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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
O texto aborda o problema entre o desenvolvimento urbano produzido pelo capital e o processo de gentrificação social oriundo disso, tomando como caso empírico um documentário sobre o tema em Lisboa e, como noção teórica, o sentido de político em Rancière.

english
The text is about the problem between urban development produced by capital and the process of social gentrification, taking as an empirical case a documentary on the theme in Lisbon and, as a theoretical notion, the sense of politics in Rancière.

español
El texto aborda el problema entre el desarrollo urbano producido por el capital y el proceso de gentrificación social, tomando como caso empírico un documental sobre el tema en Lisboa y, como noción teórica, el sentido de la política en Rancière.


how to quote

DA COSTA, Ana Elisia; REYES, Paulo. O que vai acontecer aqui? Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 247.02, Vitruvius, dez. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.247/7963>.

Documentário O que vai acontecer aqui?
Imagem divulgação

O Festival de Cinema DOC Lisboa de 2019 teve, entre suas sessões, uma intitulada Cinema de Urgência. O objetivo dessa sessão era discutir a relação do cinema com temas emergentes nas redes sociais e outros meios, ou seja, discutir a ligação do cinema com a realidade social e suas práticas diárias de cidadania.

Na programação do dia 21 de outubro, essa sessão do festival exibiu o documentário O Que Vai Acontecer Aqui? (1), dirigido pelo coletivo espanhol Left Hand Rotation e produzido por este mesmo coletivo, em parceria com outras duas associações – Habita e Stop Despejos.

O título do documentário remete às placas da municipalidade de Lisboa que se multiplicam em fachadas de edifícios sujeitos à reabilitação de usos. A julgar pela quantidade destas, pode-se afirmar que algo singular está acontecendo em Lisboa! E é nesse aceno do cotidiano que emerge o tema do documentário: o problema da gentrificação, frente à indústria do turismo.

Documentário O que vai acontecer aqui?, placa da municipalidade de Lisboa
Foto dos autores

O objetivo deste texto é pensar, a partir da observação desse documentário, a relação entre o “desenvolvimento urbano” e os “processos de gentrificação” por ele gerado. A reflexão parte daquilo que o próprio documentário torna visível e do que nós, pesquisadores, conseguimos desvelar, ou seja, a reflexão se dá com ele e através dele.

Esse exercício é guiado pelas noções de estética e política em Jacques Rancière e por uma conceituação prévia de “desenvolvimento urbano” e “gentrificação”. Como “desenvolvimento urbano”, limita-se aqui a enfocar investimentos do capital imobiliário para reestruturar áreas urbanas já consolidadas, a partir de novos conceitos e padrões de viver e, principalmente, consumir; e, como “gentrificação”, entende-se o processo de hipervalorização econômica do solo urbano impulsionado pelo mesmo capital imobiliário e a consequente expulsão de populações residentes, pela dificuldade dessas responderem financeiramente aos novos valores impostos. Discute-se, portanto, a instalação de “novas moradias e novos moradores”, a partir da retirada de “velhas moradias e velhos moradores” de áreas urbanas consolidadas.

Essa realidade, apesar de aqui focada no contexto específico de Lisboa, retrata uma problemática que hoje é também global. Poderíamos, então, reescrever o título do documentário e do artigo: de “o que vai acontecer aqui?”, para “o que está acontecendo aqui?”, expressando o que já vem ocorrendo no mundo. É interessante verificar como o capital oferece uma imagem de futuro próspero, apontando para uma nova vida e novos padrões de habitabilidade representados na expressão “vai acontecer”; e não se compromete com o problema que já está sendo gerado pelo próprio capital imobiliário na situação presente; ou seja, não vai acontecer, já está acontecendo.

Esta constatação ao articular em torno de si dimensões políticas, éticas e estéticas, desperta o nosso interesse, a partir de duas pesquisas de pós-doutoramento em curso em Portugal, uma em Filosofia na Universidade Nova de Lisboa e outra em Urbanismo no Instituto Universitário de Lisboa – ISCTE.

1. No escuro da sala, a luz do problema

A sessão temática de urgências do DOC Lisboa coloca o cinema, como mídia, entre a estética e a política. Além de uma simples abordagem estetizada da realidade, os filmes dessa sessão assumem um compromisso ético de apresentar e debater um modus operandi de fazer, sentir e pensar a vida contemporânea.

Diante deste desafio, em 83 minutos, o documentário O Que Vai Acontecer Aqui? busca mostrar como é feita a Lisboa contemporânea frente às pressões do turismo; como se sentem os seus moradores, ou uma parcela destes; e sugere outras formas de pensar o que está acontecendo e o que pode vir a acontecer.

Na tela, de modo não linear, uma narrativa se constrói entre fatos, imagens urbanas poéticas e impactantes, e depoimentos de envolvidos. Tentamos assim descrevê-la:

“Lisboa, pós-crise de 2008 e pós-financiamento da Troika (2) de 2011. Portugal abre-se ao turismo e sua capital adota medidas de desregulamentação do mercado imobiliário – transmissões de propriedades facilitadas; períodos de contratos de aluguel reduzidos; garantias contratuais de antigos inquilinos suspensas; licenciamentos de obras agilizados; promotores imobiliários enriquecidos com a rápida recuperação do capital investido.

Um avião corta o céu de Lisboa. Hordas de turistas deslizam pela Alfama e pela Baixa. Técnicos dão contornos teóricos ao cenário vigente. Fragmentos de paisagem. Edifícios em demolição. Um despejado dá contornos à dor.

Com os Vistos Gold (2012), estrangeiros compram imóveis que, fechados ou precarizados, aguardam a valorização de preços ou a demolição, para novas vendas ou novas incorporações. Com Alojamentos Livres (AL), turistas alugam a low-coast apartamentos locais pelo Booking ou Airbnb, ou ainda, diretamente com os “senhorios”. A rentabilidade prometida pelas duas operações fazem os aluguéis aumentarem vertiginosamente. A casa vira mercadoria (3).

Uma grua corta o céu de Lisboa. Casas fechadas. Transatlântico do Tejo. Abandono de um lar. Uma mulher a chorar. Despejo. Truculência policial. “Dói imenso” – depõe moradora. Gritos na rua – manifestação. Tambores...

Empobrecida, a população não salda os aluguéis, e se retira do centro da cidade, espontaneamente ou através de ações de despejos. Exilados, os moradores são segregados em seu próprio território. Infiltração de turistas e endinheirados na cidade. Desmantelamento do tecido urbano e social existente, em prol da oferta de bens de luxo e consumo rápido.

“É preciso criar um polo do lado das pessoas, construir poder, construir organização e resistência contra estes todos grandes interesses que tem muito poder. Agora, vamos ver o que acontece!” (4).

FIM

A composição dessa narrativa fragmentada do que é ou do que pode ilustrar o documentário, ao menos para nós, talvez se aproxime do próprio desafio de sua edição. Da eleição dos fragmentos registrados à definição da hierarquia entre eles, a edição do documentário envolve, necessariamente, uma redução de significados de cada um de seus registros. Assim, como resultado, se tem uma realidade-outra, uma ficção, ou como mesmo afirma o coletivo em sua proposta de trabalho, uma realidade “que resiste a ser editada” e que busca traduzir “o irredutível, o inexplicável, inenarrável, ilógico, absurdo, e, quem sabe, o irregistrável” (5).

O limite entre essa “realidade resistente à edição” ou essa “ficção” tem especial importância na reflexão aqui desenvolvida, principalmente quando o cinema consegue borrar esses limites. Se no campo do real o cinema é hábil em retratar fatos, muitas vezes invisibilizados; no campo da ficção, ele á capaz de produz novos sentidos para a própria realidade. A ficção permite “suspender” os traços de factibilidade da realidade, permite construir novos caminhos até então difíceis de serem pensados e viabilizados.

Ficção estético-política

Entre o real e o ficcional, portanto, há uma inevitável interface estética e política. Não se restringi aqui a noção de estética a algo que se debruça sobre o “belo”, ou ainda, que sistematiza o processo de produção artística. O sentido de estética perseguido é aquele que, sobretudo, se vincula a um sentido político, tal como aborda o filósofo Jacques Rancière (6).

Para ele, política é estética, devido ao fato de que a política se apresenta como um modo de determinação do sensível – do que é real ou simbólico, visível ou invisível, próprio ou comum, da ordem dos discursos ou dos fatos, como ele próprio observa:

“Ela (a política) é estética desde o início, na medida em que é um modo de determinação do sensível, uma divisão dos espaços – reais e simbólicos – destinados a essa ou àquela ocupação, uma forma de visibilidade e de dizibilidade do que é próprio e do que é comum. Esta mesma forma supõe uma divisão entre o que é e o que não é visível, entre o que pertence à ordem do discurso e o que depende do simples ruído dos corpos” (7).

Ao assumir esse papel, a política assume também uma dimensão dissensual (8). Se, de um lado, ela define a repartição ou não de algo; de outro, reconhece a existência de algo que está à margem, ou fora da partilha, o que constitui um impedimento ao princípio de igualdade. É essa noção de política que vai suportar o conceito de “partilha do sensível”, que Rancière (9) desenvolve ao longo de toda a sua obra.

A política é, então, uma atividade que, ao mesmo tempo, estabelece e desconfigura uma ordem, que rompe com consensos. Ela é o próprio dissenso. Frente a um sentido de igualdade que não lhe é próprio, mas que se apresenta como um pressuposto, a política se instaura como uma denúncia – de um dano, de um litígio.

Ao denunciar um dano, no caso o processo de gentrificação em Lisboa, e de reconhecer a existência dos que estão à margem, ou fora da partilha lisboeta, o documentário se afirma claramente como um ato político, que transborda os limites de sua simples dimensão estética.

Desentendimentos visibilizados

Mais especificamente, o documentário explicita “desentendimentos” sobre as diferentes perspectivas em que o “desenvolvimento urbano” de áreas consolidadas é encarado. Desentendimento aqui não se refere a opiniões conflitivas, desconhecimentos ou mal-entendidos, mas a uma instância em que o que é dito por um é “entendido” e, ao mesmo tempo, “não entendido” por outro, em decorrência da maneira como o sensível comum é evidenciado e de como os interlocutores o anunciam (10).

Na interlocução entre o capital imobiliário e moradores, por exemplo, o anúncio sobre a “decadência do território”, expresso nas ruas, nas edificações e nas paredes em geral, sofre inúmeros desentendimentos. Para o capital, essa decadência representa descaso e abandono; para os moradores, apenas contingências econômicas que impedem moradores de fazer melhorias, mas não descaso; ou ainda, numa visão mais romantizada (e também estetizada), esse abandono representa a aceitação da vida das construções, de sua modificação ao longo do tempo, pois todo ser envelhece e apresenta marcas da passagem do tempo. O anúncio de “qualificação” desses territórios decadentes, para o mercado imobiliário, envolve transformá-los em bens de troca e de consumo, um modo de obter a mais-valia, com a hipervalorização dos imóveis; para os moradores, representa, simplesmente, a possibilidade de viver com mais dignidade no local que possui fortes vínculos afetivos e comunitários. O anúncio de um “modo de viver” nesses territórios, para o mercado, representa a possibilidade de sua transformação em mercadoria “exótica” pronta para o consumo; para os moradores, representa sua identidade, seu “eu”, suas casas, comidas, hábitos que, no novo cenário, correm o risco de serem descaracterizados ou canibalizados. Estamos, portanto, entre o “sonho” de consumo de uns e o “medo” de exclusão de outros.

No âmbito desses desentendimentos, o modo como o mercado imobiliário anuncia o seu sensível invisibiliza os moradores que não conseguem ser vistos como interlocutores ou que não possuem razões para serem vistos como tal, já que, invisibilizados, “não existem” (11). É justamente pelo fato de uma das partes “não-existir” que o acordo entre partes é impossível.

Assim, o que o documentário busca fazer é denunciar o dano dos moradores, ou seja, a parcela social invisibilizada e prejudicada pela lógica de exploração do território como mais-valia. Essa denúncia não vitimiza essa parcela social, mas explicita um modo de subjetivação política, posto que ela é a parte que está à parte e que só pode ganhar existência no próprio ato da denúncia.

“A ‘discussão’ do dano não é uma troca – nem mesmo uma troca violenta – entre parceiros constituídos. Ela diz respeito à própria situação de fala e seus atores. A política não existe porque os homens, por meio do privilégio da fala, acordam seus interesses em comum. A política existe porque aqueles que não tem direito de ser contados como seres falantes conseguem ser contados, e instituem uma comunidade pelo fato de colocarem em comum o dano que nada mais é que o próprio enfrentamento, a contradição de dois mundos alojados num só” (12).

O documentário, portanto, denuncia aos que acordam interesses econômicos a existência e a necessidade de considerar os que estão fora desses acordos, das partilhas. Ele afronta dois mundos alojados num só – “desenvolvimento urbano” e “gentrificação” –, “mascarados” pelo discurso oriundo da produção capitalista do espaço urbano.

2. Para fora da tela, o problema na pele

Entre os “protagonistas” do documentário – diretores, membros das associações que lutam pelo direito à moradia e moradores afetados pela gentrificação – há uma indiscutível sinergia que vem, provavelmente, de um ativismo social convergente. O coletivo Left Hand Rotation, que assume a direção do documentário, dedica-se ao registro de vídeos de intervenções e apropriações urbanas promovidas por movimentos sociais (13). Representam o coletivo no documentário, mesmo que esse proponha um trabalho não autoral, dois espanhóis que residem em Lisboa desde 2011 e que também atuam nas outras duas associações de Lisboa que coproduzem o documentário – Habita (14) e Stop Despejos (15) –, ambas dedicadas, principalmente, à luta pelo direito à habitação e pelo direito à cidade, próximo do que foi proclamado por Lefebvre (16) ainda nos anos 1960.

Os modelos de gestão desses grupos são muito similares. São auto-organizados, horizontais, apartidários e autofinanciados e, tal como os coletivos urbanos que se afirmaram no início do século 21, suas ações são multidisciplinares, territorializadas no espaço urbano, participativas e colaborativas (17).

As feições participativa e colaborativa em suas propostas revertem em intenções claramente emancipatórias da sociedade. Esperam que as comunidades transponham o mero papel de “receptor” ou “espectador”, para se responsabilizarem pela transformação de suas próprias realidades sociais (18). Para isso, buscam consolidar o diálogo, a inclusão, a consolidação de redes de solidariedade, o desenvolvimento de ações e soluções coletivas (19). No website do Habita!, um pequeno texto ilustra este argumento:

“Se conheces pessoas que têm problemas de habitação, escuta-os, partilha as suas experiências, fala com, e participa de grupos locais que lutam para que o direito a habitar seja respeitado. Informa-te sobre as causas destes problemas e sobre a legislação nacional, partilha esse conhecimento com a tua rede procurando soluções em conjunto” (20).

Esse diálogo sensível e próximo com a população, em certa medida, distancia seus membros do simples papel burocrático ou técnico. Ao “didatizar” discursos e não usá-los como uma forma de poder ou hierarquia, relações entre os indivíduos são horizontalizadas. Isso, contudo, não se dá apenas no plano discursivo, mas também prático. Os técnicos, além da fundamental discussão e proposição de políticas públicas para a habitação, atuam nas trincheiras do desabrigo, lado a lado, com a população afetada. Somam-se aos corpos em litígio. Funcionam como agentes visibilizadores de um dano.

São nessas trincheiras que os grupos desenvolvem ações de organização comunitária e praticam protestos, denúncias e intervenções diretas, como as de ocupação e de obstrução dos despejos, justificadas, por vezes, como uma “desobediência civil” necessária. Por isso, figuram entre os personagens do documentário, não só como lugar de fala de articulistas intelectuais, mas também, como de “ativistas obstinados” (21).

A horizontalidade desse discurso e prática se estende ao próprio documentário, em que técnicos e moradores afetados pelo processo de gentrificação assumem igual protagonismo. Com grande força performativa, os relatos dos moradores, ao invés de reforçar qualquer vitimização, revela um empoderamento processual, quando eles próprios se percebem militantes da luta pela moradia. Esse relato tem um papel importante, pois, mais do que só descrever a cena, ele cria ou concretiza o que é dito. O relato, ao tirá-los da obscuridade da partilha, os emancipa, os autoriza a tensionar ou superar limites da mesma, como mesmo afirma De Certeau:

“Nessa organização, o relato tem um papel decisivo. Sem dúvida, ‘descreve’. Mas ‘toda descrição é mais do que uma fixação’ é um ato culturalmente criador. Ela tem até poder distributivo e força performativa (ela realiza o que diz) quando se tem um certo conjunto de circunstâncias. Ela é então fundadora de espaços. [...] Considerando o relato do papel na delimitação, pode-se aí reconhecer logo de início a função primeira de autorizar o estabelecimento, o deslocamento e a superação de limites e, por via de consequência, funcionando no campo fechado do discurso, a oposição de dois movimentos que se cruzam (estabelecer e ultrapassar limites) [...] e do qual a fronteira e a ponte parecem as figuras narrativas essenciais” (22).

Pós-ficção – o debate

Dar visibilidade não significa só apresentar o problema como um artefato estético a ser consumido por uma parcela da sociedade sensível à questão. As estratégias de exibição de um documentário em festivais, eventos públicos e internet são importantes para o processo de visibilização de um dano por parte de um público mais abrangente. Neste sentido, foram programadas inúmeras apresentações públicas do documentário, mas sempre seguidas de um debate (23).

Durante a exibição no Cinema São Jorge, pessoas sentadas na fila a nossa frente manifestavam discretamente risos, lágrimas e cutuques. Uma delas carregava uma criança e, ao fim da apresentação, subiu ao palco para compor a mesa de debate do documentário. Era uma entre muitos de diferentes gêneros, etnias, idades, nacionalidades, uma “moradora”, uma mulher-negra-mãe, que se descobriu “ativista” durante o processo de luta pela moradia.

Documentário O que vai acontecer aqui?, debate após a exibição do documentário
Foto dos autores

Ela, assim como as outras pessoas que naquele momento saiam da tela e se presentificavam na sala de exibição, tornava protagonista da sua própria história, ganhava voz, inclusive com possibilidades de reforçar ou contrapor ao discurso do próprio filme. O debate era, assim, um metaevento, com uma metalinguagem – “eu sou aquele que falo no filme que fala sobre mim, mas que agora, fora do filme, eu que falo sobre ele” –, constituindo um jogo evidente de empoderamento social.

Por outro lado, o público ali era transformado em cúmplice de um ato que se construía com o próprio debate. Como arquitetos e urbanistas estrangeiros em Portugal e, portanto, distantes da realidade dos moradores envolvidos, fomos sensibilizados pela dimensão política ali em construção, muito mais do que pela simples apreciação de objeto estético. Tela e debate, naquele momento, evidenciavam a suas potências como instrumentos de alargamento das fronteiras eu-mundo e da relação formal-informal das cidades.

Não menos potente parece ser o debate que se deu e se dá na página da internet em que o documentário foi disponibilizado, um dia após a exibição no DOC Lisboa, e nas inúmeras multiplicações nas redes sociais.

O seu alcance, assim, se universalizava, assim como o seu próprio discurso. A causa dos grupos envolvidos no documentário não se limita às fronteiras de Lisboa, já que, numa escala global, as cidades foram transformadas em lugar privilegiado da produção-circulação de capital pelo neoliberalismo dominante. Tão pouco as causas do Direito à Habitação e Direito à Cidade fecham em si mesmas, visto que, ao afetar predominantemente minorias, exige a articulação com movimentos voltados às causas antirracistas, feministas e ambientalistas.

Denúncia de gentrificação na cidade do Porto
Foto dos autores

Expandindo seus limites geográficos e temáticos, esses grupos expandem a denúncia de danos e, a partir do teor ficcional de seus documentários, transladam a discussão das telas para a realidade territorial, ressignificando-a e construindo novos caminhos. O cinema sai da sala. Temos aí uma mídia expandida e um problema estético ganhando força política.

Considerações finais

Entre os dois mundos – do turismo-capital e dos moradores excluídos –, o documentário transcende à mera descrição estética do que está do lado de fora dessa partilha. Politicamente, ele anuncia, denuncia um dano e, mais além, propõe “pontes” que podem superar ou tensionar os limites da partilha, no caso, a sua aposta se dá nos movimentos sociais de (re)apropriação da cidade.

Toda ponte, contudo, sustenta em si um papel ambíguo de, ao mesmo tempo, comunicar e separar. Como sugere De Certeau (24), a ponte “ora solda, ora contrasta insalubridades. Distingue-as e as ameaça. Livra do fechamento e destrói a autonomia”.

Assim, a travessia das margens e as próprias pontes, cujas fragilidades não são apontadas no documentário, exigem vigília constante, projetos inconclusos, ações reticentes, exigem a manutenção ativa do questionamento – o que está acontecendo aqui?

Neste sentido, o documentário parece coerente – aqui, agora, não oferece respostas definitivas. Ele apenas pode ser visto como parte de uma tática, uma astúcia que, através de alianças múltiplas e variadas, interroga e joga com a ordem estabelecida (25). Ele apenas anuncia, na sala do cinema, na associação de bairro da periferia, na tela de computadores dos quatro cantos do mundo, nas mesas dos debates, que o questionamento precisa mudar o sentido de “O que vai acontecer aqui?” para “O que está acontecendo aqui?”.

notas

1
O que vai acontecer aquí? Direção Left Hand Rotation/Stop Despejos/Habita! Documentário, cor, 1h22min <https://vimeo.com/357310878>.

2
Troika é uma aliança entre FMI, Banco Central Europeu – BCE e Comissão Europeia. Ver: CORREIA, Mickael. Um Governo de Esquerda... Mas não muito. A face oculta do milagre português. Jornal Le Monde Diplomatique – Brasil, 2 set. 2019 <https://bit.ly/3qBvxKc>.

3
Sobre o argumento, ver: CÓIAS, Vitor. “Revolução” em Lisboa, antes da Troika. Jornal Público, 27 set. 2019 <https://bit.ly/3mUeHUF>. Lisboa, que em 2014 estava em 26º lugar no ranking das preferências dos investidores e dos promotores imobiliários, saltou para o 7º lugar em fins de 2016 e chegou ao topo em 2019, numa subida meteórica. [...] Entre 2014 e 2017 o número de unidades de AL registadas em todo o país passou de 14.000 para 53.000, um aumento de 280%, e ainda não parou de crescer. Só na cidade de Lisboa entre 2014 e 2017 o número de unidades de AL registadas passou de 1 100 para 13.000, um aumento de 1080%. Entre 2008 e 2018, o aumento de aluguéis de turismo em Lisboa foi de 3.000%, assim passou a ter mais residências Airbnb/habitantes que todas as outras capitais europeias. Ver: CORREIA, Mickael. Op. cit.

4
Fala de Rita Silva, da Habita, que encerra do documentário.

5
LEFT HAND ROTATION. Set. n. d. <https://bit.ly/39OZUqt>. Tradução dos autores.

6
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. São Paulo, Editora 34, 2017; RANCIÈRE, Jacques. Nas margens do político. Lisboa, KKYM, 2014.

7
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita (op. cit.), p. 8.

8
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento: política e filosofia. São Paulo, Editora 34, 2018.

9
Idem, ibidem.

10
Idem, ibidem.

11
RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. São Paulo, Editora 34, 2009.

12
RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita (op. cit.), p. 40.

13
LEFT HAND ROTATION. Op. cit.

14
A Habita foi fundada em 2014, a partir de um coletivo constituído em 2012 e cujas origens remontam à associação Solidariedade Imigrante de 2005. Ver: HABITA. n.d. <http://habita.info/>

15
STOP DESPEJOS. n.d. <https://bit.ly/3osVYQr>.

16
LEFEBVRE, Henri. O Direto à Cidade. São Paulo, Centauro, 2001.

17
BASSANI, Jorge. Das intervenções artísticas à ação política urbana. Tese de Livre-Docência. São Paulo, FAU USP, 2019.

18
LEFT HAND ROTATION. n.d. <https://bit.ly/3qBcnEh>.

19
STOP DESPEJOS. Op. Cit.; HABITA. Op. cit.

20
HABITA. Op. cit.

21
HABITA. Op. cit.

22
DE CERTAU, Michel. A Invenção do Cotidiano. Petrópolis, Vozes, 1998, p. 209.

23
Além da sessão no DOC Lisboa, o documentário rodou a periferia de Lisboa, em sessões sempre seguidas de debates. Assistimos também a sua exibição na Biblioteca de Marvila, no dia 07 de dezembro de 2019. Neste dia, os diretores do documentário foram entrevistados pelos autores desse artigo, mas por critério dos mesmos, as suas identidades devem ser preservadas, já que o Left Hand Rotation preza pelo trabalho não autoral.

24
DE CERTAU, Michel. Op. cit., p. 214.

25
Idem, ibidem.

sobre os autores

Ana Elísia da Costa é arquiteta e urbanista (PUC GO, 1993); mestre (2001) e doutora (2011) em Arquitetura pela UFRGS; pós-doutoramento em Urbanismo pelo Instituto Universitário de Lisboa (2019-2020). Professora e pesquisadora na FAU UFRGS e colaboradora no Prograu UFPel. Co-organizadora do livro Casa Contemporânea Brasileira (Nhamerica, 2019).

Paulo Edison Belo Reyes é arquiteto (UniRitter, 1987), mestre em Planejamento Urbano (UnB, 1992), doutor em Ciências da Comunicação (Unisinos UAB, 2004 – doutorado sanduíche); pós-doutoramento em Filosofia na Ifilnova UNL (Bolsa Capes Print Pesquisador Visitante Sênior 2019-2020). Professor na Faculdade de Arquitetura e Propur UFRGS. Autor de Projeto por cenários: o território em foco (Sulina, 2015).

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247.02 urbanismo e gentrificação
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