“O conceito de cultura está intimamente ligado às expressões da autenticidade, da integridade e da liberdade. Ela é uma manifestação coletiva que reúne heranças do passado, modos de ser do presente e aspirações, isto é, o delineamento do futuro desejado” (1).
Milton Santos
Neste ano de 2012, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, autarquia vinculada ao Ministério da Cultura, celebra 75 anos de sua criação. Uma das mais longevas instituições públicas brasileiras e a primeira dedicada à preservação do patrimônio cultural na América Latina, o Iphan tem uma trajetória que se confunde com a formação cultural do Brasil. Seu trabalho – compartilhado por uma sociedade complexa e em veloz transformação – além de preservar, salvaguardar e acautelar bens e manifestações culturais da nossa gente, é aquilo que não percebemos, ou melhor, que sentimos como inato: colaborar para a constituição das diferentes identidades que compõem a diversidade cultural do País, do nosso sentido de nação, do que é ser brasileiro.
Ao longo das próximas páginas iremos refletir sobre alguns aspectos da missão institucional do Iphan, seus antecedentes, sua gênese, sua ação discricionária e subjetiva, própria das instituições voltadas para a preservação, e principalmente sobre a evolução e a abrangência do conceito de patrimônio cultural.
Vivemos um momento em que concepções que datam dos anos 1970, idealizadas por Aloísio Magalhães, como as noções de referência e bem cultural, e que têm suas origens nas formulações de Mário de Andrade, começam a se concretizar, uma vez que o conceito de excepcionalidade é questionado por instituir uma visão unidimensional, privilegiando a herança cultural das elites e das classes dirigentes e subalternizando as demais manifestações e os legados. Igualmente, a abordagem estanque do que denominamos patrimônio material e imaterial vem sendo substituída por visões integradoras, como a chancela da Paisagem Cultural como faces de um mesmo processo.
Enfrentamos hoje, como outros já o fizeram no passado, o desafio da politização. Seja no âmbito da cidadania – no sentido de ampliar a participação social e de assegurar voz e oportunidade de manifestação e ação a grupos marginalizados pela impossibilidade de acesso aos meios institucionais e midiáticos, ou por não partilharem da conceituação cultural dominante – seja no sentido de democratização de política pública, integrada às demais políticas reivindicadas pela sociedade, e não mais por ações isoladas ou desconectadas do tecido econômico e social. O economista e ministro da Cultura Celso Furtado sempre destacou em sua obra o papel relevante da política cultural, por sua importância na percepção dos fins e na mudança das mentalidades: “A política cultural consiste em um conjunto de medidas cujo objetivo central é contribuir para que o desenvolvimento assegure a progressiva realização das potencialidades dos membros da coletividade” (2).
Alguns antecedentes
O conceito de patrimônio cultural, da forma como hoje o conhecemos, surge na aurora da Revolução Industrial, ao final do século XVIII, no bojo da Revolução Francesa, instituidora de uma nova ordem política, jurídica, social e econômica, que consolida o conceito de nação e de nacionalidade e reconhece os direitos fundamentais do homem. O mundo de então tinha um bilhão de habitantes – contra os sete bilhões atuais – e as mudanças na sociedade e no habitat, natural e construído, ainda se processavam lentamente para os padrões contemporâneos, porém com intensidade suficiente para promover um processo de industrialização e urbanização crescentes, modificando profundamente meios de produção, instituições seculares, ideologias, sociedades, costumes e fronteiras, sejam políticas ou do conhecimento. “Tudo o que é sólido desmancha no ar” (3).
As nações da Europa Ocidental e da América do Norte (Estados Unidos) demandavam um conjunto de valores que as unificasse e que permitisse um reconhecimento mútuo de seus cidadãos, em relação a uma simbologia comum. Os monumentos, as grandes expressões da arquitetura religiosa, civil e militar, os espaços públicos de intenso convívio social, a música, os documentos e os livros, assim como as obras de arte de feição erudita, formam a memória coletiva de então, capaz de assegurar à unidade política a identidade nacional necessária.
Assim como Portugal, onde o iluminismo e a enciclopédia tiveram sua influência reduzida em relação aos demais países europeus, o Brasil, por sua condição de país colonizado e periférico, esteve à margem desse processo, embora vivenciasse um outro bem peculiar, como veremos adiante: uma considerável autonomia cultural sem correspondência na independência econômica e política. Esta chega em 1822, mas mantém o regime monárquico, e em seu comando a Casa Real de Bragança, assegurando a continuidade da estrutura agrária apoiada no latifúndio, na escravatura e na monocultura, ligada aos interesses ultramarinos. A Proclamação da República, em 1889, embora tenha significado a instauração de uma nova ordem política, pouco alterou o quadro estrutural do País.
A partir dos anos 20, com o início da industrialização e do crescimento das cidades, acelera-se a dinâmica social e econômica. Novos atores participam do cenário político: uma classe média crescente, o surgimento de uma nova elite vinculada à indústria e ao comércio, uma classe operária que se organiza em sindicatos e partidos classistas. O Brasil, a exemplo de outros países, adentra tardiamente no século XX com a Primeira Guerra Mundial, conforme registra o historiador Eric Hobsbawm, em seu livro A era dos extremos (4).
A Semana de Arte Moderna de 1922 traz à cena cultural brasileira novos valores estéticos identificados com as vanguardas europeias. Valores esses que, em nosso ambiente, onde passado e presente coexistem com grande proximidade, demonstram-se paradoxais e contraditórios: ao mesmo tempo, crítico das instituições e pregando a ruptura com o passado acadêmico, mas identificado com ideias liberais e conservadoras. O Manifesto antropófago de Oswald de Andrade, de 1928, propõe-se a deglutir as formas importadas para produzir uma arte e cultura genuinamente nacionais. O resgate de um Brasil de feição mestiça e desgarrado dos padrões europeus de então, mais indígena, mais africano, mais caboclo e caipira, inicia uma nova síntese cultural que procura abarcar as múltiplas faces da brasilidade. Trata-se de reinventar o País, a partir da valorização de um passado até então desprezado.
O movimento modernista rapidamente se hegemoniza no cenário cultural e político brasileiro. Artes plásticas, literatura, poesia, música, escultura, arquitetura, urbanismo, sociologia, história. Em pouco mais de uma década os cânones foram definitivamente substituídos. Uma nova concepção de cultura e do imaginário nacional, que inicia a incorporação das manifestações populares, surge em um contexto social onde as mazelas centenárias permanecem, mas a modernização é crescente. São as famosas “ideias fora de lugar” (5), para as quais, Roberto Schwarz nos chama a atenção em seu clássico ensaio homônimo. As mudanças sociais, econômicas e políticas, ensejadas pela Revolução de 1930, exigirão uma nova organização do Estado brasileiro, onde a valorização da nacionalidade é essencial para a estruturação de um projeto de país e para a afirmação do regime.
Uma conjunção histórica ímpar une ao governo autoritário de Getúlio Vargas o que se pode chamar, sem exageros, de uma plêiade de intelectuais, cujas obras permanecem referenciais na atualidade: Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Sérgio Buarque de Holanda, Gilberto Freire, Carlos Drummond de Andrade, Rodrigo Mello Franco de Andrade, Lucio Costa, Heitor Villa-Lobos, Cândido Portinari e outros tantos de grande importância.
As décadas de 20 e 30 do século passado foram pródigas em realizações e marcos em vários campos do conhecimento. Na história e na sociologia surgem livros ainda hoje centrais na cultura brasileira, como Casa Grande e Senzala, de Gilberto Freire, e Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. Manuel Bandeira, Carlos Drummond e Mário de Andrade, autor de Pauliceia Desvairada (1922) e de Macunaíma (1928), já o são, nos anos 1930, poetas e literatos modernos bastante consagrados, sendo este último, artista e pensador de múltiplas facetas, um dos principais mentores da Semana de 22. Na literatura, Graça Aranha, Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado promovem uma revolução temática e estilística que irá pautar as letras brasileiras por décadas.
Lúcio Costa, nas palavras de Lauro Cavalcanti, “como estudioso do passado e idealizador de novas formas” (6), é o formulador do modernismo na arquitetura e no urbanismo e constitui-se, com Rodrigo Mello Franco de Andrade e Mário de Andrade, no principal pilar de estruturação do Iphan e, consequentemente, de legitimação de um projeto de construção da nacionalidade e da identidade brasileiras. Além das ideias, o elo comum que os une é a figura carismática do ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, a um só tempo conservador, prócer do regime varguista e mecenas das artes e das letras.
As missivas trocadas entre Mário de Andrade e Gustavo Capanema são documentos reveladores da relação de proximidade entre os intelectuais e o regime de Vargas (7). Em um mundo onde o totalitarismo era presente sob vários matizes, à esquerda e à direita, a racionalidade e os modelos reducionistas dele decorrentes pareciam capazes de moldar a realidade. O cenário que assistíamos no Brasil, certamente, guardava muitos pontos em comum com esse contexto. O conceito de que tradição e modernidade podem caminhar juntas é um deles. Uma modernidade que, embora ousada em suas formulações estéticas e formais, convive com uma estrutura socioeconômica anacrônica.
Gênese – a fase heroica
Desde a segunda década do século XX, uma série de iniciativas de intelectuais foi despertando sensibilidades e gerando acúmulo para a criação de uma instituição nacional de preservação do patrimônio cultural. Minas Gerais era uma espécie de “Meca” para a redescoberta do Brasil. Além dos já citados, são personagens fundamentais: Alceu de Amoroso Lima e o francês Blaise Cendrars, redator dos estatutos da Sociedade dos Amigos dos Monumentos Históricos do Brasil – proposta de instituição que contava com o apoio da aristocracia do café – e também Oswald de Andrade, que sugeriu a criação do Departamento de Organização e Defesa do Patrimônio Artístico do Brasil – Dodepab, ao Presidente da República Washington Luiz, em 1926 (8). Na esfera pública, a criação das Inspetorias Estaduais de Monumentos nos estados da Bahia, de Minas Gerais e Pernambuco, ainda nos anos 20, assim como a elevação de Ouro Preto à condição de Monumento Nacional, em 1933, e a criação da Inspetoria de Monumentos Nacionais, em 1934, estabeleceram antecedentes indispensáveis à consolidação da ideia.
O inovador e visionário projeto de Mário de Andrade para a criação do então Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan (9), por encomenda do ministro da Educação e Saúde Gustavo Capanema, constituiu-se em referência central para a elaboração do Decreto-Lei nº 25, de 1937, que estabeleceu o conceito de patrimônio cultural e criou o instrumento do tombamento. Conceitos como o de arte ameríndia e popular, bastante abrangentes, incluindo o que hoje denominamos de saberes, fazeres e falares, bem como o de paisagem cultural – sem ainda receber esta denominação –, estão nele presentes, o que lhe confere impressionante contemporaneidade após tantos anos. As sementes lançadas irão germinar ao longo das últimas oito décadas, antecipando em vários aspectos – especialmente na dimensão imaterial – as iniciativas e convenções da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura – Unesco, referência internacional na preservação do patrimônio cultural, criada em 1946.
O Decreto-Lei nº 25 caracteriza-se principalmente por sua concisão e objetividade. Sua aplicação ao longo de 75 anos, sem modificações em um período de profundas transformações sociais, econômicas e políticas, é o principal testemunho de suas qualidades. Incorpora os principais conceitos do projeto de Mário de Andrade, como os de arte arqueológica, etnográfica, ameríndia e popular, ao mesmo tempo que introduz o possível tombamento das paisagens naturais e a noção de valor excepcional. Sua ênfase principal é na definição e na regulamentação da aplicação do instituto do tombamento, medida inovadora e acertada em uma sociedade cuja elite sempre foi pouco afeita a restrições ao direito pleno de propriedade, em prejuízo de sua função social.
As circunstâncias históricas e políticas que caracterizaram no Brasil a concepção de preservação do patrimônio especialmente no Iphan, além da ausência de outros instrumentos que não o tombamento, determinaram que as ações de proteção se concentrassem quase que exclusivamente até os anos 1990, na identificação e na proteção de monumentos, edifícios e conjuntos urbanos de relevante interesse histórico e artístico, na denominada “pedra e cal”. Os bens móveis – que desde o Brasil-Colônia, com a criação do Museu Nacional, em 1818, já recebiam certa atenção governamental – foram, antes mesmo da criação do Iphan, valorizados pela criação de museus, como o do Ipiranga, em 1909, pelo Governo do Estado de São Paulo e o Histórico Nacional, em 1922.
Essa política se amplia em escala, após 1937, e se soma ao esforço de reconhecimento internacional, por intermédio da divulgação de livros e textos de escritores estrangeiros, como o francês German Bazin, o inglês John Bury e o austríaco Stefan Zweig – autores, respectivamente, de Arquitetura religiosa barroca no Brasil, Arquitetura e arte no Brasil Colonial (10), e Brasil, país do futuro. Esse período, acertadamente denominado de “fase heroica” (11), coincide com os 30 anos (1937/1967) que Rodrigo Mello Franco de Andrade dirigiu a Instituição, a ponto de simbolizar o patrimônio no Brasil, e a tornou uma das mais importantes do mundo.
A hegemonia modernista promove uma notável revisão de paradigmas e de ressignificação da herança cultural brasileira. Nessa dialética tradição/modernidade, é fundamental lembrar que as artes em geral e a arquitetura em particular, foram e continuam sendo, entre outras coisas, eficazes instrumentos de irradiação de ideias e conceitos. O resgate do barroco estilo dominante nos séculos XVII e XVIII, especialmente o mineiro, até então relegado por ser considerado excessivo e trágico em sua visão de mundo e metáfora da vida celestial, valoriza aos olhos do País e do mundo um legado que, embora de origem ibérica, revela a contribuição singular de arquitetos, artistas, mestres e músicos – cuja maioria, ao largo de uma formação acadêmica regular, em condições muito peculiares, produziu um conjunto de realizações de grande beleza e apuro técnico. Antônio Francisco Lisboa, “o Aleijadinho”, mestres Ataíde e Valentim, o compositor José Joaquim Emerico Lobo de Mesquita, entre muitos outros, foram reconhecidos por autores como Affonso Ávila, Lucio Costa e Lourival Gomes Machado, representantes legítimos da originalidade da produção artística aqui desenvolvida, em contraste com uma cultura repetitiva dos padrões europeus, que até então eram a referência de um país que iniciava sua urbanização e procurava no academicismo a sua feição civilizatória.
A fase heroica liderada por Rodrigo Mello Franco de Andrade, embora prestigiada politicamente e tendo o concurso de profissionais altamente qualificados e engajados na tarefa de preservar e conservar o acervo colonial/barroco brasileiro, foi condicionada por um processo estrutural, cujas forças eram poderosas e velozes: a urbanização. O caso brasileiro, em condições de subdesenvolvimento e dependência, foi dos mais rápidos e intensos em termos de deslocamentos demográficos em escala mundial. Em cinco décadas o País se transformou, tornando-se essencialmente urbano pela migração de dezenas de milhões de pessoas do meio rural para as cidades – e entre as regiões geográficas, especialmente, do Nordeste para o Sudeste.
Tal fenômeno promoveu e ainda promove, com menor intensidade, profundas alterações na sociedade e no território, marcado por disparidades interpessoais e interregionais, grandes concentrações metropolitanas, segregação socioespacial e degradação ambiental. Apesar das centenas de tombamentos, desde pequenas capelas a conjuntos urbanos e cidades inteiras, e de terem sido protegidas centenas de milhares de bens móveis de grande valor histórico e artístico, muito se perdeu. Como a urbanização até os anos 60 se concentra nas grandes cidades da região Sudeste, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, a assimetria desenvolvimentista interregional acaba por ajudar a preservar, em um primeiro momento, conjuntos urbanos, em especial na região Nordeste, em cidades como Salvador, Cachoeira, São Cristóvão, Recife e Olinda, entre outras.
Foram importantes para a evolução da abrangência do conceito de patrimônio cultural, nesse período, a descaracterização e a perda de qualidade dos espaços públicos, bem como o reconhecimento de aspectos psicossociais ligados à memória urbana, não relacionados especificamente a critérios históricos ou de excepcionalidade, mas a referências espaciais e vivências afetivas reconhecidas como o “espírito do lugar”. Essa sensibilidade expandida iria promover uma revisão de critérios que, durante a “fase heroica”, impediram um olhar mais generoso sobre a produção cultural – arquitetônica em particular – do último quartel do século XIX e início do XX, embora deva-se reconhecer, tardiamente.
Principalmente São Paulo, mas também o Rio de Janeiro, perderam testemunhos relevantes de sua memória citadina. Da São Paulo colonial e pré-industrial, muito pouco se salvou. O Rio de Janeiro, pela extensão de seu patrimônio e pelo fato de ter sido capital do País por quase 200 anos, teve menos perdas. A Avenida Paulista, em São Paulo, e a atual Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, cuja abertura data de 1905, são exemplos desse processo. Ceifados pela especulação imobiliária, sobreviveram raros exemplares dos edifícios ecléticos que compunham as duas importantes artérias, a primeira de caráter residencial e a segunda, eminentemente comercial.
Como já havia ocorrido com o barroco em relação ao neoclássico, durante muito tempo sinônimo de extravagante e por tanto relegado, o ecletismo foi desprezado por suas vinculações com os estilos históricos e por seu descompasso com os rumos de uma nova ordem econômica e cultural, caracterizada pela industrialização e pela urbanização, em um momento onde ocorria uma ruptura com o passado que ele simbolizava.
O fim da fase heroica coincide com o término da longa e profícua gestão de Rodrigo Mello Franco de Andrade e com uma retomada gradual do projeto inicial de Mário de Andrade. O Iphan era uma instituição consolidada e de grande autonomia administrativa, com notável autoridade e reconhecimento público em seu campo de atuação, em decorrência do êxito de suas políticas e de suas realizações voltadas para a preservação do patrimônio cultural (12). Todavia, a dinâmica da sociedade brasileira nos anos 1970 era bem mais complexa, e havia a percepção, já fundada, de que o patrimônio cultural ia além da pedra e cal e da herança lusa; e que demandava novas formulações e instrumentos, capazes de abranger a diversidade cultural do País, especialmente as manifestações das culturas ameríndia e africana, fortemente presentes no cotidiano e no imaginário nacional e que, até então, não obtinham um reconhecimento proporcional à sua importância.
Novos paradigmas do conceito de patrimônio cultural
Por paradoxal que pareça, a preservação do patrimônio cultural vive, durante os anos 1970, em plena ditadura militar, um ciclo de renovação e de ampliação conceitual que seriam determinantes no papel do Iphan até a atualidade. Duas novas instituições são criadas para atuar de forma complementar no contexto da estrutura governamental responsável pela política de preservação. Em 1973, surge o Programa Integrado de Reconstrução das Cidades Históricas – PCH, que articula ações de quatro ministérios – Educação e Cultura, Planejamento, Interior e Indústria e Comércio –, com o objetivo de coordenar a política do governo federal para fomentar o potencial econômico e turístico das cidades históricas e incluí-las no processo de crescimento econômico, então em curso, denominado “milagre brasileiro”.
O PCH ampliou a capacidade administrativa e financeira do Iphan, com resultados positivos quanto à proteção dos conjuntos urbanos beneficiados e à melhoria da qualidade da infraestrutura e da gestão pública dos estados e das cidades participantes do Programa. Criado em 1975, o Centro Nacional de Referência Cultural – CNRC promove uma revisão das noções de preservação e patrimônio e agrega novos conceitos, como os de referência e bem cultural.
A ideia de referência cultural admite que diferentes visões possam coexistir acerca de um bem, e que os valores e as práticas sociais a ele atribuídos o tornem uma representação coletiva reconhecida por um grupo ou mais, pelo sentido de identidade que desperta, transformando-o em um bem cultural. São conceitos capazes de reconhecer significados e de promover a salvaguarda e o acautelamento de uma variedade de manifestações que não encontravam respaldo nos instrumentos de gestão, então vigentes, como o tombamento. Simultaneamente, em um momento onde havia a supressão de liberdades individuais e um clima de autoritarismo que permeava toda a sociedade, a participação popular era estimulada, como estratégia de compartilhar e produzir conhecimento. A crítica ao imperialismo, seja no campo econômico seja no cultural, foi utilizada como uma espécie de estratagema para introduzir questões até então relegadas, como a valorização do saber e do fazer populares.
Em 1979, Iphan, PCH e CNRC são unificados e passam a constituir a Fundação Nacional Pró-Memória – FNpM, subordinada a um órgão normativo também criado na mesma ocasião, a Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Sphan, ambas vinculadas ao Ministério da Educação e Cultura – MEC (13). Esta iniciativa, além dos aspectos inerentes à racionalização administrativa e econômico-financeira, foi realizada com a expectativa de que as diferentes visões conceituais de Iphan e CNRC, auxiliados pela capacidade financeira e técnica do PCH, fossem capazes de fazer frente aos desafios de implementar uma política de preservação do patrimônio cultural, ampliada em sua dimensão temporal e territorial, e que além de se integrar à vida econômica e social do País e às demais políticas públicas, estivesse menos apegada às noções tradicionais de excepcionalidade e arte e história.
A exemplo da fase heroica, cuja referência inconteste é Rodrigo Mello Franco de Andrade, a fase denominada moderna tem na figura criativa e inquieta de Aloísio Magalhães o seu grande pensador, formulador e gestor. Em um período sombrio, ele conseguiu articular ideias e mobilizar pessoas e instituições, como poucos o fizeram no País e, com uma percepção clara da dialética da história, tornar passado e presente contemporâneos. O conceito de patrimônio cultural se expressa como um dos caminhos do desenvolvimento sustentável (14) – conforme hoje entendido –, em oposição a uma compreensão, até então vigente, de que eram processos com muitos pontos de conflito.
Em concepção muito próxima ao pensamento de Celso Furtado, que identifica a dimensão cultural como superveniente ao processo de desenvolvimento, Aloísio Magalhães aposta na criatividade para romper com o estabelecido. O seu desaparecimento prematuro ocorre em um momento no qual olhares distintos sobre o patrimônio cultural estavam coexistindo e interagindo. A adoção de conceito antropológico de cultura e de referência cultural, bem como a ampliação dos objetos de especulação criativa, oriundos das ideias e formulações do CNRC, permitiram a valorização e a releitura dos saberes e dos fazeres tradicionais, como o artesanato, a cerâmica e a tecelagem, mediante o conhecimento e o fomento das cadeias produtivas.
Essa nova postura tinha como objetivo conferir às manifestações culturais um caráter dinâmico, processual e transformador. As formulações do CNRC e de Aloísio Magalhães resgataram propostas do projeto de Mário de Andrade, até então latentes e esparsamente desenvolvidas, e apontavam para novos, mais amplos e diversos rumos. O Brasil caminhava para a redemocratização, e a sociedade ansiava por maior participação.
A Assembleia Nacional Constituinte de 1988 mobilizou a sociedade brasileira. Foram tempos de intensos debates e reflexões sobre nossa trajetória como país e nação e sobre o futuro que queríamos construir, livre dos resquícios do autoritarismo. Os artigos 215 e 216, que tratam da cultura no âmbito constitucional, promoveram importante atualização conceitual, especialmente no que diz respeito ao reconhecimento da dimensão imaterial do patrimônio cultural; de explicitar a proteção às manifestações populares, indígenas e afro-brasileiras, incorporando o conceito de representatividade; e de estabelecer, no texto legal, instrumentos de proteção e salvaguarda já em uso, como o inventário, o tombamento e a desapropriação, e de criar novos, como o registro. Afora os aspectos mencionados, os conceitos encerrados nos artigos 215 e 216 já estavam presentes, tanto no projeto de Mário de Andrade quanto no Decreto-Lei nº 25, evidenciando a qualidade e a atualidade de ambos, capazes de se manterem contemporâneos em meio a diferentes quadros político-institucionais e em uma cena cultural bem mais diversa e complexa à da época de sua concepção.
A euforia advinda da democratização consagrada no novo texto constitucional não durou muito. O governo do presidente Fernando Collor, primeiro a ser eleito democraticamente após a ditadura militar, promove o desmonte da área cultural no governo federal. A Fundação Nacional Pró-Memória é extinta em 1990 e para substituí-la é criado o Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural – IBPC, no bojo de uma política de minimização do papel do Estado. Os importantes avanços institucionais e conceituais obtidos nos anos 1970 e 1980 foram comprometidos com a “reforma administrativa” patrocinada pelo governo, que teve forte impacto sobre a área cultural, com extinção e reorganização de instituições, cortes orçamentários e demissões em massa.
O resultado foi o desmantelamento da ação governamental no segmento, o que se faria sentir ao longo de toda uma década, com a paralisia e o retardo da máquina pública, mentora e principal agente técnico e financeiro das políticas preservacionistas. Por exemplo, o registro de bens culturais de natureza imaterial, conquista importante da Constituição de 1988, só foi regulamentado doze anos depois, em agosto de 2000, pelo Decreto-Lei nº 3.551, e o primeiro bem imaterial a ser registrado como patrimônio nacional, o “Ofício das Paneleiras de Goiabeiras”, no estado do Espírito Santo, em 2002, quatorze anos depois. Felizmente, nos últimos anos houve grande esforço de proteção e salvaguarda dos bens de natureza imaterial, com elevada participação da sociedade civil e dos governos locais. Atualmente são 25, representativos das mais diversas manifestações culturais do povo brasileiro.
Os desafios da atualidade
Nosso tempo é de crescentes e velozes mudanças. Transformações que demoravam gerações ou décadas ocorrem em poucos meses ou dias. Graças às novas tecnologias e mídias, as informações e os conteúdos circulam instantaneamente. Cada vez mais a economia e a política se entrelaçam e se tornam globalizadas, onde fatos e decisões que nos afetam ocorrem a milhares de quilômetros. A cultura faz parte desse processo de globalização e tende a perder, como a economia, suas características nacionais, regionais e locais, se as manifestações autênticas e genuínas não forem protegidas e incentivadas.
A recente crise econômica dos países da zona do euro é um exemplo. Embora tenha seu epicentro na Europa, as repercussões se fazem sentir em todo o mundo e as medidas de proteção adotadas pelos países individualmente não são capazes de amenizar integralmente suas consequências. Como nos recorda Celso Furtado, a cultura é uma dimensão superveniente do desenvolvimento, quando está voltada para a percepção dos fins, dos objetivos que os indivíduos e a comunidade se propõem alcançar. É a sua dimensão política transformadora que está presente, mesmo em situações onde as condições de sobrevivência são escassas, mas que se potencializa onde há melhoria da qualidade de vida.
Sem combate à pobreza, à desigualdade, ao desemprego, sem acesso a saúde e educação de qualidade, sem garantia de liberdades políticas, étnicas, culturais e religiosas, sem respeito à preservação ambiental, não teremos desenvolvimento. A experiência recente do Brasil e de outros países já mostrou que pode haver crescimento econômico, sem que haja desenvolvimento. Pior, pode haver um agravamento da desigualdade e da concentração de renda, com aumento da pobreza e do desemprego.
Desde sua criação, o Iphan manteve-se em situação de quase isolamento dentro da estrutura governamental, usufruindo de grande autonomia, reconhecem autores como Maria Cecília Londres Fonseca (15) e Sergio Miceli. Tal situação é decorrente principalmente de sua missão institucional e do conceito de patrimônio cultural então vigente, onde as noções de excepcionalidade, arte e história eram predominantes e o esforço de preservação era voltado em sua maior parte para atender demandas de uma elite culta, preocupada principalmente com os monumentos civis e religiosos e com a arte erudita.
Durante muito tempo, esses símbolos é que interessavam ao conceito de nação que se construía. Não que houvesse uma negativa em valorizar, por exemplo, a arte ameríndia e popular, presentes tanto no projeto de Mário de Andrade como no Decreto-Lei nº 25 e na própria organização do Iphan. É que a gênese da instituição foi concebida tendo no barroco, e consequentemente na pedra e cal, sua principal referência. Naquele momento e nas décadas subsequentes, não haveria condições materiais, políticas e sociais para ir além do que era aceito como central no patrimônio cultural: sua dimensão material (16).
É muito ilustrativo desse processo o depoimento do antropólogo Gilberto Velho, à época membro do Conselho Consultivo do Iphan, sobre a polêmica que se estabeleceu por ocasião do tombamento pioneiro do Terreiro de Candomblé Casa Branca, em 1984, em Salvador, Bahia (17). Este acontecimento se constituiu em um marco na história da preservação do patrimônio cultural no Brasil. Primeiro, por aplicar o instrumento do tombamento a um bem não ligado à tradição luso-brasileira, cuja expressão material não se enquadrava nos critérios de excepcionalidade então vigentes; segundo, por reconhecer a importância do candomblé como manifestação cultural e religiosa de parcelas significativas da população, especialmente na cidade de Salvador.
Tema quase sempre reservado a especialistas, a preservação acaba por se circunscrever a um raio menor do que suas atribuições e competências legais. Se essa circunstância limita as ações da Instituição em sua articulação com as demais políticas públicas e a sociedade civil, gera em contrapartida, em muitos círculos de iniciados, um reconhecimento de sua especialidade e de sua experiência diretamente relacionadas à sua continuidade temporal, independente do viés político dos governos. O Iphan seguramente é a instituição pública federal que há mais tempo mantém os princípios de suas ações e o senso comum de que elas são relevantes, pois são calcadas em significativa experiência e em procedimentos técnicos meticulosos.
Podemos sem exageros afirmar que é uma instituição canônica, graças em especial à qualidade de seu projeto inicial e do brilhantismo intelectual de seus fundadores, alguns deles, gestores da mesma por longa data, como Rodrigo Mello Franco de Andrade e Lucio Costa. Feito esse registro inquestionável, é importante lembrar que o peso da tradição, embora aponte rumos mais conhecidos e, portanto, menos polêmicos, por vezes, inibe a procura de novas alternativas e possibilidades, indispensáveis para acompanhar uma realidade complexa em permanente transformação.
Se, durante muito tempo, o tombamento se constituiu como o principal e quase único instrumento de preservação do patrimônio cultural – embora o planejamento urbano e territorial já dispusesse de ferramentas para ser um importante aliado –, dispomos hoje de um número maior de possibilidades de intervenção. Desde 1988, com a nova Constituição Federal, obteve-se, além de um conceito de patrimônio mais abrangente, sem a tônica da excepcionalidade, a notável conquista do registro como instrumento de proteção e salvaguarda do patrimônio imaterial.
Com o reconhecimento da função social da propriedade “quando atende as exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor” (18), também, em 1988, abriu-se a possibilidade de aprovação da Lei nº 10.257/2001, conhecida como Estatuto da Cidade. Nela está presente um conjunto de importantes instrumentos urbanísticos, jurídicos e tributários capazes de colaborar na preservação do patrimônio cultural, junto ou isoladamente com o tombamento. Infelizmente sua utilização por parte dos municípios, a quem cabe a responsabilidade de elaboração dos planos diretores, tem ficado aquém do necessário.
O planejamento do uso do solo para atender à função social da propriedade, como é o caso da preservação do patrimônio cultural, não ocorre apenas por medidas restritivas, com controle do uso e intensidade de ocupação, a exemplo das áreas de proteção de interesse histórico, artístico, paisagístico e arqueológico. Pode ser realizado também por medidas compensatórias e de incentivo, que passam, por exemplo, pela transferência do direito de construir, pela desoneração fiscal, pelo financiamento incentivado e pela valorização dos imóveis e dos espaços públicos, na revitalização de áreas históricas degradadas. A qualificação para a gestão e o planejamento dos municípios como principais agentes da preservação é tarefa sempre atual e necessária, pois são frequentes as situações onde existem recursos financeiros disponíveis, mas falta capacidade de gestão.
Após anos de verdadeira penúria, onde o orçamento do Ministério da Cultura era voltado apenas para a manutenção da máquina e o atendimento de emergências, um incremento substancial de recursos na última década permitiu diversificação e maior volume de ações de preservação, embora ainda muito aquém do necessário. De 2002 a 2011, o orçamento do Iphan para investimentos finalísticos cresceu 474,26%, passando de R$ 19,443 milhões para R$ 92,211 milhões (valores nominais). As leis de incentivo a cultura, seja no plano federal (Lei nº 8313/2001) ou no estadual, já que muitos estados também as possuem, têm colaborado com um crescimento significativo, que se somam aos investimentos promovidos pelo Iphan.
Entre 2006 e 2011, apenas na Lei Rouanet, foram captados R$ 217,67 milhões para preservação do patrimônio cultural, excetuando-se os museus, o que significa uma média de R$ 36,28 milhões, por ano. Todavia, há uma distribuição territorial desigual dos mesmos, sendo os estados da região Sudeste, em especial Rio de Janeiro, Minas Gerais e São Paulo, os principais beneficiários, embora concentrem expressiva parcela do patrimônio cultural protegido. Os projetos de elevado valor, como por exemplo restauração do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, drenam parcela substancial dos recursos, concentrando-os, geograficamente.
Há bastante tempo, o Ministério da Cultura promove um debate público, com o objetivo de modificar a lei, para que uma parcela dos recursos possa ser destinada ao Fundo Nacional de Cultura, visando atender projetos de menor porte e viabilizar uma distribuição mais equânime entre entes federados. Infelizmente, essa necessária revisão tem enfrentado resistências, tanto no Congresso Nacional como dentro das próprias empresas, que se valem da renúncia fiscal como um dos seus instrumentos de marketing. Algumas empresas públicas, como a Petrobras, o BNDES, a Eletrobras e a Caixa – maiores investidores na área cultural, no País – têm se utilizado de editais para a seleção dos projetos. Este procedimento reduz a concentração, mas não a ponto de promover a justiça distributiva.
A experiência do programa Monumenta, do Iphan, voltado à preservação do patrimônio cultural em cidades e conjuntos históricos, evidenciou a necessária articulação da política de preservação às demais políticas públicas, pelos resultados positivos no contexto socioeconômico local dos investimentos em recuperação e conservação do patrimônio cultural, crescentes na última década, especialmente quando simultâneos ou complementares aos de outros programas setoriais de infraestrutura, educação, saúde e geração de emprego e renda. Além disso, os resultados foram importantes para constatar que as ações reforçavam a lógica do desenvolvimento sustentável, produto da relação contínua entre as comunidades e seu ambiente, com reflexos sensíveis sobre a qualidade de vida.
A utilização dos instrumentos citados que se uniram ao tombamento no esforço de preservação é essencial para que se possa imprimir uma ação sistêmica, ao invés de soluções isoladas, que não envolvam as comunidades direta e indiretamente beneficiadas. Igualmente importante foi o aumento substancial dos recursos financeiros nos últimos anos, o que tem permitido investimentos de maior complexidade, capazes de se integrarem às demais políticas públicas e de estabelecer um contexto favorável à implementação de uma concepção mais ampla e diversa de reconhecimento e proteção do patrimônio.
O conceito de patrimônio cultural hoje
Conforme já mencionado, o conceito de patrimônio cultural consagrado na Constituição Federal de 1988 representou grande avanço ao reconhecer a dimensão imaterial e, principalmente, por relativizar a noção de excepcionalidade – substituída em parte pela de representatividade, bem mais includente e capaz de destacar a importância das contribuições dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira. Essa mudança incorpora o conceito de referência cultural e significa uma ampliação inestimável dos bens passíveis de serem reconhecidos como patrimônio cultural brasileiro. É importante comentar as implicações que as novas possibilidades, afirmadas pela Constituição, podem permitir, passados 24 anos de sua promulgação.
Inicialmente, é necessário reconhecer que o conceito que o antecedia, expresso no Decreto-Lei nº 25, já previa de forma implícita as possibilidades depois expressas no texto constitucional. Não é à toa, como já destacado, que o Decreto e o Iphan celebram juntos 75 anos de idade. Na verdade, as dificuldades que impediram uma maior abrangência do patrimônio cultural vão além das questões políticas e ideológicas, embora estas estejam sempre presentes e fazem parte de um mal que atinge outras políticas públicas: a insuficiência de recursos financeiros e a reduzida capacidade de gestão, frente a um desafio que tem como parâmetro a diversidade cultural do País e suas dimensões continentais. Esse quadro é agravado pela velocidade desproporcional dos meios de difusão de valores dissociados das nossas manifestações e tradições culturais – sem que essa afirmativa se constitua em um preceito xenófobo – das quais, muitas mínguam e morrem sem que possam nem mesmo ser conhecidas, quanto mais salvaguardadas e protegidas, como é o caso de muitas nações indígenas.
Um segundo aspecto relevante diz respeito à delimitação do que vem a ser patrimônio cultural. Como nos lembra Roque de Barros Laraia, em Cultura: um conceito antropológico:
“Concluindo, cada sistema cultural está sempre em mudança. Entender esta dinâmica é importante para atenuar o choque entre gerações e evitar comportamentos preconceituosos. Da mesma forma que é fundamental para a humanidade a compreensão das diferenças entre povos de cultura diferentes, é necessário saber entender as diferenças que ocorrem dentro do mesmo sistema” (19).
Na medida em que a cultura é dinâmica e mutante, o conceito de patrimônio também o será. Difícil estabelecer fronteiras para o que é permanentemente concebido, criado, recriado, ampliado.Como o conceito de cultura, o de patrimônio é um conceito aberto, decorrente de longo processo acumulativo, independente de ser passível de construções ideológicas casuísticas – o que de forma alguma quer dizer que todo bem cultural deva ser patrimonializado ou protegido. O reconhecimento de um bem ou manifestação cultural por parte do Estado é feito com base em critérios, que, por mais objetivos e democráticos que sejam, sempre serão passiveis de subjetividade e discricionariedade.
O que hoje temos de distinto em relação à concepção original dos anos 20 e 30 do século passado é, na verdade, o esforço adaptativo para acompanhar a veloz dialética da história, o tempo todo a nos exigir mudanças. A abordagem territorial, a substituição gradativa do conceito de excepcionalidade pelo de representatividade, a transversalidade temática, o compromisso com a cidadania e com o desenvolvimento sustentável, na acepção que lhe foi conferida na recente Conferência da ONU Rio+20 (20), são necessidades inadiáveis frente a uma realidade em que os limites impostos pela capacidade de regeneração da natureza começam a ser superados e colocam em ameaça a sobrevivência da espécie humana. A chancela da Paisagem Cultural, estabelecida pela Portaria Iphan nº 127/2009 “como uma porção peculiar do território nacional, representativa do processo de interação do homem com o meio natural, à qual a vida e a ciência humana imprimiram marcas ou atribuíram valores” (21), é um instrumento em que encontramos muitas das possibilidades de promover a gestão pactuada do patrimônio em uma abordagem holística, sem lançar mão de taxionomias que, em muitos casos, facilitam a operacionalidade de proteção dos bens culturais mas, por outro, podem sedimentar visões parciais.
A exemplo do que já havia ocorrido com o reconhecimento de Brasília como Patrimônio Mundial, em 1987, pela Unesco – não por acaso, obra concebida por Lucio Costa, um dos idealizadores no Brasil, tanto do modernismo na arquitetura e no urbanismo, como do resgate de nossa herança barroca –, o Rio de Janeiro foi inscrito recentemente como Paisagem Cultural na lista do Patrimônio Mundial.
Nos dois casos, percebe-se a presença do inusitado, do novo, de formulações que ampliam os significados vigentes. Brasília, por ser uma das grandes realizações culturais do século XX, marco do urbanismo e da arquitetura modernista; e o Rio de Janeiro, por sua especial conjunção de cultura e natura, onde a aplicação do conceito de paisagem cultural, em vários recortes significativos de uma metrópole, que envolvem tanto a orla marítima (22) como parques urbanos, parques nacionais, serras e montanhas que conferem singularidade ao skyline carioca, representa uma nova postura em relação ao planejamento urbano e territorial.
A paisagem cultural, como instrumento de gestão, pode se configurar como uma estratégia para a promoção do desenvolvimento sustentável e, simultaneamente, como proteção do patrimônio cultural e natural. O êxito de sua aplicabilidade, a exemplo de outros mecanismos de planejamento, depende da participação das três instâncias de governo; de um conjunto de políticas governamentais articuladas; de um pacto entre a esfera pública, a sociedade e a iniciativa privada; e de coesão e participação social. Especialmente no caso do Rio de Janeiro, teremos uma situação complexa pela extensão da “zona tampão” (23), que abrange bairros densamente ocupados, como Lagoa, Humaitá, Botafogo, Copacabana, Flamengo, Catete e Glória, todos com elevada densidade demográfica e a presença de diferentes tipologias urbanas – inclusive de favelas com graves carências de infraestrutura e equipamentos urbanos e dos problemas dela decorrentes, que determinam o estigma da segregação social e suas inevitáveis consequências, como a violência urbana.
A paisagem cultural do Rio de Janeiro estará inaugurando uma modalidade de gestão que pretende, em um cenário com características metropolitanas, onde atuam múltiplos agentes públicos e privados, conciliar desenvolvimento econômico e social com preservação do patrimônio cultural e natural. O arranjo institucional que envolverá Prefeitura, Estado e União, com a participação de diversas autarquias como Iphan, Ibama e Instituto Chico Mendes, será com certeza uma experiência desafiadora, onde podem se somar instrumentos como o tombamento, o zoneamento do uso e a ocupação do solo – que tem nas Áreas de Proteção do Ambiente Cultural – APACs uma experiência relevante –, o registro e outras formas de acautelamento, com o plano diretor e seus instrumentos jurídicos, urbanísticos e tributários, bem como com as demais políticas públicas e investimentos privados que determinam a dinâmica urbana. É uma oportunidade exemplar para a efetivação de uma política integrada de preservação e desenvolvimento econômico e social que consolide os avanços recentes e inaugure uma nova era, onde a preservação do patrimônio cultural e natural sejam protagonistas do desenvolvimento sustentável e da justiça social.
notas
NE – Sob coordenação editorial de Abilio Guerra (editor Arquitextos), número traz dez artigos sobre o tema “Patrimônio histórico”, tendo como inspiração artigo de Clara de Andrade sobre vida e obra de seu pai, o intelectual Rodrigo Melo Franco de Andrade, falecido no dia 11 de maio de 1969. Os artigos do número especial sobre patrimônio histórico são os seguintes:
ALVIM, Clara de Andrade. Rodrigo Melo Franco de Andrade, meu pai. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.00, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4526>.
SANTOS, Cecília Rodrigues dos. A noção de patrimônio e a origem das ideias e das práticas da preservação no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.01, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4528>.
COSTA, Lucio. Museu do Ouro. Sabará. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.02, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4532>.
ANDRADE (JANJÃO), Antonio Luiz Dias de. O discurso do sofá. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.03, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4534>.
TORELLY, Luiz Philippe. Patrimônio cultural. Notas sobre a evolução do conceito. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.04, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4539>.
CALIL, Carlos Augusto. Sob o signo do Aleijadinho. Blaise Cendrars, precursor do patrimônio histórico. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.05, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4540>.
GUIMARAENS, Cêça. Rodrigo Melo Franco de Andrade e a paisagem hiperreal do patrimônio. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.06, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4543>.
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Brasília-patrimônio. Cidade e arquitetura moderna encarando o presente. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.07, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4547>.
ALCÂNTARA, Antonio Pedro de. Aspectos do espaço barroco na arquitetura civil dos séculos XIX e XX. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.08, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4550>.
PROZOROVICH, Fernando Alvarez. El patrimonio histórico como punto de vista. Notas sobre la asignatura “Intervención en el patrimonio histórico”. Arquitextos, São Paulo, año 13, n. 149.09, Vitruvius, oct. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4537>.
1
SANTOS, Milton. Da cultura à indústria cultural. Folha Online. <www1.folha.uol.com.br/fol/brasil500/dc>. Acesso em 08/08/2012.
2
FURTADO, Celso. Ensaios sobre cultura e o Ministério da Cultura. Rio de Janeiro: Contraponto: Centro Internacional Celso Furtado, 2012, p. 64. Do mesmo autor, ver: FURTADO, Celso. O capitalismo global. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.
3
Frase do Manifesto Comunista publicado em 1848, de autoria de Karl Marx e Friedrich Engels. Utilizada como título do livro de Marshall Berman, publicado em 1986, pela Editora Companhia das Letras.
4
HOBSBAWN, Eric. Era dos extremos: o breve século XX: 1914-1991. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.
5
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora de lugar. Ao vencedor as batatas. São Paulo: Duas Cidades: Ed. 34, 2000.
6
CAVALCANTI, Lauro Pereira. Moderno e brasileiro: a história de uma nova linguagem na arquitetura (1930-60). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006, p. 227.
7
BOMENY, Helena. Um poeta na política – Mário de Andrade, paixão e compromisso. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2012.
8
CALIL, Carlos Augusto Machado. Sob o Signo do Aleijadinho – Blaise Cendrars, precursor do Patrimônio Histórico. Patrimônio: Atualizando o Debate. São Paulo: Iphan, 2006.
9
ANDRADE, Mário de. Anteprojeto para criação do Serviço do Patrimônio Artístico Nacional. Revista do Patrimônio, nº 30, 2002.
10
BURY, John. Arquitetura e arte no Brasil Colonial. In: OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de (Org.). Brasília: Iphan/Monumenta, 2006.
11
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo: trajetória da política federal de preservação no Brasil. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2009. O livro de Maria Cecilia Londres Fonseca é leitura obrigatória para o entendimento da gênese e do desenvolvimento da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Da mesma autora, ver: FONSECA, Maria Cecília Londres. Referências culturais: bases para novas políticas de patrimônio. Boletim de Políticas Setoriais. Brasília: IPEA, n. 02, 2001.
12
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo (op. cit.).
123
MEC/SPHAN/FNpM. Proteção e revitalização do patrimônio cultural no Brasil: uma trajetória. Brasília, 1980.
14
TORELLY, Luiz Philippe (Org.) Patrimônio Cultural e Desenvolvimento Sustentável. Brasília: Iphan, 2012.
15
FONSECA, Maria Cecília Londres. O Patrimônio em processo (op. cit.).
16
MICELI, Sergio. SPHAN: refrigério da cultura oficial. Rio de Janeiro. Revista do Patrimônio: SPHAN, 1987.
17
VELHO, Gilberto. Patrimônio, negociação e conflito. O patrimônio cultural dos templos afro-brasileiros. Iphan: Salvador, 2011.
18
Constituição Federal, artigo Nº 182.
19
LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.
20
O documento final de recomendações da Conferência está disponível em www.rio20.gov.br.
21
Conceito de paisagem, Portaria Iphan nº 127/2009.
22
A paisagem cultural do Rio de Janeiro é composta por: 1) Floresta da Tijuca, Serra dos Pretos Forros e Covanca do Parque Nacional da Tijuca; 2) Pedra Bonita e Pedra da Gávea; 3) Serra da Carioca e Jardim Botânico; 4) Entrada da Baía de Guanabara, Passeio Público, Parque do Flamengo, Fortes Históricos de Niterói e Rio de Janeiro, Pão de Açúcar e Praia de Copacabana.
23
A expressão “zona tampão” diz respeito às áreas situadas no entorno imediato daquelas, objeto de proteção. Estão também submetidas a restrições de uso e ocupação do solo, com vistas a evitar a sua descaracterização e mitigar impactos negativos sobre as áreas protegidas.
bibliografia complementar
ANASTASSAKIS, Zoy. Dentro e fora da política de preservação do patrimônio cultural no Brasil: Aloísio Magalhães e o Centro Nacional de Referência Cultural. Rio de Janeiro: UFRJ, Museu Nacional, PPGAS, 2007.
BOSI, Alfredo, Dialética da colonização. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
BRAYNER, Natália Guerra. Patrimônio cultural imaterial: para saber mais. Brasília: Iphan, 2007.
CAMPOFIORITO, Ítalo. Muda o mundo do patrimônio: notas para um balanço crítico. Rio de Janeiro: Secretaria de Ciência e Cultura, s/d.
CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Ed. Unesp, 2001.
CHUVA, Márcia Regina Romeiro. Os arquitetos da memória: sociogênese das práticas de preservação do patrimônio cultural no Brasil. Rio de Janeiro, 2009.
COHN, Gabriel. Concepção oficial de cultura e processo cultural. Revista do Patrimônio, n. 22, 1987.
GONÇALVES, Marcos Augusto. 1922: a semana que não terminou. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
KONDER, Leandro. O Estado e os problemas da política cultural no Brasil de hoje. Revista do Patrimônio, n. 22, 1987.
LE GOFF, Jacques. História e memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2012.
RISÉRIO, Antonio. A cidade no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2012.
sobre o autor
Luiz Philippe Torelly é arquiteto e urbanista.Trabalha no Iphan.