não acredite – é mentira. A discrepância em detrimento do serviço público ocorre quando a atividade privada é exercida cumulativamente, ou quando as tarefas não são regularmente atribuídas a quem de direito e, no devido tempo, cobradas.
Recebida a casa por doação, como velho traste, foi desde logo tratada com desvelo pelo servidor público responsável que, dispondo embora de verbas reduzidíssimas, foi, “na moita”, tomando as suas providências. Convocou primeiro o dedicado engenheiro de minas Epaminondas de Macedo que, a serviço da antiga Inspetoria de Monumentos, se improvisara técnico restaurador, para a execução da obra; confiou os estudos visando à elaboração do projeto de restauro aos arquitetos da repartição, José de Souza Reis e Renato de Azevedo Soeiro; houve tentativas e hesitações; houve o equívoco, logo corrigido, de uma improvisada varanda; houve interferência negativa da lua no corte intempestivo de paus roliços e de taquara; houve refações. Mas os bons espíritos intervieram igualmente: houve até mesmo um balaústre da janela caprichosamente torneado que se conservou escondido, num desvão, quando todos os demais já haviam desertado, apenas para servir de testemunho e modelo na correta restauração. Passou então o responsável pela coisa pública a aproveitar pequenas sobras de verbas na aquisição pechinchada de peças na própria fonte, antes que as senhoras as requisitassem para as respectivas mansões; e, como não há regra sem exceção, “Tio Guilherme” (Guilherme Guinle) doou as belíssimas cadeiras de sola lavrada da Câmara de Sabará, indevidamente em seu poder. Recorreu ele depois aos conhecimentos especializados de Miran Latiff e ao engenho de Eduardo Tecles para a confecção de maquetes e dedicou-se a cultivar a amizade dos oficiais capazes e a desculpar-lhes os caprichos para que perseverassem apesar dos atrasos no pagamento, confiando, por fim, a direção do museu e o prosseguimento da tarefa a esse civilizadíssimo Antonio Joaquim de Almeida, que se tornou, com o tempo, o dono da casa. Casa que a iniciativa privada desprezara como imprestável e que o serviço público, trabalhando, recuperou.
4ª lição – Não basta plantar, é preciso saber plantar e há que zelar e persistir, então sim, a coisa dá. O que refulge nesta casa não é o ouro e sim a dedicação, a proficiência, o apurado bom gosto dos responsáveis pela coisa pública, que souberam transformar a ruína doada na joia que é este museu. Joia de família.
A Rodrigo Mello Franco de Andrade e a Antonio Joaquim de Almeida, a nossa gratidão.
nota
NE 1 - A republicação deste artigo está sendo feita por sugestão de Maria Elisa Costa em homenagem aos 75 anos de criação do Sphan. Fonte: COSTA, Lucio. Lucio Costa – registro de uma vivência. São Paulo, Empresa das Artes, 1995, p. 472-384.
NE 2 – Sob coordenação editorial de Abilio Guerra (editor Arquitextos), número traz dez artigos sobre o tema “Patrimônio histórico”, tendo como inspiração artigo de Clara de Andrade sobre vida e obra de seu pai, o intelectual Rodrigo Melo Franco de Andrade, falecido no dia 11 de maio de 1969. Os artigos do número especial sobre patrimônio histórico são os seguintes:
ALVIM, Clara de Andrade. Rodrigo Melo Franco de Andrade, meu pai. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.00, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4526>.
SANTOS, Cecília Rodrigues dos. A noção de patrimônio e a origem das ideias e das práticas da preservação no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.01, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4528>.
COSTA, Lucio. Museu do Ouro. Sabará. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.02, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4532>.
ANDRADE (JANJÃO), Antonio Luiz Dias de. O discurso do sofá. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.03, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4534>.
TORELLY, Luiz Philippe. Patrimônio cultural. Notas sobre a evolução do conceito. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.04, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4539>.
CALIL, Carlos Augusto. Sob o signo do Aleijadinho. Blaise Cendrars, precursor do patrimônio histórico. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.05, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4540>.
GUIMARAENS, Cêça. Rodrigo Melo Franco de Andrade e a paisagem hiperreal do patrimônio. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.06, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4543>.
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Brasília-patrimônio. Cidade e arquitetura moderna encarando o presente. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.07, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4547>.
ALCÂNTARA, Antonio Pedro de. Aspectos do espaço barroco na arquitetura civil dos séculos XIX e XX. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.08, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4550>.
PROZOROVICH, Fernando Alvarez. El patrimonio histórico como punto de vista. Notas sobre la asignatura “Intervención en el patrimonio histórico”. Arquitextos, São Paulo, año 13, n. 149.09, Vitruvius, oct. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4537>.
sobre o autor
Lucio Costa (1902–1998), arquiteto e urbanista brasileiro formado em 1924 na Escola Nacional de Belas Artes no Rio de Janeiro. Autor do projeto urbano de Brasília e de obras como o Museu das Missões, o Park Hotel Friburgo, o Pavilhão do Brasil na Feira Mundial de Nova York, associado a Oscar Niemeyer, entre outros. Foi chefe da equipe responsável pela criação do Ministério da Educação e Saúde. Autor do livro Lucio Costa – registro de uma vivência.