“Entende-se que as loucuras da Cidade fazem parte da razão do Estado”
Jules Ferry, 1868 (1)
Este artigo tem como objetivo abordar algumas questões relativas à preservação e ao patrimônio moderno que Brasília encerra, considerando a forma urbana e suas arquiteturas. Pensar em Brasília é pensar na cidade que se definiu como imagem, como lugar e como símbolo através da arquitetura. As fotografias da construção, as filmagens dos canteiros de obras, as memórias dos candangos, o ritmo frenético da construção, a inauguração mítica, os palácios cristalinos e o imenso horizonte do cerrado, tudo isso se amalgama e funde uma percepção complexa do que a cidade-capital representa hoje através de sua arquitetura. Tudo isso e mais as transformações políticas, sociais, econômicas e culturais que esta capital vivenciou em seus 50 anos constituem uma etapa de um longo processo histórico que se vislumbra para uma cidade-capital. Em 2012 se comemoram os 25 anos da inscrição de Brasília na Lista do Patrimônio Mundial, assim como se comemoram os 20 anos da Portaria Federal nº.314/1992, que regulamenta o seu tombamento, definindo um enorme território que se estende da Estrada Parque Indústria e Abastecimento – EPIA, até as margens do Lago Paranoá.
O tombamento singular de Brasília se estrutura através da definição e da lógica das quatro escalas enunciadas na Portaria Federal: escala monumental, escala gregária, escala residencial e escala bucólica. A missão latente de transmitir, trans-geracionalmente, a potência simbólica de Brasília está representada em sua escala monumental, com seus palácios, sedes governamentais e espaços cívicos. A geometria do Plano Piloto e sua inserção na geografia do território, a intensa arborização e a estreita relação com o Lago Paranoá, demarcam a escala bucólica. Ao mesmo tempo, a escala residencial, com superquadras e outras áreas residenciais; e a escala gregária, com as atividades de serviços e comércio, devem assegurar o funcionamento cotidiano e a dinâmica da própria cidade. Com tais categorias este tombamento também instaura novos parâmetros para pensar a conservação e a preservação de arquitetura e do urbanismo moderno.
É preciso avaliar as questões e as demandas contemporâneas que incidem hoje e que continuamente irão incidir sobre este bem cultural, que é uma cidade. Isso demanda uma visão não conservadora sobre a dinâmica de seu funcionamento. Se for adotada uma postura conservadora, corre-se o risco de comprometer a análise dos valores do bem cultural, ao restringir as potencialidades de seu funcionamento pleno como fato urbano, podendo até mesmo diminuir o vigor de sua modernidade arquitetônica original. Brasília não pode ser pensada apenas pelos instrumentos convencionais de preservação relativos a outras cidades históricas. Embora seja a Capital Federal, Brasília também apresenta características inerentes à dinâmica das cidades brasileiras, com ciclos históricos de abandono dos espaços e transformação das atividades humanas implantadas em seu território, que são decorrentes das próprias transformações econômicas, sociais, culturais e tecnológicas ocorridas nos últimos 50 anos. Em razão disto, sua preservação demanda uma visão mais abrangente que incluí a escala do planejamento urbano, extrapolando a dimensão da área tombada, considerando as áreas urbanizadas contíguas ao Plano Piloto, considerando ainda a dinâmica regional inerente a uma capital. Ou seja, o planejamento urbano do Distrito Federal tem implicações na preservação do Plano Piloto (2).
A arquitetura monumental de Brasília está concentrada ao longo do Eixo Monumental e define uma porção da estrutura urbana do Plano Piloto dedicada às atividades de caráter representativo do Governo Federal. Neste espaço urbano encontra-se a produção arquitetônica mais notória e reconhecida, justamente por tratarem de edifícios com grande carga simbólica de representação dos poderes, cujas imagens são amplamente difundidas pelos meios de comunicação: Congresso Nacional, palácio do Planalto, Supremo Tribunal Federal, além da perspectiva da Esplanada dos Ministérios. Mas além disso, uma capital demanda edifícios para as muitas outras atividades de representação: autarquias, embaixadas, sedes bancárias, sedes de empresas públicas, órgãos e instituições, nacionais e estrangeiras. Trata-se de outro conjunto de arquiteturas que são importantes para o funcionamento da cidade, mas que não possuem o mesmo nível de carga simbólica de caráter monumental. Desde o seu momento inaugural, Brasília presencia a instalação de uma vasta gama de edifícios que atualmente conformam um conjunto heterogêneo de arquiteturas que complementam o sentido de capitalidade que Brasília deve enunciar, organizar e atualizar.
Em razão das demandas crescentes e da dinâmica imobiliária do Plano Piloto de Brasília, este conjunto de arquiteturas vem sendo constantemente transformado, sendo freqüentemente substituída por novos edifícios, transformando a cidade com novas arquiteturas, mas também alterando sua paisagem. A concepção dos setores centrais do Plano Piloto – setor comercial, setor hoteleiro, setor de autarquias, setor bancário, setor de diversões... – possui a expectativa de maior adensamento, maiores alturas e maior variedade formal para construir um skyline futuro, mutante e imprevisível. A concepção dos setores centrais antevê no acúmulo, na massa construída e no jogo volumétrico de seus edifícios, o contraponto adequado para a escala monumental de representação exclusiva do poder federal concentrado no Eixo Monumental. Oportunamente, este contrapondo justificaria a definição de uma escala gregária que se contrapõe, adequadamente, à escala monumental.
O âmbito da arquitetura residencial do Plano Piloto de Brasília corresponde, ao que se denomina “escala residencial”, que em larga medida se caracterizada pelas superquadras, embora existam outros setores residenciais situados em outras áreas de Brasília – Cruzeiro, Octogonal, Vila Planalto, Sudoeste e, mais recentemente, o Noroeste. Contudo, perante as especificidades dos modos de vida modernos, as arquiteturas das superquadras são preponderantes. A organização do esquema do Plano Piloto previa que as duas alas residenciais – as Asas Norte e Sul – viessem estabelecer um ajuste adequado em sua escala urbana com a dimensão física e simbólica do Eixo Monumental. As superquadras do foram concebidas para manter a hierarquia necessária, sem romper o arranjo urbanístico grandioso da estrutura urbana implantada sobre o território. Na argumentação do próprio Lucio Costa trata-se de uma estratégia de distinção em que “o monumental e o doméstico entrosam-se num todo harmônico e integrado”. Ademais, as arquiteturas das escalas residencial e gregária, devem assegurar o bom funcionamento cotidiano e a dinâmica da cidade, fomentando a animação urbana que esta cidade requer, com crianças no colégio, sorveteiro, missa, padaria, supermercado, sapataria, cafezinho, garçons, universitários, engraxates, taxistas...
Entretanto, às críticas das premissas modernistas da concepção de Brasília parece ter escapado um fato singular: uma vez que toda a cidade foi inventada de uma só vez – in totum – toda a cidade também envelhecerá de uma só vez! Antevendo isso, Lucio Costa sagazmente enunciou que Brasília não ficaria velha, mas sim, antiga. Hoje, a arquitetura modernista de Brasília se encontra inserida num processo complexo que implica nas transformações dos padrões de consumo, dos hábitos sociais, das rotinas do trabalho e do próprio viver na cidade e seus espaços, utilizando seus espaços. Aqui a utopia foi construída e o moderno, se não se tornou eterno (como coisa tombada!), envelhece, abrindo a possibilidade de ser substituído por novas arquiteturas (3). Tal fato instiga pensar sobre a preservação das muitas arquiteturas modernas e sobre a conservação de Brasília no momento atual.
Estava em curso um Plano de Preservação do Conjunto Urbanístico de Brasília – PPCUB, com a missão hercúlea de definir parâmetros urbanísticos relativos à área tombada, com vistas a sua preservação. O PPCUB se apresenta como decorrência dos dispositivos legais definidos pela Portaria nº 299/2004-Iphan, a fim de integrar a preservação de cidades históricas com o planejamento urbano e territorial. No caso de Brasília, trata-se de uma oportunidade para qualificar os termos do debate sobre a preservação, inserindo a cidade num debate com uma perspectiva urbana mais complexa e integrada com todo o Distrito Federal. O tombamento de Brasília é um fato. Formal e oficialmente, deve ser recobrado que o tombamento tem que ser tomado com um fator inerente a qualquer reflexão urbana, para planejar o território do Plano Piloto e do Distrito Federal. O tombamento de Brasília não pode ser tomado como uma mera questão contra a qual, ou apesar da qual, ou a despeito da qual, se pretende planejar, projetar ou refletir.
Cidade é uma coisa vivaz, um fato humano mutante e que representa tensões sociais e históricas, sendo também um lugar resultante da diversidade. No caso de Brasília, uma capital que detém uma singular perspectiva temporal, mas que precocemente foi incluída na Lista do Patrimônio Mundial, para pautar a reflexão deve ser importante ter como referencial os critérios apontados pela Unesco: trata-se de uma obra única e de exemplar marcante conjunto arquitetônico e urbanístico. Portanto, diante do patente valor de conjunto e não se deve pensar num “fazer cidade”, digamos, ad hoc, com projetos arquitetônicos e com projetos urbanísticos pontuais, desarticulados, com obras e alterações viárias sem conexões sistêmicas, com intervenções sem correlações com um projeto de planejamento urbano consistente, ou com um planejamento de escala regional efetivo. De todos os debates ocorridos nos últimos anos sob o mote das comemorações do cinquentenário de inauguração da cidade, emerge a certeza de que sua preservação está intrinsecamente vinculada com o planejamento urbano e regional, corroborando uma questão já legitimada desde a Carta de Washington, em 1986. Assim, por exemplo, é preciso reconhecer o valor estruturador da Estrada Parque Indústria e Abastecimento – EPIA, suas áreas adjacentes, bem como e as áreas de proteção ou interesse ambiental que delimitam a área tombada, para vislumbrar o Plano Piloto num território ocupado mais amplo e dinâmico, e repensar sua inserção numa escala regional.
Neste sentido, Marco Aurélio Andrade de Filgueiras Gomes recobra que “preservação” e “urbanismo” são “práticas” que nasceram simultaneamente no século XIX, com aproximações e afastamentos decorrentes de processos históricos. Embora as áreas históricas correspondam a uma pequena fração da área urbanizada do mundo, neste século XXI que é um “século urbano”, elas continuarão sendo importantes referências na formação nacional e na identidade cultural, integrando a memória e recobrando valores sociais e históricos. É necessário repensar sobre o que tombar ou não, considerando que nem sempre é possível manter os usos originais dos edifícios tombados. E mesmo quando se mantém o mesmo uso, existem transformações na maneira de usar, nas demandas que incidem sobre o edifício para que ele possa manter suas mesmas funções.
No caso de Brasília, os edifícios monumentais possuem usos incontestáveis, entretanto, o número e a importância dos anexos precise ser repensado – inclusive simbolicamente – uma vez que a administração Federal tem a perspectiva constante de se expandir como novas sedes, novos serviços: em que setor, onde? Para fora do Plano Piloto? Questões como estas também valem para pensar no grosso da área construída da área tombada que está nas superquadras. Com exceção da “Unidade de vizinhança” (4), atualmente há uma equivalência na proteção de todas as demais superquadras do Plano Piloto, sem distinção de suas qualidades arquitetônicas e urbanísticas. Tal fato demanda uma atenção especial, merecendo ser mais estudado, pois há superquadras e blocos com arquiteturas excepcionais que poderiam ter níveis de proteção maiores, enquanto que muitas outras superquadras, ou blocos, não possuem atributos singulares, podendo vir a ser substituída por novos edifícios. Disto se depreende que é preciso operar com outra “tabela” de diferenciação dos níveis de preservação dos edifícios dentro da área tombada, pois nem todas as arquiteturas precisam ou devem ser mantidas, embora o gabarito, os pilotis e a projeção devam permanecer como fatores-chaves para a preservação da escala residencial do conjunto urbanístico, conforme assinala a Portaria.
Diante das transformações atuais dos modos de vida e das estruturas familiares, novos perfis de moradores podem vir a habitar as superquadras, revigorando os usos dos edifícios através de reformas das projeções hoje existentes. Na medida em que certos padrões de consumo e/ou de qualidade de vida estimulam famílias a residirem em condomínios e casas isoladas em grandes lotes, os apartamentos das superquadras podem se converter em unidades menores, adensando o Plano Piloto, animando a vida urbana, as atividades de comércio e serviços. Tal reflexão precisa se estender também para as quadras 700. O Memorando de Viena vem de encontro a estas preocupações, atento às necessárias transformações do espaço urbano com a inclusão de arquitetura contemporânea em tecidos históricos.
A Carta de Washington também aponta para o impacto negativo da circulação de veículos sobre um centro histórico, devendo haver um planejamento dos meios de transportes para equacionar os deslocamentos por este território e suas conexões com as áreas urbanas contíguas, sem comprometer a forma urbana do centro histórico. O traçado viário do Plano Piloto estrutura sua forma urbana e o rodoviarismo é uma de suas características marcantes. Diante disso, o fluxo e o transporte de massa no Plano Piloto poderia estar muito bem articulada com outras modalidades de transportes, incluindo metrô, micro-ônibus, etc, considerando uma infraestrutura de terminais e fluxos que considerasse até mesmo o transporte aquático no Lago Paranoá. O crescimento vertiginoso da frota de veículos que circula no Plano Piloto vem sendo sistematicamente divulgado nos meios de comunicação, o que deveria demandar reflexões e ações mais consistentes para reverter um caos eminente, já experimentado por outras cidades brasileiras. Recentemente, se noticia que o plano de transportes foi aprovado. Desconheço o projeto, e não posso afirmar que tipo de impactos haverá na área urbana tombada ou nos edifícios tombados. Independentemente da Copa do Mundo ou de qualquer evento, o fato é que, hoje, apesar do traçado viário generoso, Brasília carece de um sistema de transportes públicos condizente com uma capital!
Em virtude das extensas áreas verdes do Plano Piloto de Brasília, outra questão candente que urge pensar, é diferenciar “áreas verdes” de “áreas não ocupadas”, resguarda por uma criteriosa análise dos usos dos espaços públicos para diferenciar, também, o que é “uso” de área pública do que é “ocupação” e/ou “invasão” de área pública. Mais do que precisar os termos, esta revisão pode detectar espaços ociosos e diferenciar área verde de área não ocupada para qualificar os espaços de convívio na cidade – com mobiliário urbano – e não para meramente, alimentar a sanha do mercado imobiliário sob tais pretextos. Dentre as áreas públicas de amplo interesse coletivo e gregário, é preciso reavaliar a orla do Lago Paranoá e planejar a implantação de infraestrutura de lazer e convívio para fomentar o uso coletivo, público e popular, como o deck próximo a Ponte do Braghetto recentemente logrou. Somente campanhas e ações de educação patrimonial sistemáticas poderão esclarecer as questões acima, bem como melhorar a qualidade do debate junto ao grande público, diferenciando o que é “agressão”, “infração” e “irregularidade” das regras e das normas urbanísticas em relação à área tombada, como se tudo isso fosse equivalente.
A questão da setorização do Plano Piloto de Brasília confunde-se, em parte ainda hoje, com a falta de um desenho urbano mais consequente para cada um dos setores urbanos e de suas atuais condições de utilização, incluindo a falta de integração entre eles. A despeito dos ajustes necessários entre o arranjo urbanístico macro do Plano Piloto, com o desenho urbano de cada setor, hoje é preciso reverter a situação de descaso com o espaço público e resolver com um projeto de desenho urbano mais cuidadoso e atento a acessibilidade do cidadão, com passeios, calçadas, bancos, iluminação, bicicletário, ciclovia, luz, paisagismo, arranjos topográficos, etc, que proporcionem o pleno uso do espaço urbano e que seja condizente para favorecer uma vida urbana contemporânea. Neste sentido, uma observação mais atenta facilmente revela que até mesmo a Esplanada dos Ministérios padece de conservação de seus espaços públicos e de seu paisagismo, com falta de infraestrutura e qualidades espaciais e falta de mobiliário urbano.
Para que uma reflexão sobre a preservação da cidade e de sua arquitetura possa se valer de base documental, também é preciso investir na conservação de arquivos, de documentação e no material gráfico referentes aos projetos arquitetônicos, garantindo o acesso a tais informações para outras gerações. Informações preciosas dos projetos arquitetônicos, das ações de implantação da cidade e das atividades de planejamento da Novacap estão no Arquivo Público do Distrito Federal. Esta documentação valiosa demanda um edifício adequado técnica e simbolicamente para guardar seu acervo, uma vez que a documentação é considerada como parte do valor patrimonial de um bem. Some-se a isto a necessidade de pensar nas questões técnicas da conservação dos materiais construtivos das arquiteturas de Brasília, especialmente o concreto armado, as ferragens das esquadrias metálicas e os materiais industrializados largamente empregados, tais como perfis e chapas metálicas, cerâmicas de piso e de revestimento, vidros, carpetes, além do mobiliário e das obras de artes integradas. Recentemente este rol se amplia ao considerar as arquiteturas em madeira (caso do Catetinho) e a taipa das casas de fazenda remanescentes no território do Distrito Federal.
Diante de tudo isso, no contexto de uma cidade tombada e com um patrimônio arquitetônico singular, entendo que é preciso equacionar a tensão entre o que efetivamente se transforma e em detrimento do que supostamente se perde. Uma abordagem lúcida e crítica sobre a dinâmica urbana e sobre a preservação de Brasília vêm sendo construída fragmentariamente, através de teses, artigos e debates acadêmicos, tornando-se imprescindível para balizar e para referenciar as reflexões sobre os destinos da cidade (5). Ao mesmo tempo, neste processo de abordagem crítica, entendo que é preciso ter a coragem de reconhecer o valor histórico e simbólico da Portaria nº 314/1992-Iphan, mas também repensar e efetuar uma abordagem criteriosa sobre suas limitações e sobre seu alcance como instrumento efetivo de preservação do Plano Piloto de Brasília – ora articulada com a Portaria nº 68/2012-Iphan, recém editada, e que define o entorno da coisa tombada.
Nesta perspectiva crítica, entendo que é preciso, ainda, investigar as tensões entre o ideário geral da cidade e o projeto urbano consolidado, a fim de debater alternativas e possibilidades novas. Hoje é possível reconhecer o quanto as arquiteturas de Brasília contêm de experimentação, assim como também é possível reconhecer o quanto a arquitetura de Niemeyer em Brasília contém de experimentação. Para desdobrar o debate sobre arquitetura hoje, é preciso fazer a retomada crítica dos nexos das experiências arquitetônicas em Brasília, suas estratégias e procedimentos. Tais nexos são estratégicos para reinventar as relações com a história, podendo referenciar a ação projetual e a gestão do espaço urbano.
O projeto é o campo de ação específico do arquiteto-urbanista, sendo sempre a instância primordial de reflexão para responder satisfatoriamente às complexas demandas atuais. O projeto é o meio através do qual arquitetos-urbanistas podem dar uma resposta acertada e competente, demarcando o domínio de suas funções e demonstrando a necessidade de seus conhecimentos e contribuir para equacionar o funcionamento da sociedade contemporânea. Tafuri considera o projeto como o desígnio máximo, a tarefa ideal, ou ainda, como uma missão, enfatizando a exclusividade da arquitetura de interferir nas realidades do mundo e estabelecer possibilidades para novas práticas sociais, novos valores culturais e novas dinâmicas urbanas, uma vez que: “inserir na realidade um fragmento de utopia é privilégio da arquitetura” (6).
Assim, novas categorias para atuar, ver, analisar e para pensar sobre Brasília e suas arquiteturas devem recobrar os problemas de trabalhar a forma e fazer da forma o fator expressivo do arquitetar; reiterar o valor relacional do espaço; explorar as permeabilidades dentro/fora, cidade/edifício; evocar o valor da varanda como um ambiente de estar e convívio; valorizar a questão da paisagem, o significado do sítio e as condições geográficas; fortalecer o controle da luz, a importância da sombra, o sentido de abrigo; apontar para o valor da materialidade como expressão construtiva do edifício; demandar atenção com as tecnologias construtivas, mas também recobrar os domínios do concreto armado – seja ele revestido com mármores, seja aparente, seja pintado de branco! Por toda esta fortuna crítica, as perspectivas do processo histórico de Brasília possibilitam pensar em novas arquiteturas. Novas arquiteturas que saibam conviver com a modernidade inaugural de Brasília, mas que consigam realizar, hoje, aquilo que no processo histórico de consolidação desta cidade talvez não tenha sido possível fazer com maior atenção ao projeto. Afinal, entre a macro-escala e entre a micro-escala, ou seja, entre a escala do planejamento regional e a escala do edifício inscrito num lote; e entre a “escala monumental” e a “escala residencial” há um “meio de campo”, há um imenso lugar para a reflexão e para uma prática de projeto, que é ao mesmo tempo feita na escala do edifício e atenta ao desenho da cidade. Ou seja, pensar uma arquitetura que faz urbanismo.
Diante disso tudo, Brasília permanece instigando o desafio de projetar, de preservar e de inventar. Assim, a retomada crítica dos nexos de suas experiências poderá ser útil para pautar uma reflexão no panorama de nossa contemporaneidade, revelando outros nexos. Toda esta fortuna crítica deve ser instaurada mediante a dinâmica de nosso próprio campo epistemológico, pois ao mesmo tempo em que o debate internacional já lança olhares críticos ao pós-modernismo, nós ainda temos muito a fazer com as experiências e com os resultados de nossa própria modernidade.
A epígrafe deste artigo, proferida no contexto das transformações urbanas de Haussmann em Paris, afirma que “as loucuras da Cidade fazem parte da razão do Estado”. Longe de aceitar atavicamente os termos da epígrafe, deve-se questionar se, de fato e em que graus, no caso de Brasília, “as loucuras da Cidade fazem parte da razão do Estado”? Isso pode servir tanto para repensar o Estado como para recuperar a sanidade da cidade. As razões do Estado devem atender as expectativas e demandas efetivas de seus cidadãos, reformulando-se, equilibradamente, em ações de gestão pautadas pela probidade, distanciando-se de toda sorte de desvarios e gestos rompantes para, efetivamente, pensar, planejar, fazer e manter a cidade.
Brasília é artificial e permanece como uma incógnita. Como já foi afirmada outras vezes, a constante de Brasília é ser a cidade-capital do Brasil e, ao mesmo tempo, recobrar um momento de conquista de valores, que consolidou ideais coletivos de perseverança, bem como de autonomia do campo cultural e da produção arquitetônica brasileira. A reflexão atual sobre Brasília-patrimônio, deve, paradoxalmente, operar com a manutenção da força espacial e simbólica original do Plano Piloto e considerar a dinâmica da cidade e do Distrito Federal, incluir novas arquiteturas, bem como refletir sobre os destinos e usos da multiplicidade arquitetônica que configura a cidade. As perspectivas da reflexão sobre seu presente devem manter a cidade como símbolo permanente da modernidade e da autonomia que guiaram sua criação, para além dos primeiros cinquenta anos de uma cidade sonhada nos anos 50, a ser plenamente vivida no século XXI, desdobrando-se já no presente, para além de seu futuro original.
notas
NA - Versão revista do artigo homônimo apresentado no 2º Enanparq (Natal), em setembro de 2012.
NE – Sob coordenação editorial de Abilio Guerra (editor Arquitextos), número traz dez artigos sobre o tema “Patrimônio histórico”, tendo como inspiração artigo de Clara de Andrade sobre vida e obra de seu pai, o intelectual Rodrigo Melo Franco de Andrade, falecido no dia 11 de maio de 1969. Os artigos do número especial sobre patrimônio histórico são os seguintes:
ALVIM, Clara de Andrade. Rodrigo Melo Franco de Andrade, meu pai. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.00, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4526>.
SANTOS, Cecília Rodrigues dos. A noção de patrimônio e a origem das ideias e das práticas da preservação no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.01, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4528>.
COSTA, Lucio. Museu do Ouro. Sabará. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.02, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4532>.
ANDRADE (JANJÃO), Antonio Luiz Dias de. O discurso do sofá. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.03, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4534>.
TORELLY, Luiz Philippe. Patrimônio cultural. Notas sobre a evolução do conceito. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.04, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4539>.
CALIL, Carlos Augusto. Sob o signo do Aleijadinho. Blaise Cendrars, precursor do patrimônio histórico. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.05, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4540>.
GUIMARAENS, Cêça. Rodrigo Melo Franco de Andrade e a paisagem hiperreal do patrimônio. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.06, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4543>.
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Brasília-patrimônio. Cidade e arquitetura moderna encarando o presente. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.07, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4547>.
ALCÂNTARA, Antonio Pedro de. Aspectos do espaço barroco na arquitetura civil dos séculos XIX e XX. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.08, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4550>.
PROZOROVICH, Fernando Alvarez. El patrimonio histórico como punto de vista. Notas sobre la asignatura “Intervención en el patrimonio histórico”. Arquitextos, São Paulo, año 13, n. 149.09, Vitruvius, oct. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4537>.
1
Comptes Fantastiques d`Haussmann. Apud BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Ed. UFMG/São Paulo: Impressa Oficial do Estado de São Paulo, 2007, p. 170.
2
Este fato ecoa os postulados da Carta de Washington, de 1986.
3
Em 2011 houve a implosão de 2 edifícios modernistas no Setor Hoteleiro Sul, para construção de 2 novos hotéis.
4
Esta “Unidade de vizinhança” é formada pelas superquadras 107, 108, 307 e 308.
5
Destaca-se a atuação do conjunto de pesquisadores e/ou professores vinculados à FAU-UnB e que gravitam entorno de Sylvia Ficher e Andrey Rosenthal Schlee, tomando Brasília como uma temática absolutamente atualizada e necessária para reflexão de todo o campo da arquitetura e do urbanismo.
6
TAFURI. Teorias e história da arquitectura, p. 242.
referências bibliográficas
ARGAN, Giulio Carlo. Projeto e destino. São Paulo, Ática, 2002.
BANDARIN, Francesco; VAN OERS, Ron. The historic urban landscape. Managing heritage in an urban century. Londres, Wiley-Blackwell, 2012.
Brasília/Marcel Gautherot. São Paulo, Instituto Moreira Salles, 2010.
Brasília 1960-2010: Modern Movement Universal Ideal. In Docomomo Journal, Barcelona, n. 43, 2010.
ALMEIDA, Luiz Fernando de; ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Brasília além dos 50 anos. in O CREA-DF no tempo de Brasília. Brasília, 2011.
CATALDO, Beth; RAMOS, Graça (Org.). Brasília aos 50 anos. Que cidade é essa? Brasília, Tema Editorial, 2010.
COSTA, Lucio. Registro de uma vivência. Rio de Janeiro, Empresa das Artes, 1995.
CURY, Isabelle (Org.). Cartas patrimoniais. Rio de Janeiro, Iphan, 2004.
El-Dahdah, Farès (Org.). Lucio Costa – arquiteto. Anais do Seminário. Rio de Janeiro, Sholna, 2011.
FERREIRA, Marcilio Mendes; GOROVITZ, Matheus. A invenção da superquadra: o conceito de Unidade de Vizinhança em Brasília. Brasília, Iphan-DF, 2007.
FICHER, Sylvia & SCHLEE, Andrey Rosenthal. Guia de obras de Oscar Niemeyer. Brasília 50 anos. Brasília, IAB-DF/Câmara dos Deputados, 2010.
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo, Martins Fontes, 1997.
GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras e CORREA, Elyane Lins. Reconceituações contemporâneas do patrimônio. Salvador, EDUFBA, 2012.
KIM, Lina & WESELY, Michel. Arquivo Brasília. São Paulo, Cosac Naify, 2010.
LEITÃO, Francisco (Org.). Brasília 1960-2010: passado, presente e futuro. Brasília, Secretaria de Estado de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente (SEDUMA), 2009.
MACEDO, Danilo Matoso; GOMES DA SILVA, Elcio et al. (Org.). Brasília: roteiro de arquitetura, caderno de notas. Brasília, FAU-UnB, 2011.
Plano Piloto 50 anos: cartilha de preservação – Brasília. Brasília, Iphan-DF, 2007.
TAFURI, Manfredo. Teorias e história da arquitectura. Lisboa, Editorial Presença, 1988.
Vienna Memorandum. in BANDARIN, Francesco e VAN OERS, Ron. The historical urban landscape. Managing heritage in an urban century. Londres, Wiley-Blackwell, 2012. p. 203-208.
sobre o autor
Eduardo Pierrotti Rossetti, 37, é arquiteto e urbanista (FAU PUC-Campinas, 1999); atualmente é professor e pesquisador do Curso de Arquitetura e Urbanismo do UniCEUB (Brasília) e credenciado junto ao PPGAU-FAU-UnB, onde desenvolveu pesquisas de Pós-Doutorado (2008-2010). Trabalhou como técnico na Superintendência do Iphan no Distrito Federal (2009-2011) e integrou o Corpo Docente da Escola da Cidade (São Paulo, 2005-2008).