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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Este texto investiga a possibilidade de transpor o conceito freudiano de mal-estar para a construção de uma narrativa em arquitetura, estudando temas e autores que auxiliam nesta aproximação interdisciplinar.

english
This paper investigates the possibility of transposing the freudian concept of malaise to the construction of a narrative in architecture, studying themes and authors that assist in this interdisciplinary approach.

español
Este texto investiga la posibilidad de transponerel concepto freudiano de malestar a la construcción de una narrativa en arquitectura, estudiando temas y autores que ayudan en este enfoque interdisciplinario.


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BRONSTEIN, Laís. Mal-estar na arquitetura. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 247.01, Vitruvius, dez. 2020 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.247/7964>.

Marginal Tietê, São Paulo SP
Foto Ana Paula Hirama

Não são poucos nem recentes os estudos que tratam do impacto da vida na metrópole na saúde física e mental de seus habitantes. Muitos destes trabalhos datam já de finais do século 18, quando se verifica um rápido crescimento das cidades europeias, ocasionado efeitos diretos na configuração das estruturas urbanas pré-industriais. A demanda por espaços que comportassem o súbito aumento da população, as novas atividades econômicas e as distintas dinâmicas sociais resultou em transformações substanciais no tecido histórico. Frente a esta emergente realidade urbana, diversas foram as reações experimentadas por seus cidadãos. Por sua vez, a (in)adequação a este novo viver urbano se converte em mote para inúmeros relatos advindos de variados campos do conhecimento, revelando ânimos e experiências com peculiar potência criativa. Esta relação física e mental com a metrópole tem sido há tempos, fonte para trabalhos e descobertas nas artes plásticas, na fotografia e na literatura, entre tantas outras disciplinas. Também na arquitetura esse fenômeno se mostrou revelador.

Espaço urbano e cidade moderna

Em seu texto Conceitos de espaço urbano no século 20, Alan Colquhoun traça um panorama das transformações observadas no espaço urbano ao longo do século passado tomando como exemplo a cidade de Berlim. Por espaço urbano o autor diferencia dois sentidos atribuídos ao termo; o primeiro, associado aos geógrafos e sociólogos, o objeto de estudo centra-se no “espaço social” que são “as implicações espaciais das instituições sociais”; o segundo, associado aos arquitetos, o objeto de estudo é “o próprio espaço edificado, sua morfologia e o modo que este afeta nossas percepções”. Neste sentido, e desde a ótica da arquitetura, Colquhoun situa a gênese do chamado “espaço urbano moderno” nos anos 1920, momento singularizado pela pesquisa e construção de novas tipologias habitacionais – as chamadas Siedlungen – em Berlim e outras cidades alemãs. Este episódio é apontado como uma resposta direta aos chamados Mietkasernen, edifícios de moradias massivamente construídos a partir da segunda metade do século 18 pelo país para abrigar o crescente proletariado urbano (1).

“Quando vemos hoje estes Mietkasernen, com suas altas densidades e seus pátios labirínticos e esquálidos, compreendemos rapidamente todo o movimento moderno” (2), sentencia o autor. De fato, está na base dos estudos das novas tipologias habitacionais e dos novos espaços urbanos aí propostos, diretrizes relacionadas a reverter as condições insalubres dos conjuntos do século 19. Verificou-se que estes antigos bairros, sua tipologia arquitetônica e morfologia urbana, mostravam-se incompatíveis com a possibilidade uma vida saudável e com condições mínimas de bem-estar para seus habitantes. O resto desta história é bem conhecido e também amplamente estudado.

A disciplina da arquitetura, por sua ubiquidade e pela necessidade de responder à critérios pragmáticos e construtivos tem sido – como não poderia deixar de ser – guiada pela ideia do bem-estar. Nos projetos de arquitetura e também nos projetos urbanos esta relação saúde física/espaço físico se traduz até os dias de hoje na constante busca de novos arranjos e soluções. Entretanto, o que dizer sobre a relação entre saúde mental e espaço físico, já tão estudada em outros campos do saber? Estaria esta também sujeita a mesma relação inequívoca?

Este questionamento remete ainda a outras indagações, que parecem desafiar a própria ideia de arquitetura, que nos leva a perguntar o porquê de estudar apenas aquele espaço físico criado sob a égide do bem-estar. Seria possível traçar uma narrativa que contemplasse aqueles espaços e aquelas arquiteturas que tem na inadequação do indivíduo com a cidade o cerne de sua expressão criativa? Este sim parece ser este um viés ainda pouco explorado na crítica em arquitetura.

Metrópole e vida mental

Se voltarmos às outras disciplinas que tem o urbano como campo de estudo, verificamos que sobre este questionamento há vasto material a ser considerado. Nas ciências sociais, Georg Simmel discorre sobre a necessidade do homem em estabelecer sua individualidade e autonomia face às dinâmicas da vida moderna. Em seu texto “A metrópole e a vida mental”, de 1902, o autor observa que a partir do século 18 há uma crescente demanda pela especialização funcional do homem e do trabalho, o que corrobora para a sua dependência em relação às atividades de outros grupos da sociedade, igualmente especializados. Tal fenômeno, adverte, interfere sobremaneira na personalidade e base psicológica dos indivíduos, que “resistem a serem nivelados e uniformizados por um mecanismo sociotecnológico” (3), Investigar como e de que forma ocorre esta acomodação da personalidade individual frente às forças externas, leva o autor a conjecturar sobre a estrutura mental e o psiquismo do homem metropolitano.

A perda de referências cotidianas nas cidades industriais e a não familiaridade com as novas distâncias, com os grandes fluxos e com a multidão das metrópoles são fenômenos que, segundo o autor, interferem também no âmbito das relações humanas. Isolamento, alienação e estranhamento passam a ser descritos e estudados como reações intrinsecamente relacionadas a este novo cenário urbano. Simmel observa que a base psicológica do tipo metropolitano “consiste na intensificação dos estímulos nervosos, que resulta da alteração brusca e ininterrupta entre estímulos interiores e exteriores” (4). O espaço, por sua vez, é a dimensão central para a configuração das relações sociais, e é no espaço urbano onde estas patologias e sintomas são personificados.

Resulta revelador que a liberdade, a segurança e a profusão de estímulos que a vida na cidade moderna propicia, sejam estas também as causas dos distúrbios psicológicos muitas vezes relatados. O contato direto com a multidão exacerba sentimentos até então não revelados. “A pessoa em nenhum lugar se sente tão solitária e perdida como na multidão metropolitana. Pois aqui, como em outra parte, não é absolutamente necessário que a liberdade do homem se reflita em sua vida emocional como conforto” (5). De fato, encontraremos não só nos escritos de Georg Simmel semelhantes questões, como também em vários autores contemporâneos seus que se debruçam sobre certa “incomodidade” do indivíduo em relação à fulgurante vida metropolitana. Não por acaso datam deste momento singular da história urbana o surgimento dos estudos psicanalíticos.

Ilustrativo deste estado de espírito é o conto de Edgar Alan Poe, “O homem da multidão”, de 1840. Neste, é sugestiva a inquietação do personagem frente a um transeunte que foge dos padrões previsíveis de conduta e enquadramento social.

No conto de Poe o narrador senta-se em um final de tarde à janela de um café de Londres – à época a cidade mais populosa do mundo –, por onde era possível observar uma das mais movimentadas avenidas da cidade. Após um longo tempo de contemplação da agitada cena exterior, em que se dedica a decifrar os distintos grupos de habitantes por seus modos, vestimentas e gestuais específicos (6), lhe chama a atenção o rosto de um velho que rapidamente absorveu toda a sua curiosidade, pois segundo ele, “nunca tinha visto nada nem de longe parecido com esta expressão”. Rapidamente nosso narrador decide seguir o estranho que se embrenha na multidão, cuidando para não ser por ele notado. Seu trajeto se estende ininterruptamente noite adentro pelos mais variados cantos da cidade, repetindo percursos, indo e vindo sem uma lógica aparente. Amanhece o dia e a perseguição ao andarilho continua, até que, já ao cair da segunda noite, o autor exausto se posta em frente ao homem desconhecido e o encara. O velho não repara a sua presença e retoma sua caminhada. Por fim, resignado pela incapacidade de desvendar o enigma que o desconhecido lhe suscitou, o narrador sentencia: “Este velho é o modelo e o gênio do crime profundo. Ele se nega a ficar sozinho. Ele é o homem da multidão. Vai ser inútil segui-lo; pois não vou aprender mais nada, nem com ele, nem com seus atos” (7).

O conto de Poe submerge nos fluxos da metrópole e dela extrai uma situação difícil de ser compreendida a um olhar convencional. Muitas são as interpretações possíveis, mas sem dúvida está aí descrita a dualidade que habita cada indivíduo, aquela visível e a outra, que permanece oculta (8). Também esta dualidade existe nos espaços percorridos, ora conhecidos, ora indecifráveis. Ter a multidão como pano de fundo deste enigma nada mais que agrega a esta busca uma inquietação maior acerca deste personagem e das várias sensações, por vezes contraditórias, que este novo cenário urbano desencadeia nos indivíduos que aí habitam.

Este incompreensão se faz evidente também no estudo de Sigmund Freud de 1919, Die Unheimliche. Segundo a concepção original de Freud, “o inquietante (Unheimlich) é aquela espécie de coisa assustadora, que remonta ao que é há muito conhecido, ao bastante familiar” (9). Seu estudo consiste precisamente em examinar sob que circunstâncias aquilo que é considerado familiar se converte em inquietante, estranho, assustador. Esta condição, como busca comprovar, dá-se precisamente quando algo é acrescido a uma situação conhecida, desestabilizando o seu entendimento usual. Também de especial interesse para Freud, após efetuar uma extensa investigação acerca dos mais variados significados e interpretações atribuídas ao termo, é a íntima relação verificada – e não uma suposta oposição – entre os conceitos de Heimlich e Unheimlich.

“Somos lembrados que o termo Heimlich não é unívoco, mas pertence a dois grupos de ideias que, não sendo opostos, são alheios um ao outro: o do que é familiar, aconchegado, e do que é escondido, mantido oculto” (10).

Freud desenvolve esta dualidade identificando mais uma situação em que o inquietante/estranho se manifesta. Por incluir em sua própria etimologia algo não revelado, entende também que o Unheimlich poderia ser atribuído àquilo que deveria permanecer secreto, oculto, mas, que de algum modo, apareceu. Isto é, o Unheimlich está prenhado, necessariamente, do que é conhecido, familiar.

Mal-estar

No longo trecho em que o autor se dedica a esmiuçar a etimologia do termo alemão, suas traduções à distintos idiomas e suas mais variadas interpretações filosóficas e linguísticas, há uma de especial interesse, que seria a dimensão do inquietante que provoca mal-estar. Este detalhe é ressaltado por Márcio Seligmann-Silva (2013) no prefácio à edição brasileira de Mal-estar na cultura, quando diz que “um dos sentidos de unheimlich, como o próprio Freud destacou, é justamente o unbehaglich (o que provoca mal-estar)” (11).

De fato, em seu estudo de 1930 Das Unbehagen in der Kultur – traduzido ao inglês a pedido do autor como Civilization and its discontents (12) – a sensação de desamparo, mal-estar, é associada à uma destas possíveis dimensões sugeridas na interpretação do termo Unheimlich. Por ser a cultura (civilização) fonte de sofrimento, diversificam-se os humores e os possíveis escapes para tal situação. A fuga deliberada do indivíduo ao seu mundo interior apresenta-se, em alguns casos, como solução.

“A proteção mais imediata contra o sofrimento que pode resultar das relações humanas é a solidão voluntária, o distanciamento em relação aos outros. Contra o temido mundo externo não é possível defender-se de outra maneira senão por alguma espécie de afastamento” (13).

Mal-estar na cultura destaca o embate entre o desejo de felicidade que guia a estrutura psíquica do homem, e a cultura (Kultur) em que está inserido. A possibilidade de felicidade plena, adverte o autor, poderia ser propiciada apenas em momentos episódicos, enquanto que a infelicidade e o sofrimento seriam, estes sim, os sentimentos mais facilmente produzidos em sua experiência na cultura. Segundo Freud, este sofrimento – mal-estar – pode ser experenciado em três níveis: a partir do próprio corpo; a partir do mundo externo; e a partir das relações com outros indivíduos. A fuga, busca por um “abrigo momentâneo”, seja este físico ou abstrato, é reação a este sentimento de desestabilização.

Claro está que a civilização, ou Kultur, tem na modernidade o cerne da pesquisa empreendida por Freud, no embate do sujeito com esta nova condição – social, econômica, filosófica, e também urbana.

“Os discursos forjados por Freud para enunciar a questão da subjetividade no campo da civilização, no sentido universalista desta última, foram na verdade comentários tecidos sobre a condição do sujeito na modernidade. [...] é preciso explicitar que as interpretações freudianas sobre os impasses do sujeito no mundo da civilização constituem, de fato e de direito, comentários críticos sobre a inscrição do sujeito na modernidade” (14).

O tema específico do mal-estar freudiano, amplamente debatido no métier da psicanálise, também foi central para amparar estudos relativamente recentes no campo da filosofia. Mal-estar na modernidade (15) de Sérgio Paulo Rouanet, e O mal-estar da pós-modernidade (16) de Zygmunt Bauman o utilizam como chaves interpretativas para os desacertos tanto da modernidade – entendida como continuidade do Iluminismo – como da pós-modernidade, em sua essência crítica a este “projeto civilizatório” que advoga Rouanet. Bauman, entretanto, adverte que a transição da condição moderna para a pós-moderna não implica em uma supressão deste estado de ânimo. Ao contrário, subsiste em ambas as condições.

“Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança individual pequena demais” (17).

Em sua tradução Behagen remete a sentir-se protegido, abrigado. Unbehagen, portanto, compreende a dimensão psicológica do desamparo. Em outra interpretação do termo alemão, Christian Dunker corrobora a ideia de perda de abrigo. O adjetivo behagen, diz o autor, remete a “agradável”, e o substantivo Hag, que lhe dá origem, significa “clareira”. Assim Unbehagen “é essa ausência de lugar ou essa suspensão da possibilidade de escansão no ser, a impossibilidade de “uma clareira” no caminhar pela floresta da vida” (18). A situação na qual o individuo se vê subtraído deste seu espaço está na essência desta interpretação:

“O problema para traduzir Unbehagen é encontrar uma palavra que responda tanto à série do desprazer-insatisfação quanto à série do infortúnio-infelicidade, de tal forma que contenha a experiência do mundo como espaço, lugar ou posição. O mal-estar não é apenas uma sensação desagradável ou um destino circunstancial, mas o sentimento existencial de perda de lugar, a experiência real de estar fora de lugar” (19).

Tanto sob a interpretação de Seligmann-Silva quanto de Christian Dunker, a ideia freudiana de mal-estar reflete uma condição mental que dá margem ao entendimento mais amplo de desabrigo propriamente físico, em relação à civilização, ao entorno urbano e à metrópole. Também subentende uma configuração espacial desprovida de conforto, de amparo, aqui definido como proteção, refúgio, e também abrigo. Esta relação que tem no espaço urbano da metrópole seu ponto nevrálgico revela-se instigante, o que nos leva a explorar como este mal-estar poderia ser estudado desde a lente da arquitetura.

Mal-estar e arquitetura

A definição da arquitetura foi inicialmente estabelecida pela tríade vitruviana utilitas, firmitas e venustas. Na tradução portuguesa do tratado original, firmitas é associada aos atributos de “solidez, firmeza, consistência e robustez”; utilitas à “utilidade, uso, funcionalidade, proveito e vantagem”; e venustas à “beleza, elegância e estética” (20). Françoise Choay (21), por sua vez, entende que a tríade estabelecida por Leon Battista Alberti – necessitas, commoditas e voluptas, traduzidos ao português como necessidade, comodidade e prazer – desenvolve e contempla na totalidade os conceitos lançados por Vitruvio (22).

Destes três conceitos, utilitas, posteriormente redefinido por Alberti como commoditas, é o que mais claramente expressa o caráter de abrigo e de acolhimento. Conforto, amparo, sossego são atributos inerentes à ideia do habitar. Nas últimas décadas, a estes atributos somou-se a noção de sustentabilidade, e a formulação de variados estudos destinados a aferir a qualidade e o desempenho de edifícios e projetos urbanos. Selos de certificação, índices de desempenho energético, programas de otimização de espaços e custos parecem ter quantificado o viés ontológico dos conceitos originários.

Se utilitas e commoditas têm a ver com a adequação do ambiente, seu habitar deve traduzir qualidade, amparo e bem-estar. De fato, arquitetos são treinados para projetar edifícios seguros, confortáveis, limpos. Uma normativa de comodidade e adequação nas quais manter os ambientes em uma zona de neutra normalidade. No entanto há casos em que essas garantias produzem o exato oposto da indiferença. Algumas pessoas, postas na indesejada posição de exiladas, desalojadas, migrantes reagem com inusitada poética. Outros mesmo desejam trocar o pequeno mundo de certezas por aventuras verdadeiras, capazes de insuspeitáveis descobertas internas.

O que aconteceria se pensarmos desde o outro extremo destes conceitos tradicionais? Existe uma ideia de arquitetura derivada essencialmente do desamparo, da incomodidade e do desassossego? É possível esboçar uma narrativa em arquitetura tendo o mal-estar como chave interpretativa? (23).

A apropriação de um conceito freudiano para o campo da arquitetura não é de todo novidade. Esta já foi efetuada por Anthony Vidler em seu livro The architectural uncanny. Essays in the modern unhomely (24), um detalhado estudo em que o autor retoma o escrito de Sigmund Freud acerca do termo Unheimlich para jogar luz sobre a produção arquitetônica de finais do século 20. O argumento atrelado a este resgate tem sua razão de ser. Existe em Vidler a intenção de deslocar a síntese freudiana centrada no sujeito e nas teorias baseadas na fenomenologia e na psicanálise para o território da arquitetura, do universo dos objetos. Tal deslocamento é avalizado pela analogia estabelecida entre o conceito original e a ideia de unhomely.

“A arquitetura revela a estrutura profunda do inquietante (uncanny) de um modo mais que analógico, demonstrando um deslizamento perturbador entre o que parece familiar (homely) e o que definitivamente é estranhamente familiar (unhomely). Tal como articulado teoricamente por Freud, o estranho ou Unheimlich está enraizado pela etimologia e uso no âmbito do privado, doméstico, ou Heimlich, abrindo-se assim a problemas de identidade pessoal, do outro, do corpo e sua ausência: daí sua força como chave para interpretar as relações entre a psique e a habitação, o corpo e a casa, o indivíduo e a metrópole” (25).

Desde o ponto de vista da teoria da arquitetura e do pensamento sobre o urbano sua ideia de uncanny oferece uma chave interpretativa que permite escapar da imediatez dos psicologismos centrados no sujeito/usuário, sugerindo a direção contrária. Para o autor, cabe decifrar o objeto arquitetônico e o espaço urbano como representações materiais por excelência de uma condição de estranhamento do homem frente à civilização.

“O estranho não é uma propriedade do espaço em si nem pode ser provocado por nenhuma conformação espacial determinada; ele é, na sua dimensão estética, uma representação de um estado mental de projeção que precisamente suprime os limites do real e do irreal, a fim de provocar uma ambiguidade perturbadora” (26).

A relação direta que Vidler estabelece entre o uncanny e a ideia de unhomely – traduzido ao português como estranhamente familiar – não contempla as inúmeras facetas descritas por Freud, embora ambos termos constem como possível tradução literal da palavra Unheimlich. Esta interpretação é repetida por Kate Nesbitt quando da apresentação do artigo de Vidler, Theorizing the Unhomely, em seu livro Uma nova agenda para a arquitetura (27). Parece ser então que a questão que aqui perseguimos – do desamparo, do mal-estar – contenha também algo da ideia de unhomely, mas não necessariamente a faceta do estranho e do assustador e sim, uma noção de perda de proteção, de desabrigo.

Vale observar que o livro Mal-estar na Cultura de Freud não é central para Vidler nestes seus estudos (28). Entretanto, a aproximação que aqui é feita, visa, sobretudo, encontrar uma tradução possível de um discurso psicanalítico para uma narrativa em arquitetura, que prescinda da subjetivação fenomenológica, e remeta essencialmente a singularidade de determinados espaços e objetos. Trata-se, portanto, de estabelecer o mal-estar – ou o desamparo –, como conceito balizador de uma interpretação da arquitetura, tal como Vidler já efetuou com o conceito freudiano de inquietante (em inglês: uncanny; em alemão: Unheimlich). Nesta linha de raciocínio, como detectar aquelas arquiteturas e espaços urbanos pensados desde a lente do mal-estar?

Se retomarmos o cerne da ideia de mal-estar em Freud, isto é “os impasses do sujeito em sua inscrição na modernidade”, é possível pontuar um momento da crítica arquitetônica em que estas inquietações foram traduzidas em pautas de projeto. No que diz respeito especificamente a uma arquitetura pensada sob a égide do desamparo, do desabrigo e da incomodidade, resulta difícil não recorrer àquele período em que o pensamento arquitetônico se volta para a especificidade da disciplina, relacionada, sobretudo, às suas possibilidades formais. Sob o mote da “autonomia da arquitetura” identifica-se um conjunto de autores dedicados a pensar a disciplina em sua essência filosófica, como representação de mundos, e não necessariamente como arte da construção ou como profissão dedicada a projetar o bem-estar. E isto significa, em última análise, pautar um discurso que prescinda, ou ao menos desafie, os atributos consagrados por Vitruvio e Alberti.

Ainda que tal empreitada soe a princípio insólita, esta responde a uma condição histórica específica. Sobre o tema, Michael Hays esclarece: “não cabe aqui perguntar se a arquitetura é autônoma, ou se esta poderia efetivamente sê-la, mas sim perguntar que tipo de situação autorizaria a arquitetura a se preocupar sobre si mesma neste grau” (29).

Trata-se de um período histórico no qual a arquitetura se alinha a outras disciplinas que igualmente se voltam para a linguagem como forma de autoconhecimento. A chamada “virada linguística” parte, como é sabido, de uma profunda crítica à subjetivação do saber, e aos imediatismos dos discursos de cunho existencial e fenomenológico. Como que traduzindo uma exaustão frente a estes discursos, também em arquitetura é reivindicado um retorno à sua substantividade como disciplina. Uma “autonomia disciplinar” em contraposição à narrativa prescritiva do movimento moderno em arquitetura, que por sua vez deveria estar dissociada de qualquer condicionante – político, ideológico, funcional, programático – alheio ao mundo das formas. A arquitetura, tal como a linguagem, deveria ser uma estrutura passível de ser pensada somente a partir das inúmeras relações – identidade e diferença – a serem estabelecidas entre seus elementos.

“Vanguarda tardia” ou “Arquitetura na Era do Discurso” é a denominação dada por Michael Hays para este período singular da história, em que certos modos de praticar a arquitetura ainda possuíam aspirações filosóficas. Sua análise centra-se especialmente nas obras de quatro arquitetos que formalizam estas questões de modo mais contundente.

“A expandida década de 1970 (que incluo os anos de 1966 a 1983) presenciou uma busca pelas unidades mais básicas da arquitetura e suas lógicas combinatórias. Os fragmentos tipológicos singulares de Aldo Rossi; os planos, malhas e grelhas de Peter Eisenman; as aventuras nômades de John Hejduk e os segmentos cinegramáticos de Bernard Tschumi – são todos entendidos como entidades e eventos fundamentais da arquitetura que não podem ser reduzidos ou traduzidos em outras formas de experiência ou conhecimento” (30).

Trata-se, portanto, de uma ideia de arquitetura destituída de todos seus condicionantes externos, e, sobretudo, dedicada a evidenciar as contradições de um momento anterior, no caso, a narrativa legitimadora do movimento moderno. Tanto em Eisenman, como em Rossi, Tschumi ou Hejduk a arquitetura converte-se em língua morta, e a produção destes arquitetos pode ser entendida como a resignação a esta perda, agregando novos códigos e significados, ainda que provisórios, às formas (significantes) que compõem o repertório disciplinar – e milenar – da arquitetura. Uma atitude, segundo Hays, que a arquitetura assume ao confrontar-se com sua própria dissolução.

É um período no qual são elaboradas propostas que escapam a um entendimento convencional. Neste sentido, são paradigmáticos os desenhos de Rossi da série Venezia analoga, com o errante Teatro del Mondo, e o projeto do cemitério de Modena, todos estes ao longo da década de 1970; os tempos reais e fictícios sobrepostos nas cidades de escavação artificial – Veneza, Berlim, La Villette – de Eisenman; as Máscaras – Riga, Berlim, Vladivostok – de Hejduk; e a arquitetura como evento – Manhattan, La Villette – de Bernard Tschumi.

Parece ser então que a noção de mal-estar na arquitetura aqui perseguida poderia ter nestes autores um vasto campo de investigação. Por serem protagonistas de uma crítica já consolidada, caberia agora investigar em que medida e sob que aspectos suas propostas são movidas pelo desafio à ideia de commoditas albertiana. Um instigante caminho a percorrer.

notas

1
Cf. COLQUHOUN, Alan. Conceitos de espaço urbano no século 20. Modernidade e tradição clássica. Ensaios sobre arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2004, p. 209-220.

2
Idem, ibidem. Op. cit., p. 212

3
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In VELHO, Otávio. G. (Org.) O fenômeno urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1973, p. 11.

4
Idem, ibidem, p. 12.

5
Idem, ibidem, p. 20.

6
“Típicos indivíduos metropolitanos: fidalgos, negociantes, advogados, agiotas, comerciantes”; “altos funcionários de firmas sérias”; “pequenos funcionários de estabelecimentos chiques”; “indivíduos de garbosa aparência certamente pertencentes à categoria de batedores de carteira”; “jogadores”; “camelôs judeus”; “mendigos profissionais”, “mulheres da vida”, e tantos outros. POE, Edgar.A. O homem da multidão. Histórias extraordinárias. São Paulo, Companhia das Letras, 2017.

7
Idem, ibidem.

8
Também ilustrativa nesta linha narrativa é o renomado conto O médico e o mostro, de Robert Louis Stevenson (1885).

9
FREUD, Sigmund [1919]. O Inquietante. SOUZA, Paulo César de (Org.). Sigmund Freud. Obras Completas. Vol. 14. São Paulo, Companhia das Letras, 2010, p. 249.

10
Idem, ibidem, p. 254.

11
SELIGMANN-SILVA, Márcio. A cultura ou a sublime guerra entre amor e morte. Prólogo. In FREUD, Sigmund. O mal-estar na cultura. Porto Alegre, L&PM, 2013, p. 25. Na versão brasileira do texto de 1919 o termo unbehaglich foi traduzido também como “incômodo”.

12
Traduzido ao português como “O mal-estar na civilização” e também “O mal-estar na cultura”.

13
FREUD, Sigmund [1919]. Op. cit., p. 65.

14
BIRMAN, Joel. O mal-estar na modernidade e a psicanálise: a psicanálise à prova do social. Physis: Revista Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, n. 15 [suplemento], 2005, p. 204.

15
ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade. São Paulo, Companhia das Letras,1993.

16
BAUMAN, Zygmunt. O mal-estar da pós-modernidade. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1998.

17
Idem, ibidem, p. 10

18
DUNKER, Christian. Mal-estar, sofrimento e sintoma. Uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo, Boitempo, 2016, p. 192.

19
Idem, ibidem, p. 196.

20
Cf. Vitrúvio. Tratado de Arquitetura. Livro I, Capítulo 3. São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 81-82.

21
CHOAY, Françoise. A Regra e o Modelo. São Paulo, Perspectiva, 1980.

22
Cf. Françoise Choay. Op. cit., p.127-135.

23
Agradeço aqui a verve inspiradora, instigante e desafiadora de Ignasi de Solà-Morales em seu texto Arquitectura Liquida, de 1997.

24
VIDLER, Anthony. The Architectural Uncanny. Essays in the Modern Unhomely. Cambridge, MIT Press, 1992.

25
Idem, ibidem, p. ix-x.

26
Idem, ibidem, p. 11.

27
Cf. NESBITT, Kate. Uma nova agenda para a arquitetura. São Paulo, Cosac Naify, 2006, p. 617-618.

28
No texto “Daniel Libeskind’s Jewish museum in Berlin: the uncanny arts of memorial architecture” (2000) o crítico literário James Young estabelece uma ponte entre o conceito freudiano do uncanny e a arquitetura, utilizando-se da síntese efetuada por Anthony Vidler. A ideia de mal-estar, no entanto, também não é aí estudada.

29
HAYS, K. Michael. The oppositions between autonomy and history. Oppositions Reader. Nova York, Princeton Architectural Press, 1998. p. ix.

30
Idem, ibídem, p. 2.

sobre a autora

Laís Bronstein é arquiteta e urbanista (FAU UFRJ, 1987); mestre (FAU USP, 1996) e doutora (ETSAB-UPC, 2002). Professora do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da PUC Rio e colaboradora do Programa de Pós-graduação em Arquitetura da UFRJ. Co-organizadora da série Leituras em Teoria da Arquitetura [vol.1 Conceitos – 2009; vol. 2 Textos – 2010; vol. 3 Obras – 2011; vol. 4 Autores – 2014] (Viana Mosley; Rio Books).

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