O Iphan e o sofá de Mário de Andrade – introdução explicativa
Victor Hugo Mori
No dia 18 de junho de 1991, Antonio Luiz Dias de Andrade (Janjão) foi reconduzido como coordenador do “Patrimônio”, como era conhecido o Iphan em São Paulo, depois de dirigir a Regional paulista desde 1978. O seu afastamento da direção em 1990 foi motivado pela truculenta extinção da Sphan e da Fundação Nacional Pró-Memória naquele período de triste memória. Os veículos haviam sido leiloados, os equipamentos fotográficos “doados”, os funcionários demitidos ou afastados, tudo em nome da “modernização” e do novo plano econômico que se implantava.
No sobrado da Rua Baronesa de Itu até um velho sofá da recepção tinha como destino o descarte. A resistência interna dos servidores contra o “desmonte da Cultura” teve como símbolo a manutenção e a defesa do velho sofá – metáfora da nossa necessidade de sobrevivência. Como justificativa para a sua conservação inventamos a história que o tal sofá teria pertencido ao nosso patrono Mário de Andrade, primeiro representante do Iphan em São Paulo. Os novos dirigentes intimidados diante do “atributo histórico” do desgastado artefato preferiram guardá-lo na garagem.
A designação do arquiteto Jayme Zettel, integrante dos quadros da instituição, para a presidência do Instituto Brasileiro do Patrimônio Cultural – IBPC (posteriormente alterado para Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan), pelo novo ministro da Cultura Paulo Sérgio Rouanet deu um novo alento aos servidores do “Patrimônio”. Antonio Luiz foi reconduzido à Diretoria Regional. O texto-discurso da posse de Janjão transcreve este momento especial na história desta Superintendência do Iphan em São Paulo e continua atual ao enfatizar a necessidade de se restaurar e revitalizar a nossa septuagenária instituição.
Muito anos depois, encontramos nos arquivos do Iphan uma velha fotografia da antiga sede do Patrimônio na Rua Marconi: Mário de Andrade, Bruno Giorgi e Luís Saia, todos sentados no nosso sofá. A velha poltrona era mesmo de Mário de Andrade.
O discurso do sofá
Antonio Luiz Dias de Andrade (Janjão)
Há nesta casa um sofá. Um sofá, roído, “armafanhado” e desgastado, inclusive, alterado por sucessivas reformas que lhe furtaram a primitiva feição.
Ninguém sabe ao certo como veio parar aqui.
Alguns pretendem haver pertencido a Mario de Andrade, outros afirmam que o sofá constitui parte remanescente do mobiliário original da sede da então 6ª Região da Sphan, que já sob o comando do arquiteto Luis Saia, ocupava a sala nº 412 do edifício nº 87 da Rua Marconi.
Seja qual for a versão verdadeira, estamos acostumados há muito a compartilhar nesta casa de sua veneranda presença. Temos pelo velho – ou antigo – sofá, um especial apreço e sentimos por ele uma grande afinidade.
Vários de nós igualmente demonstramos os sinais do tempo, seqüelas de desgastes, cicatrizes de sucessivas crises.
Recentemente o velho sofá foi motivo de polêmica. Em face de seu combalido aspecto chegou-se a pensar em se desfazer de sua incômoda presença, afinal um velho sofá não condiz com o novo tempo que se pretende inaugurar.
Tal desígnio não foi aceito passivamente. A maioria se manifestou em favor de sua conservação, dividiu-se, todavia, quanto aos critérios a serem empregados.
Os mais ortodoxos julgaram que o sofá deveria ser restaurado em obediência rigorosa às suas formas originais, devendo receber o mesmo revestimento de couro e semelhantes ágrafos de latão agaloados.
Os partidários da modalidade da conservação levantaram-se em defesa da manutenção do “curvim” de segunda classe, como testemunho da ação do tempo, das mudanças dos movimentos do gosto e da decadência dos recursos disponíveis no âmbito das instituições públicas.
O sofá permaneceu, muito embora não se chegasse a uma solução definitiva para o problema de sua conservação.
Os partidários do simples descarte nisso enxergaram uma enérgica manifestação de um enraizado imobilismo, um forte apego a uns passados míticos, que procura interromper qualquer processo de mudança.
Os defensores do sofá, no entanto, não são contra as mudanças, julgam-nas extremamente necessárias, sobretudo em um momento em que vemos ampliadas nossas responsabilidades na preservação do patrimônio cultural, momento em que o assunto deixou de constituir o domínio de reduzidos grupos de abnegados, integrando as preocupações e os anseios de expressivas parcelas da opinião pública.
Não deixa de representar uma forma de paradoxo pensar o "novo” numa instituição que se dedica ao passado.
As alternativas serão sempre polêmicas. Deverão prevalecer aquelas que adquirirem o maior consenso.
E hoje, se fizemos questão de reuni-los aqui é porque continuamos a perseguir uma solução para o nosso sofá. Sozinhos, será difícil encontrá-la.
Carecemos, hoje mais do que nunca, do auxílio de todos vocês.
nota
NE - O presente texto foi lido, na forma de discurso, em 18 de junho de 1991. A inclusão deste texto no número especial de Arquitextos é uma sugestão do arquiteto Victor Hugo Mori, arquiteto do Iphan/SP, que assina a introdução; é dele também a edição iconográfica que acompanha o texto.
NE – Sob coordenação editorial de Abilio Guerra (editor Arquitextos), número traz dez artigos sobre o tema “Patrimônio histórico”, tendo como inspiração artigo de Clara de Andrade sobre vida e obra de seu pai, o intelectual Rodrigo Melo Franco de Andrade, falecido no dia 11 de maio de 1969. Os artigos do número especial sobre patrimônio histórico são os seguintes:
ALVIM, Clara de Andrade. Rodrigo Melo Franco de Andrade, meu pai. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.00, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4526>.
SANTOS, Cecília Rodrigues dos. A noção de patrimônio e a origem das ideias e das práticas da preservação no Brasil. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.01, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4528>.
COSTA, Lucio. Museu do Ouro. Sabará. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.02, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4532>.
ANDRADE (JANJÃO), Antonio Luiz Dias de. O discurso do sofá. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.03, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4534>.
TORELLY, Luiz Philippe. Patrimônio cultural. Notas sobre a evolução do conceito. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.04, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4539>.
CALIL, Carlos Augusto. Sob o signo do Aleijadinho. Blaise Cendrars, precursor do patrimônio histórico. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.05, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4540>.
GUIMARAENS, Cêça. Rodrigo Melo Franco de Andrade e a paisagem hiperreal do patrimônio. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.06, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4543>.
ROSSETTI, Eduardo Pierrotti. Brasília-patrimônio. Cidade e arquitetura moderna encarando o presente. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.07, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4547>.
ALCÂNTARA, Antonio Pedro de. Aspectos do espaço barroco na arquitetura civil dos séculos XIX e XX. Arquitextos, São Paulo, ano 13, n. 149.08, Vitruvius, out. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4550>.
PROZOROVICH, Fernando Alvarez. El patrimonio histórico como punto de vista. Notas sobre la asignatura “Intervención en el patrimonio histórico”. Arquitextos, São Paulo, año 13, n. 149.09, Vitruvius, oct. 2012 <www.vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/13.149/4537>.
sobre o autor
Antonio Luiz Dias de Andrade nasceu em 14 de março de 1948 e faleceu em 1997. Arquiteto formado em 1972 na FAU-USP recebeu os títulos de mestre em 1984 com a dissertação Técnicas Construtivas, Vale do Paraíba e de doutorado em 1993 com a tese Um estado completo que pode jamais ter existido na FAU-USP, onde atuou como professor desde 1976. Foi Conselheiro do Condephaat de 1978 à 1994, Diretor Regional do Iphan em São Paulo de 1978 à 1994, membro do Icomos desde 1981, membro do Conselho Superior do IAB, membro da delegação brasileira na 18ª Sessão do Comitê do Patrimônio Mundial da Unesco, realizado no período de 12 a 17 de dezembro de 1994, na cidade de Phuket, Tailândia. Responsável por dezenas de projetos e obras de restauração no Brasil foi autor de inúmeros trabalhos publicados sobre a preservação do patrimônio cultural.
sobre o autor da apresentação
Victor Hugo Mori, arquiteto (Mackenzie, 1975), foi Superintendente Regional do Iphan-SP e Chefe de Restauro e Diretor Técnico do Condephaat (1983-1987). Ingressou nos quadros do Iphan em 1987. Coordenador da Comissão de Patrimônio Histórico do IAB e Conselheiro do Condephaat e Conpresp. É Conselheiro do Condepasa, membro do Icomos e professor-convidado nos Cursos de Especialização em Restauro na Pós-graduação na Unisantos e na Unicsul. Autor de “Arquitetura Militar: um panorama histórico a partir do Porto de Santos” (Imesp-Funceb, 2003) e organizador de “Patrimônio: atualizando o debate” (Iphan-Dersa, 2006).