A questão fundiária, a localização e as disputas socioespaciais pelo acesso à terra urbanizada são temas essenciais para a compreensão do processo de produção do espaço urbano. Essas disputas se acirram quando se trata de porções do solo em áreas centrais, com infraestrutura urbana qualificada e com alto valor imobiliário, sobretudo em terras públicas.
O processo de urbanização no Brasil se intensificou a partir do século 18 e desencadeou o aumento da demanda da população por um pedaço de terra, tanto para residência quanto para serviços, comércio, trabalho, equipamentos urbanos e espaços públicos (1). No entanto, o atendimento à demanda por terra urbanizada no Brasil se dá, historicamente, de maneira desigual, conforme a camada social e de renda da população.
Baseamo-nos na ideia defendida por Henri Lefebvre, de que o espaço é socialmente produzido. Segundo o autor, o espaço social é resultado de um processo complexo que envolve diversos aspectos práticos e teóricos, como a percepção, a experiência e a localização (2).
A produção e consumo de localizações privilegiadas – aquelas com mais vantagens que desvantagens, bem-dotadas de infraestrutura urbana (rede de esgoto, drenagem, abastecimento de água, energia, pavimentação), equipamentos, comércio e serviços e que geram menores tempos de deslocamento entre uma e outra – faz da cidade uma arena de conflitos entre as classes sociais. Evidencia-se que a localização, resultante do processo de produção desigual da cidade, irá gerar diferentes valores de imóveis, em função do preço da terra.
A disputa pela terra revela o fenômeno da segregação socioespacial, descrito por Flávio Villaça como um processo segundo o qual diferentes classes ou camadas sociais tendem a se concentrar cada vez mais em diferentes regiões gerais ou conjuntos de bairros da metrópole, visando maximizar as vantagens e minimizar as desvantagens locacionais (3). Maria Inês Sugai explicita que a segregação urbana não apenas expõe as desigualdades espaciais, mas dá concretude ao conflito social, revela a existência da disputa que ocorre entre as classes sociais no processo de produção do espaço urbano (4).
Sob a perspectiva da cidade como produto do trabalho humano, Villaça afirma que mais importante que as edificações, ruas, praças e fábricas, a localização é o produto mais visado nas cidades (5). Contudo,
“A terra localização (desdobramento dos conceitos de Marx de terre matière e terre capital) é um produto diferenciado, e possui algumas particularidades [...]: a) irreprodutibilidade – diferentemente de outros produtos do trabalho, como edifícios, celulares, automóveis e outros que podem ser reproduzidos em grandes quantidades, uma localização é única e não pode ser reproduzida. Cada localização, com suas especificidades, possui vantagens e desvantagens sobre outra, com destaque para o fator tempo de deslocamento despendido para alcançar outras localizações; b) não pode circular entre os consumidores, como outros produtos. [...] São os consumidores que circulam por ela; e [...] c) Indispensabilidade – o ser humano consegue viver sem produtos como celulares, computadores, automóveis, mas não sem um pedaço de terra” (6).
A partir da questão da localização e distribuição social no território, destaca-se a importância das áreas urbanas centrais, por sua localização privilegiada, já que essas áreas oferecem maior numero empregos, serviços públicos, infraestrutura urbana, transporte público e menor tempo de deslocamento. Devido à essa condição privilegiada, as áreas centrais são alvo de interesse não apenas das camadas de renda média e alta, mas também da população de baixa renda, em busca de melhor qualidade de vida, mais cidadania, o direito de usufruir da cidade, que é produzida socialmente.
Os conflitos entre diferentes classes sociais ficam mais evidentes quando as terras em disputa estão em áreas centrais, como é o caso da Vila Santa Rosa, em Florianópolis. A inequidade não se restringe à renda da população que ocupa esse território, mas se expressa também na questão fundiária: a porção apropriada pelo capital imobiliário é regularizada, enquanto o assentamento informal da Vila permanece sem regularização fundiária. Além disso, as condições urbanísticas da área se diferenciam de acordo com o tipo de ocupação.
A produção do espaço urbano, investimentos públicos e a segregação socioespacial: uma breve apresentação teórica
O espaço urbano apresenta alto grau de complexidade e, como ponto de partida, utiliza-se aqui a abordagem feita por Roberto Lobato Corrêa de que “o espaço urbano capitalista é um produto social, resultado de ações acumuladas através do tempo, e engendradas por agentes que produzem e consomem espaço” (7). O autor cita como principais agentes dessa produção: os proprietários dos meios de produção (especialmente industriais); proprietários fundiários; promotores imobiliários; Estado e grupos sociais excluídos.
Destacam-se as ações do Estado, em suas três instâncias -municipal, estadual e federal- e os promotores imobiliários na definição da configuração espacial das cidades. O Estado dispõe da legislação – como leis de Uso e Ocupação do Solo e Plano Diretor – e da decisão sobre investimentos públicos. Ambos instrumentos são fundamentais e determinantes para a produção do espaço.
Maricato declara que o Estado, por meio dos instrumentos disponíveis – investimento público e ação reguladora- garante a estruturação de um mercado imobiliário capitalista para uma parcela restrita da população, ao passo que, para a maioria, restam as opções de favelas, dos cortiços ou do loteamento ilegal, na periferia sem urbanização, de todas as metrópoles (8). Nota-se a frequente ação do Estado de acordo com interesses das elites ligadas ao mercado imobiliário, o que leva à percepção explicitada por Ricardo Farret de que o “Estado não é árbitro neutro e passivo na produção do espaço urbano, mas sim um decisivo agente” (9).
A execução de investimentos públicos para a implantação de infraestrutura necessária para a urbanização -especialmente infraestrutura de esgotamento sanitário, distribuição de água e energia, pavimentação, drenagem- é essencial para as cidades. No entanto existem disputas entre as distintas camadas sociais por esses investimentos. Para compreender o impacto dos investimentos públicos na produção do espaço urbano é necessário conhecer quais serão realizados e, sobretudo, sua localização.
O fator locacional é de extrema importância já que determina os grupos que serão beneficiados por esses investimentos, como elucidam David Vetter e Rosa Massena (10). Segundo os autores, a localização de obras de grande porte em infraestrutura com verbas do Estado gera impactos sobre o preço da terra e da área do entorno – já que a terra urbanizada é vista como um grande pretexto de mercantilização a preço alto pelo mercado imobiliário, que visa atingir as camadas da população dispostas a pagar por essas “benesses”. Dessa forma caminha a consolidação e o reforço da segregação residencial espacial segundo grupos de rendimento nas cidades. Os autores concluem que os beneficiados pelos investimentos do Estado em infraestrutura são justamente os proprietários de terra próximos a esses investimentos e os agentes e incorporadores imobiliários, que alcançarão lucros por vender terras urbanizadas e dotadas de uma estrutura paga com dinheiro público. É comum a ocorrência do ciclo de captação de investimentos públicos – valorização imobiliária em áreas urbanas centrais.
A dinâmica de produção do espaço urbano pode ser entendida através de um ciclo que envolve as elites – detentoras tanto do poder político quanto econômico- a sua capacidade de conquistar investimentos públicos provenientes do Estado para os locais da cidade de seu interesse para implantação de infraestrutura (rede de esgoto, coleta de lixo, drenagem, abastecimento de água, energia, pavimentação, equipamentos públicos) em suas áreas de residência, trabalho e lazer, e a consequente valorização imobiliária naquela região de interesse – o que garante altos valores tanto da terra quanto dos imóveis e a permanência das camadas de alta renda, dispostas a pagar os altos preços colocados pelo mercado imobiliário.
Villaça afirma que “as camadas de mais alta renda controlam a produção do espaço urbano por meio do controle de três mecanismos: um de natureza econômica – o mercado, no caso, fundamentalmente o mercado imobiliário; outro de natureza política: o controle do Estado, e, finalmente, através da ideologia” (11). Nesse processo, a classe dominante ao mesmo tempo em que escolhe se concentrar em determinada(s) região(ões) da cidade, impõe que camadas de baixa renda se concentrem em regiões distintas – e em geral distantes – daquelas de seu interesse. Isso acontece já que a população pobre não possui recursos financeiros para pagar pela terra, pelo imóvel e por não conseguir adequar o padrão de suas construções – em geral pequenas e precárias- à legislação urbana vigente nas áreas nobres da cidade.
Com relação à localização habitacional da população de baixa renda nas cidades, há basicamente duas situações mais comuns: fixação de moradia em áreas periféricas, onde os preços da terra são mais baixos e com infraestrutura urbana inexistente/ precária; e a invasão de áreas ambiental e geologicamente frágeis mais próximas aos centros das cidades. Maricato explicita: “Sem qualquer alternativa legal, grande parte da população urbana invade terra para morar. As terras que não interessam ao mercado imobiliário e são ocupadas pela população de baixa renda são exatamente as áreas de ecossistema frágil, sobre as quais incide a legislação de proteção ambiental” (12). Essa configuração urbana altamente segregada socioespacialmente é comum nas cidades brasileiras, e Florianópolis não é uma exceção.
Produção do espaço urbano de Florianópolis SC
Para compreender o arranjo socioespacial de Florianópolis é necessário ir além da visão da capital catarinense como “Ilha da Magia”, que proporciona alta qualidade de vida, um dos melhores lugares para se viver no Brasil; é preciso entender que a “cidade linda” existe paralelamente –e graças- à uma outra parte da cidade, normalmente escondida dos holofotes, repleta de irregularidades e precariedades.
A área conturbada de Florianópolis é composta pelos municípios de Florianópolis (porção insular e continental), Palhoça, São José e Biguaçu. A periferização residencial das camadas mais pobres da população começou a se tornar mais comum nos anos 1950 e se intensificou na década de 1960. Ocupações irregulares nas franjas entre os municípios de Florianópolis e São José se tornavam cada vez mais frequentes e a situação urbanística dessas áreas cada vez mais precárias (13).
Quanto às mudanças na dinâmica urbana das cidades do entorno de Florianópolis destaca-se um processo histórico de migração de população de baixa renda vinda principalmente do interior de Santa Catarina, sobretudo a partir de 1960. Na década de 1960, a taxa de crescimento populacional de Florianópolis era de 3,12% ao ano, enquanto que a de São José era aproximadamente dobro- 6,38% ao ano (14).
O crescimento populacional gera aumento na demanda por serviços, infraestrutura e empregos. Parte da população que reside nos municípios próximos trabalha em Florianópolis ou outras cidades vizinhas e necessita se deslocar todos os dias de um município a outro, gerando impactos na mobilidade. Os deslocamentos são realizados majoritariamente por ônibus e os efeitos desses deslocamentos são expressivos não apenas no trânsito intra e intermunicipal, mas também para a qualidade de vida da população que passa longas horas de seu dia no transporte coletivo e gasta considerável parte de seu salário com as passagens.
Um capítulo de grande importância para a configuração do espaço urbano de Florianópolis foi a elaboração do primeiro Plano Diretor – PD, que “seria o instrumento que poderia antecipar, definir e legitimar as ações do Estado no espaço urbano” (15). Elaborado entre 1952 e 1954 e aprovado em 1955, estabeleceu propostas para uso e ocupação das áreas insular e continental de Florianópolis. Das orientações presentes no Plano Diretor, as mais visadas pelos representantes do mercado imobiliário foram a “ocupação dos vazios urbanos centrais e as intervenções viárias, como a Avenida Beira Mar Norte, que valorizariam a área norte da península” – região da cidade alvo do desenvolvimento do turismo, habitação e veraneio das camadas de alta renda.
Dentre as propostas do PD, evidencia-se o grande número de intervenções viárias, das quais destaca-se a implantação da Avenida Governador Irineu Bornhausen, popularmente conhecida como Avenida Beira Mar Norte, durante os anos 1960, através do governo estadual, com o Departamento de Estradas de Rodagem do Estado, o DER SC. Foram inauguradas também a Avenida Othon Gama D´Eça e Avenida Prefeito Osmar Cunha, em 1958, evidenciando o forte caráter viário do Plano Diretor e a intenção de aumentar a acessibilidade (primordialmente via automóvel) e priorizar a ocupação no eixo norte-sul- centro da Ilha, de interesse das elites locais.
Nota-se que os projetos viários ganharam força, especialmente em meados dos anos 1960 e 1970, período do regime militar, em que o planejamento, o tecnicismo, a expansão da economia através da entrada massiva de capital externo e o rodoviarismo estavam em voga no discurso nacional. Em Florianópolis não foi diferente e, entre 1969 e 1971 foi elaborado o Plano de Desenvolvimento Integrado da Grande Florianópolis, que abrangeu 21 municípios. O plano “propunha uma reorganização da estrutura viária intraurbana e interurbana da área conurbada, parte da política de consolidação do transporte rodoviário no Brasil” (16).
Por trás dos planos rodoviaristas estavam o anseio de dinamização da economia e incentivo ao uso dos automóveis – também ligado à questão econômica de crescimento das indústrias automobilísticas. As obras viárias contaram com numerosos recursos financeiros do Estado para a sua execução. Destaca-se ainda o plano para construção da Via de Contorno Norte Ilha, e o interesse da elite ligada aos setores imobiliários, segundo a lógica da expansão de Florianópolis em direção ao norte da Ilha para exploração do potencial turístico dos balneários do norte e localização preferencial para habitação das camadas de alta renda.
Equipamentos e empresas estatais foram alocados na região nordeste-leste da Ilha, em áreas próximas aos investimentos públicos mencionados: o campus da Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC, cujas primeiras obras começaram a ser concluídas em 1965, Eletrosul (1978), Empasc (1977), Telesc (1976), sede do Crea SC (1978), Secretaria do Estado da Saúde (Agronômica), Celesc – entre 1988/90, além da Udesc, Centro Integrado de Cultura – CIC na década de 1980. A concentração desses equipamentos públicos na área em questão –incluindo a transferência de algumas dessas sedes para a área-, os investimentos estatais em infraestrutura e a permissividade na legislação na época foram importantes fatores de incentivo ao desenvolvimento imobiliário naquela parte da cidade. Nesse sentido, “a acessibilidade criada pela Via de Contorno Norte garantiu o processo de expansão e ocupação urbana e de valorização imobiliária” (17).
O fenômeno da segregação socioespacial na área conurbada de Florianópolis pode ser detectado a partir da distribuição espacial da população por extremos de renda. As regiões de pobreza – ocupadas pela população com renda familiar abaixo de três salários mínimos- se concentram na porção continental, na periferia do município de Florianópolis. Há ainda pontos na área central de Florianópolis. Em 2004, por exemplo, estavam registradas dezesseis comunidades situadas na base e encostas do Morro da Cruz (18). O assentamento Vila Santa Rosa, que será apresentada como estudo de caso em seguida, apesar de não estar localizado no Maciço Central, se encontra nas suas proximidades.
Destaca-se a presença de áreas de riqueza, ocupadas pelas elites econômicas, na área central de Florianópolis (ao longo da Avenida Beira Mar Norte) e ainda no extremo norte (balneários voltados para interesses turísticos de alto padrão como Jurerê, Canasvieiras e Praia Brava). Essas regiões receberam investimentos públicos em infraestrutura e atração de equipamentos e serviços urbanos, como apresentado anteriormente, e que se configuraram como frentes de expansão do mercado imobiliário voltado para as classes de renda mais elevada.
O caso da Vila Santa Rosa
A Vila Santa Rosa chama a atenção por ser uma área de concentração de população de baixa renda localizada em uma região nobre na área central da ilha de Florianópolis. A área vem passando historicamente por processos de privatização e supervalorização. Situa-se no bairro Agronômica, em terrenos de Marinha, pertencentes à União.
De acordo com moradores, as primeiras casas da Vila Santa Rosa começaram a ser construídas por volta de 1977, sobre os resquícios de manguezal, resultado do aterramento que possibilitou a construção da Avenida Beira Mar Norte. Ainda segundo relatos, as ruas eram de terra, o que resultava na formação de barro nos períodos de chuva- condição que, ainda de acordo com moradores, perdurou por alguns anos, pelo menos até meados dos anos 1990. De acordo com uma moradora da Vila Santa Rosa, desde 1991, as casas do assentamento consistiam majoritariamente em barracos de madeira e alguns de alvenaria, de padrão construtivo baixo e médio/baixo.
Também a partir das décadas de 1970 e 1980, as áreas adjacentes, residuais do aterro, começaram a ser ocupadas pelo setor comercial formal, com edificações ainda simples, de madeira. O padrão construtivo desses imóveis comerciais foi passando por melhorias ao longo dos anos. Mais tarde, a área passou a ser ocupada também por empreendimentos imobiliários de alto padrão construtivo, a partir da apropriação de imóveis na faixa contígua à avenida Beira Mar. Atualmente, boa parte destes imóveis são ocupados por órgãos públicos, institucionais e de serviços, como o Ministério Público Federal, Caixa Econômica Federal, Polícia Federal, Ordem dos Advogados do Brasil – OAB SC, escritórios comerciais, dentre outros usos.
Quanto aos investimentos em infraestrutura, em 1993 – ou seja, aproximadamente duas décadas após o início da ocupação da vila – uma pesquisa realizada pelo Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis – IPUF (19), registrou que algumas casas ainda não tinham acesso à água (instalada em 1986) e energia elétrica (instalada em 1987). Já a drenagem era feita apenas por uma vala que captava águas pluviais.
O contraste entre realidades fisicamente tão próximas se evidencia: enquanto terrenos da porção legal e regularizada passavam por valorização e já contavam com redes de drenagem, saneamento, água, energia e pavimentação de vias com acesso facilitado à diversos pontos da cidade, os terrenos da vila Santa Rosa careciam de serviços básicos.
A irregularidade fundiária é acompanhada da falta de segurança jurídica quanto à posse da terra e do imóvel, fazendo com que famílias que vivem nessas condições estejam constantemente expostas ao risco de serem despejadas (20). Elson Pereira afirma que a segregação que leva à irregularidade, também atua como propulsora da segregação que lhe deu origem e como intensificadora de malefícios sociais – violência urbana, discriminação social, habitabilidade precária-, formando um ciclo nefasto e contínuo que só aumenta o abismo social” (21).
O fato de haver equipamentos, serviços, infraestrutura e maior oferta de empregos na região do entorno é um fator crucial para compreender a ocupação da vila Santa Rosa por famílias de baixa renda. Como relatado anteriormente, houve um crescimento no número de famílias de baixa renda nos municípios da Grande Florianópolis (especialmente São José, Biguaçu e Palhoça), crescimento motivado fortemente pela busca por melhores condições de vida e empregos próximos à Florianópolis.
Mais uma vez o fator localização se torna chave para o entendimento das dinâmicas socioespaciais: assim como a população de alta renda busca regiões bem atendidas por serviços urbanos e infraestrutura também é interessante para a população pobre se instalar em áreas com essas condições. Além das facilidades já descritas, é preferencial para habitantes de baixa renda morarem perto do local de trabalho e dotados de equipamentos de saúde, lazer e educação por dependerem largamente de meios de transporte alternativos ao automóvel.
Áreas centrais, como aquela em que se encontra a Vila Santa Rosa, permitem que os moradores se desloquem a pé, de bicicleta ou de ônibus – que em menores distâncias dispensa inúmeras baldeações, reduz os gastos com a compra de passagens de transporte público intermunicipais e diminui as longas horas perdidas nos deslocamentos– em geral bem mais demorados que os mesmos deslocamentos feitos por carro.
Vale ressaltar que no momento inicial da ocupação da Vila Santa Rosa, o valor da terra no local de estudo ainda não era alto, mas a construção da Avenida Beira Mar indicava uma nova frente de expansão imobiliária e a futura valorização da área.
O caso levantado se mostra ainda mais incongruente pelo fato de que alguns imóveis apropriados pelo setor imobiliário obtiveram regularização fundiária (aforamento das terras de Marinha) e foram posteriormente vendidos para órgãos da própria União. Um empreendimento foi construído no local onde originalmente moravam vinte famílias de baixa renda, removidas devido à execução de sentença de reintegração de posse. As famílias que permanecem no local seguem ameaçadas pelo avanço do mercado formal, sem a segurança da posse de suas casas.
Considerações finais
No processo de produção do espaço urbano destaca-se o papel do Estado (especialmente devido à sua ação reguladora e aos investimentos públicos), das elites e do capital imobiliário. O que se observa é a larga reprodução da segregação socioespacial nas cidades brasileiras, marcadas pela separação entre espaços de riqueza e os espaços de pobreza, altamente contrastantes.
A produção desigual do território traz diversas consequências sociais, econômicas e, evidentemente, espaciais. Dentro da última categoria, destacamos o aumento generalizado da informalidade e precariedade habitacional – em contraposição às regiões com infraestrutura, serviços e equipamentos consolidados – e a (re)produção de espaços segregados e de exclusão.
A Vila Santa Rosa apresenta aspectos que a torna emblemática do ponto de vista urbanístico: resultado da apropriação de terras da União por setores excluídos e, posteriormente, sua captura pelas camadas de alta renda. Esse processo envolve a supervalorização fundiária versus a coexistência com a ocupação irregular, de população de baixa renda. Destaca-se a pressão do mercado imobiliário pela apropriação de mais terrenos da comunidade, que perde seu espaço com o passar do tempo.
Considera-se necessário o fomento à discussão acerca da transformação de áreas centrais com potencial para desenvolvimento urbano voltado para a coletividade – de forma especial para a população social e economicamente frágil- em redutos de especulação e valorização imobiliária, dificultando a prática e a regularização de usos como Habitação de Interesse Social – HIS.
notas
NA – Este artigo é uma versão revista do texto originalmente apresentado no Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. MARTINS; Isabela Braga. SUGAI; Maria Inês. Disputas socioespaciais em áreas urbanas centrais valorizadas. O caso da Vila Santa Rosa, Florianópolis/SC. Anais do XVIII Encontro Nacional da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional. Natal, DARQ UFRN, 28 mai. 2019 <https://bit.ly/3lUJ2kx>.
1
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. São Paulo, Hucitec, 1994, p. 21.
2
LEFEBVRE, Henri. The production of space. Cornwall, Blackwell,1991, p. 110.
3
VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-urbano no Brasil. São Paulo, Nobel, 2017, p. 142.
4
SUGAI, Maria Inês. Segregação Silenciosa. Investimentos públicos e distribuição socioespacial na área conurbada de Florianópolis, 1970-2000. Florianópolis, Editora UFSC, 2015.
5
VILLAÇA, Flávio. O território e a dominação social. Revista Margem Esquerda – ensaios marxistas, n. 24, São Paulo, Boitempo Editorial, 2015.
6
Idem, ibidem, p. 32-33.
7
CORREA, Roberto Lobato. O espaço urbano. São Paulo, Ática, 1989.
8
MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo: ilegalidade, desigualdade e violência. São Paulo, Hucitec, 1996.
9
FARRET, Ricardo. Paradigmas da estruturação do espaço residencial intraurbano. In: FARRET, Ricardo (Org.) O Espaço da cidade. Contribuição à análise urbana. São Paulo, Editora Projeto, 1985, p. 64-88.
10
VETTER, David; MASSENA, Rosa. Quem se apropria dos benefícios líquidos dos investimentos do Estado em infra-estrutura? Uma teoria de causação circular. In SILVA, L. (org.). Solo urbano: tópicos sobre o uso da terra. Rio de Janeiro, Zahar, 1981, p. 49-77.
11
VILLAÇA, Flávio. Espaço Intra-urbano no Brasil (op. cit.), p. 335.
12
MARICATO, Ermínia. O impasse da política urbana no Brasil. Petrópolis, Vozes, 2014, p. 185.
13
SUGAI, Maria Inês. As intervenções viárias e as transformações dos espaços urbanos. A Via de Contorno Norte-Ilha. Dissertação de Mestrado. São Paulo, FAU USP, 1994.
14
Idem, ibidem, p. 85.
15
SUGAI, Maria Inês. Segregação Silenciosa. Investimentos públicos e distribuição socioespacial na área conurbada de Florianópolis, 1970-2000 (op. cit.), p. 73.
16
Idem, ibidem, p. 97.
17
Idem, ibidem, p. 182.
18
SAITO, Silvia. Dimensão socioambiental na gestão de risco dos assentamentos precários do Maciço do Morro da Cruz, Florianópolis SC. Tese de Doutorado. Florianópolis, PPGG UFSC, p. 31.
19
IPUF. Perfil áreas carentes: ilha. Florianópolis, Instituto de Planejamento Urbano de Florianópolis, 1993.
20
Em 1993 foi aberto processo de reintegração de posse contra vinte famílias da Vila Santa Rosa e, em 2007 as casas foram finalmente removidas para a construção de um empreendimento formado por quatro torres de edifícios que vieram a ser comprados e ocupados pelo Ministério Público Federal, Ministério do Trabalho e salas comerciais. Maiores detalhes em: MARTINS, Isabela Braga. Ocupação e Regularização Fundiária de terras públicas em áreas centrais: o caso da Vila Santa Rosa, Florianópolis/SC. Dissertação de mestrado. Florianópolis, DAU UFSC, 2019.
21
PEREIRA, Elson Manoel. Políticas municipais de habitação: qual conteúdo para qual cidade? IN: PEREIRA, Elson Manoel (Org.). Planejamento urbano no Brasil: conceitos, diálogos e práticas. Chapecó, Argos, 2008, p. 231.
sobre as autoras
Isabela Braga Martins é arquiteta e urbanista (2017) e mestre em Arquitetura e Urbanismo (2019), na linha de Urbanismo, História e Arquitetura da Cidade pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Maria Inês Sugai é arquiteta e urbanista (1977), mestre (1994) e doutora em Arquitetura e Urbanismo (2002) pela Universidade de São Paulo. Desde 1979 é docente da Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de Segregação Silenciosa: investimentos públicos e distribuição socioespacial na área conturbada de Florianópolis (Editora UFSC, 2015).