Este texto reconstitui marcos da trajetória e da produção da arquiteta e urbanista Ermínia Maricato, entre os anos 1970 até os dias de hoje. Como se trata de uma figura pública de percurso amplo e ramificado, selecionaremos alguns trabalhos fundamentais que nos auxiliam no objetivo deste texto, qual seja, argumentar que a potência crítico-transformadora presente no trabalho da urbanista reside em uma combinação entre: 1. não recair em especialidades disciplinares, mas pensar as cidades no seio de processos socioeconômicos mais gerais; 2. cultivar o exercício da crítica sem se eximir da tarefa de vislumbrar saídas, sejam elas técnicas ou políticas – quando essas exigem ações coletivas, pactuadas; 3. manter-se atenta e com certa organicidade em relação às forças democráticas da sociedade e, em especial, as forças populares. Esse tripé faz de Maricato uma intelectual pública de grande envergadura e capacidade ímpar de formulação e de incidência social; explica, em alguma medida, por que Maricato recebeu em 2020 o prêmio Colar de Ouro da Federação Panamericana de Associações de Arquitetos – FPAA.
Pensar a formação do Brasil e reconstruir a democracia
Maricato se torna professora na Universidade de São Paulo ainda jovem, nos anos 1970, quando também militava, junto à diversos outros profissionais – como José Calazans, Luís Fingerman, Antonio Carlos Santana, Walter Ono – em periferias da cidade de São Paulo, por melhorias urbanas como água e luz, regularização e urbanização de loteamento clandestinos e favelas. A realidade da periferia ilegal e irregular marcou a autora. Aparece já num artigo de 1975, “Autoconstrução: arquitetura possível” e no filme produzido concomitantemente, Fim de semana, dirigido por Renato Tapajós. Esses retratavam o cenário de superexploração no qual os trabalhadores, para além das jornadas semanais, usavam do tempo livre para construir suas casas a despeito das regulações urbanísticas.
A militância foi impulsionada, em grande medida, pelas denominadas Comunidades Eclesiais de Base da Igreja Católica, que na época funcionavam como polo de aglutinação de forças progressistas (1). Esta aproximação entre organizações populares e profissionais engajados foi fundamental, lembra Bonduki, para “a formação do Movimento pela Reforma Urbana, que nos anos 1980 passou a reunir, além dos arquitetos, e suas instituições nacionais – Instituto de Arquitetos do Brasil – IAB, Federação de Arquitetos – FNA e Associação Nacional de Ensino de Arquitetura – Abea –, outras categorias profissionais como geógrafos e engenheiros, ONGs e movimentos populares, como o Movimento de Defesa do Favelado – MDF” (2). Também nesses processos surgiu a Articulação Nacional do Solo Urbano – Ansur, da qual Maricato foi assessora, articulando as lutas pela terra urbana, de modo a construir uma plataforma das principais reivindicações com forte apoio da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB. Essas, foram responsáveis pelas audiências públicas que apresentaram a Emenda de Iniciativa Popular da Reforma Urbana em 1987, contendo mais de 135 mil assinaturas à Assembleia Constituinte (3).
Como assessora da Ansur Maricato obteve destaque nas discussões, além de fazer sustentação oral da emenda junto ao parlamento. O resultado alcançado pela força política da Ansur foi a introdução na Constituição Brasileira, datada de 1988 – e ainda em vigor –, capítulo intitulado “Da política urbana”. O mesmo, dispunha de conceitos e instrumentos fundamentais para garantir a função social da propriedade, entre eles, o imposto predial e territorial urbano progressivo no tempo, bem como o amparo jurídico aos planos diretores participativos que inauguraram um novo ciclo no planejamento urbano do país, fazendo-se um momento crucial da redemocratização na política no Brasil. Como decorrência, os planos diretores deixaram de ser elaborados nos escritórios, a consulta pública à população passou a ser obrigatória, bem como a instituição de conselhos para dar voz aos interesses das diversas forças políticas.
Uma confluência ainda mais ampla se daria entre as Comunidades Eclesiais de Base, os movimentos de bairro e o novo sindicalismo então emergente. Na conhecida expressão de Eder Sader, esses foram os novos personagens a entrar em cena. Por meio desses círculos dos anos 1980 surgiram outras importantes organizações, como a União de Movimentos de Moradia – UMM, a Central de Movimentos Populares – CMP, a Central Única de Trabalhadores – CUT e o Partido dos Trabalhadores – PT. As pesquisas e publicações de Maricato nesse período possuíam como objeto, sobretudo, a política habitacional do regime ditatorial, bem como as condições de risco das populações de baixa renda que, sem alternativas, ocupavam áreas ambientalmente sensíveis.
O trabalho de maior fôlego e envergadura desses anos foi publicado em 1995, o livro Metrópole na periferia do capitalismo. No mesmo, aparecem os acúmulos anteriores e a posição clara de se alinhar aos autores centrados nos esforços por pensar a formação do Brasil. Duas referências fundamentais são Florestan Fernandes e Roberto Schwarz. Com esses, compreende a evolução urbana como um sintoma gritante de que, no Brasil, a modernização capitalista não superou o atraso, mas alimentou-se dele. Nesse sentido salienta que “relações baseadas no mando, na dominação pessoal e no favor sobreviviam (e ainda sobrevivem) num mundo em que se afirmavam os direitos civis” (4).
Com Florestan Fernandes, lembra-se do par conceitual a “modernização do arcaico” e “arcaização do moderno”, e com Roberto Schwarz reforça-se como a formação ideológica e moral do Brasil conseguiu combinar defesa de direitos individuais – característica do liberalismo moderno – com resquícios do escravismo. Já com Caio Prado e Lúcio Kowarick, lembra-se como a concentração de terras afastou o trabalhador da produção e da moradia. Para Maricato, a questão fundiária – o denominado “nó da terra” – é vista como fundamental para a formação do Brasil urbano. O processo de definição da terra como objeto vendável, sobretudo após a Lei de Terras de 1850, “forneceu base para o início do mercado imobiliário fundado em relações capitalistas e também para a exclusão territorial” (5). Os códigos de posturas municipais e as exigências de propriedade legal do terreno e de projeto, afastaram a maior parte da massa pobre do mercado formal. Por sua vez, nas primeiras décadas da República, as reformas urbanísticas expulsaram as camadas populares das áreas centrais.
Por meio da leitura atenta de Francisco de Oliveira, Maricato forja uma noção central para compreender a formação da metrópole na periferia do capitalismo, a saber: a “urbanização com baixos salários” (6). Assim como a noção de “industrialização com baixos salários” de Oliveira desmontou as opiniões dominantes sobre o avanço do capitalismo brasileiro, mostrando o caráter regressivo que o alimentava, a noção forjada por Maricato desvela a intoxicação ideológica das teses amplamente divulgadas na época, segundo as quais as moradias irregulares das camadas populares se deviam ao “crescimento desregrado” e “caótico” das grandes cidades.
Nessa chave crítica, a autora demonstra que, em nossa realidade, a reprodução da força de trabalho se dava abaixo dos níveis mínimos de dignidade. A moradia não estava entre os bens aos quais a classe trabalhadora poderia ter acesso. Tampouco o Estado se ocupava do assunto, já que o patrimonialismo presente na política urbana e, em especial, na política habitacional drenava recursos públicos para os negócios com o solo urbano e, também, para setores da cidade em que moravam as camadas de mais alta renda (7).
Dispõe-se então o quadro de profunda desigualdade, a qual a cidade visível traz imagens do mundo desenvolvido, mas as periferias são marcadas pelo cenário da autoconstrução, favelas e ocupações irregulares. Esta era a síntese da formação das periferias brasileiras: sem mercado e sem estado. Com isso, o texto de 1995 amplia os estudos empíricos dos anos anteriores. Maricato levará adiante, em suas próprias pesquisas e na orientação de tantas outras, trabalhos de grande envergadura, os quais pensam o lugar das cidades brasileiras no estágio de modernização agora em escala global, combinando uma crítica das ideologias com uma crítica à economia política do espaço (8).
Nesse mesmo período de virada dos anos 1980 para os anos 1990, a atuação da urbanista se estende à gestão pública. Sua presença capilarizada nos territórios e na universidade, junto aos movimentos sociais e igreja, lhe rende a pasta da Secretaria de Habitação e Desenvolvimento Urbano de São Paulo na gestão certamente a mais corajosa e experimental da cidade de São Paulo, a de Luiza Erundina; possibilitando trabalho ao lado de outras figuras como Marilena Chauí (Cultura), Paulo Freire (Educação), Paul Singer (Planejamento), Lúcio Gregori (Transportes), entre outros.
A política habitacional centrou-se nas propostas de urbanização de favelas e na provisão de novas unidades habitacionais por meio de mutirões autogeridos, realizados por organizações populares com Assessoria Técnica de arquitetos, assistentes sociais e profissionais do direito. Essas iniciativas se tornaram referência para programas de habitação adotados em vários municípios brasileiros, trouxe uma nova proposta de atuação pública, incorporando as organizações populares na gestão dos programas habitacionais, além de estimular pesquisas acadêmicas sobre cooperativas e sobre outras experiências de governos progressistas (9). Durante a sua gestão na Secretaria houve uma forte inflexão da estrutura administrativa para atuar na cidade “informal” e para essa parte da cidade com população mais vulnerável desenvolveu-se os seguintes programas:
a) Urbanização de favelas – promovendo melhorias viárias, de drenagem, saneamento, iluminação pública, coleta domiciliar de lixo e melhorias habitacionais para 60 mil pessoas;
b) Produção de 14 mil novas unidades habitacionais com recursos do orçamento municipal, contando com a participação de cooperativas habitacionais e assistência técnica de escritórios de arquitetura. Esse programa foi inspirado na prática das cooperativas uruguaias e propiciou moradias com boa qualidade arquitetônica a baixo custo, iniciando uma tradição de autogestão que se mantém até hoje no Brasil;
c) Revisão da legislação urbanística visando combater a exclusão social e segregação territorial;
d) Criação de organismos de participação social.
Dentre os vários programas da secretaria, dois foram escolhidos para representar o Brasil na Conferência da ONU para os Assentamentos Humanos – Habitat II em Istambul (1996): mutirões habitacionais e programa de saneamento ambiental da Bacia do Guarapiranga (10).
De volta à universidade em 1993, uniu práxis e reflexão trazendo para a construção do conhecimento as dimensões colaborativas e coletivas. Mesmo período da fundação do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos – LabHab da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo – FAU USP, em 1997 o laboratório é criado com intuito de integrar ensino, pesquisa e extensão universitária com a formação prática de inúmeros estudantes.
Do “participativismo” ao impasse da política urbana
Ao longo dos anos 2000, os escritos de Maricato são marcados por um movimento de distanciamento em relação aos movimentos nos quais esteve diretamente ligada nos anos 1980 e 1990. Em termos mais concretos, seus posicionamentos vão do apontamento por correção de rumos, num tom de apoio crítico, sem ruptura completa, até a identificação de um impasse na política urbana dominante, o que aumenta sua distância em relação aos movimentos dos quais participava ativamente. Além dessa atenção com as mudanças nas correlações de forças, a mesma mantém sua produção teórica com reflexões amplas e transversais.
No que diz respeito à produção teórica, Maricato participou, junto de Otília Arantes e Carlos Vainer, de uma publicação que marcou os estudos urbanos críticos. Em A cidade do pensamento único: desmanchando consensos, os autores analisam as redefinições então recentes do planejamento urbano, em consequência de reestruturações produtivas neoliberais no dito mundo globalizado. São reflexões de amplo escopo, reconhecendo que o pensamento urbanístico dominante não é mais aquele de matriz modernista, pautada na ideia de um poder público forte, que sob o zoneamento monofuncional seria capaz de ordenar o crescimento.
Nesses anos de desindustrialização, encolhimento e redução do papel do poder público, as governanças urbanas assumem feições empresariais e do mundo corporativo, pretendendo se tornar competitivas globalmente: na atração de investimentos em tecnologia, concentração de infraestruturas físicas e comunicacionais, bem como centralização de atividades de gestão, além de competitivas em termos de preço e qualidade de serviços. Para se venderem no mercado global, é fundamental a imagem de dinamismo não somente econômico, mas também cultural, por isso a importância dos megaeventos e de novíssimos museus em arquitetura de alto impacto. Essas redefinições estão subsumidas na ideia de “planejamento estratégico” forjado por Borja e Castells para Barcelona e, uma das consequências destes novos horizontes, é o fator das cidades-empresa serem pensadas exclusivamente para os indivíduos solventes e rentáveis.
Com isso, a tese de Maricato sobre o abismo entre a cidade visível ganha novos contornos, agora vendida sob o marketing urbano como cidade global, e a cidade invisível, irregular e ilegal. Seu capítulo gira em torno dessas “ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias”, isto é, da realidade ignorada. Novamente com Roberto Schwarz, Maricato faz uma crítica à cultura universitária de distanciamento da realidade cotidiana e adesão a sistemas de categorias elaborados em países centrais, sobretudo estadunidenses, alemães e franceses. A reflexão de Schwarz sobre a produção de conhecimento teórico vai de encontro com as colocações de Celso Furtado, para quem nossa formulação de políticas públicas é pobre em ideias, por serem centradas em esquemas importados (11). Maricato, ao trazer tais intuições para seu campo, entende o planejamento estratégico como mais uma “matriz postiça”, tanto quanto foi a modernista.
Ao longo do texto, Maricato atualiza números sobre o abismo entre a cidade visível-legal e a invisível-ilegal, a atuação restrita do mercado e também da política habitacional. Faz críticas contundentes ao instrumento por excelência da legislação urbanística, os Planos Diretores, denominado aqui de “Plano discurso”, um aparato regulatório avançado que convive com radical flexibilidade (12). Desde lá, há uma crítica ao excesso de expectativas, por parte do Fórum de Reforma Urbana, em “propostas formais legislativas, como se a principal causa da exclusão social urbana decorrente da ausência de novas leis ou novos instrumentos urbanísticos para controlar o mercado, quando grande parte da população está e continuaria de fora do mercado ou seja outras alternativas legais e modernas (isto é, sem segurança e sem um padrão mínimo de qualidade)” (13).
Neste período, Maricato já é uma intelectual pública de projeção nacional com capacidade técnico-administrativa legitimada por sua atuação na gestão Erundina. A mesma, esteve diretamente ligada ao Movimento pela Reforma Urbana e nos esforços por incluir a moradia como direito social, bem como o capítulo da Política Urbana na Constituição de 1988 (artigos 182 e 182).
Em 2003, o Partido dos Trabalhadores chega ao Governo Federal e traz consigo as bases para a organização de um novo ministério centrado na questão urbana, como havia sido formulado pelo Projeto Moradia, promovido pelo Instituto Cidadania do qual Ermínia foi uma das formuladoras. Maricato é levada ao cargo de vice-ministra, coordenando a criação do Ministério das Cidades, como comentado em seu blog: “quando criamos o Ministério das Cidades fomos – a equipe dirigida por Olívio Dutra – guiados por uma utopia que não desconhecia a condição real para a possibilidade de reformas”. Essa condição fica evidente sob vários aspectos. Sob a batuta do Ministério das Cidades reuniram-se pela primeira vez, as políticas de moradia, saneamento ambiental, transportes urbanos e programa de planos diretores participativos, desencadeando em sua gestão, os planos nacionais em cada uma dessas áreas articulando-os em um amplo planejamento nacional (14). O Ministério contou ainda com a criação de uma estrutura participativa nos três âmbitos da federação brasileira: Conselho Nacional das Cidades, bem como Conferências Municipais, Estaduais e Federal formadas por delegados eleitos em municípios de todos os estados do país.
Com a entrega do Ministério a um partido conservador sem compromisso com a Reforma Urbana. Em 2005 Maricato se desliga do cargo, retornando para a Universidade e para a atuação junto à sociedade. Suas publicações de meados dos anos 2000 acirram a crítica ao arcabouço legal, inclusive no que diz respeito às instâncias de participação social; além de identificar riscos aos movimentos sociais de sua geração, entre os quais ela própria esteve envolvida.
No artigo “Nunca fomos tão participativos”, originalmente publicado em 2007, Maricato assinalava em tom de alerta como o tema da participação vinha sendo incorporado por diversos setores da esfera pública – do Banco Mundial à ONGs –, assim como o esvaziamento de seus conteúdos estruturais, sob a marcha das políticas neoliberais. A tônica da argumentação da urbanista a respeito desse cenário se assenta em pelo menos três pontos. Primeiro, os movimentos urbanos não poderiam perder de vista aspectos mais internos, como a renovação de lideranças e as formações pedagógicas sobre o papel dos movimentos sociais naquele contexto. Segundo, o controle sobre o Estado via canais de participação é muito importante, assim como as conquistas concretas que alimentam os movimentos, entretanto era preciso cautela nas relações complexas com os governos. Dessa forma, tais relações envolvem “uma forma ambígua de cooperação, cobrança, cooptação que passa pelo atendimento das demandas de seus movimentos e não pela construção de uma política universalista ou republicana, onde cada um tem distintos papéis” (15). Terceiro, os movimentos urbanos, embora mantivessem a prática da ação direta através da ocupação de imóveis ociosos – portanto descumprindo a função social da propriedade –, pareciam tender a um caráter “demasiadamente ‘juridicista’ e institucional” (16).
O alerta não visava fazer tabula rasa dessas lutas, pelo contrário, reconhecia os ganhos diversos com a criação do Conselho Nacional das Cidades, as leis dos Consórcios Públicos, o marco regulatório do Saneamento Ambiental e o Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social. Mas apontava para o fato de que, em nosso país, a existência de leis não garante a observância das mesmas, o que garantiria o avanço da Reforma Urbana. O Estatuto da Cidade é o exemplo paradigmático e algo muito próximo vale para os Planos Diretores. Tais críticas, em tom de “correção de rumos, destinavam-se aos movimentos urbanos, em especial aos de moradia, como também se estendia ao Fórum Nacional da Reforma Urbana, cuja construção a urbanista fazia parte.
Pós-junho de 2013 e o olhar atento para as forças vivas
Os anos 2000 e início dos anos 2010 foram marcados por crescimento econômico inclusivo, com distribuição de renda. Redução da pobreza extrema, valorização do salário mínimo acima da inflação, ampliação do poder de consumo das camadas populares, além de melhoras significativas na educação. Muito desse crescimento foi embalado pelos setores da construção civil, de construção pesada, setor imobiliário e, ainda, o automobilístico, pois todos esses contavam com estímulos diretos do governo federal. Entretanto, poucos intérpretes do Brasil perceberam que, nesses mesmos anos, houve um acirramento nas condições de vida nas grandes cidades, fundamentais para a explosão de um fenômeno contraditório, o Junho de 2013, até hoje mal digerido.
Maricato esteve entre as figuras públicas que compreenderam essa conjunção explosiva. Em “É a questão urbana, estúpido”, um artigo escrito a quente, a autora abre o sua contribuição destacando: “nem toda melhoria das condições de vida é acessível com melhores salários ou com melhor distribuição de renda” (17). Ainda retoma algumas de suas teses centrais sobre a urbanização espraiada e com baixos salários, problemas estruturais históricos das cidades brasileiras, e em seguida identifica principais razões para a crise urbana recente.
Primeiramente, um boom imobiliário inédito, alavancado pelo frenesi construtivo, fazendo com que o valor de venda de imóveis e também o de aluguéis aumentasse muito acima da valorização dos salários. Segundo, a reprodução do modelo de cidades espraiadas e travadas, de modo a lançar os pobres para a periferia da periferia e mantê-los sem transporte eficiente, pois “a disputa por terras entre o capital imobiliário e a força de trabalho na semiperiferia levou a fronteira da expansão urbana para ainda mais longe”(18).
Esta reprodução foi resultado de uma série de fatores: 1. o incentivo ao automóvel e ao rodoviarismo, 2. os investimentos em infraestrutura de transporte coletivo e mobilidade serem insuficientes ou mal distribuídos do ponto de vista das desigualdade socioespaciais; 3. a permanência do crescimento urbano sob a lógica especulativa – sancionada pelo poder local (19). Nesse sentido conclui o argumento: “uma parte da vida é vivida nos transportes, seja ele um carro de luxo ou num ônibus ou trem superlotado – que atinge a maior parte da população e moradores da periferia metropolitana” (20). Não por acaso, lembra Maricato, transtornos de ansiedade, depressão e estresse, que acometem 29,6% da população paulistana, são em grande medida atribuídos às más condições de trânsito (21).
Tais descaminhos não podem ser atribuídos apenas ao governo federal. Esse não foi o tom da crítica de Maricato, obviamente ciente de que a implementação e regulação da legislação urbanística é de competência sobretudo dos governos locais. O texto lembra: “sem tradução de controle sobre uso do solo, as prefeituras viram a multiplicação de torres veículos privados como progresso e desenvolvimento” (22), entretanto sua voz foi ouvida tarde demais.
Os anos seguintes são marcados por um caldo de cultura urbana insurgente, com lutas contra os megaeventos em 2014, ocupações de estudantes secundaristas por educação pública em 2015 e 2016, reforçaram a posição da autora, isto é, a saída para o impasse não se dará em gabinetes, mas sim na sociedade; e será preciso ouvir os “novíssimos personagens” que entraram em cena nesses anos (23).
Isso está expresso num pequeno livro escrito para jovens militantes nomeado “Para entender a crise urbana”, em que a autora repassa muitas de suas teses fundamentais, atualiza diagnósticos e, em tom de enfrentamento, termina o texto com um: Que fazer? Obviamente não é seu objetivo ditar diretrizes, mas sim apontar vias. Estas são de grande atualidade e merecem ser mencionadas aqui: 1. dar visibilidade à cidade real ou desconstruir a cidade edificada pelo marketing urbano de interesses globais, ou em outros termos, atentar para as ideias fora de lugar e os lugares fora das ideias; 2. criar um espaço de debate democrático: dar visibilidade aos conflitos, dando voz aos que nunca tiveram, colocando no espaço público outros projetos de cidade que não o da classe dominante; 3. uma reforma administrativa, capaz de pôr fim às trocas de favores e relações de privilégio, responsáveis pela pilhagem dos fundos públicos; 4. capacitação de agentes públicos, quadros técnicos e políticos voltados a planos de ação, indo além de Planos Diretores. Desta forma, criar uma cultura de iniciativa, de disposição ativa e tomada de decisão, de modo a romper com o horizonte juridicista marcado por “planos sem obras e obras sem planos” (24); e 5. reforma fundiária com caráter redistributivo do acesso à terra. Em tom de conclusão, reforça: “O direito à cidade, entretanto, será dado menos por instituições formais, normas legais de política urbana ou de planejamento urbano, mas pelas lutas sociais” (25).
De 2015 em diante, seus escritos de situação e análises de conjuntura vão no seguinte sentido. Há uma necessidade premente de construir coletivamente um novo projeto para o país, formular outro modelo de desenvolvimento e sociedade, a partir das cidades, isto é, a partir do poder local, de iniciativas de democracia direta, cidadania ativa e restituição de vínculos comunitários do tecido social. Esta formulação se traduz em sua prática cotidiana. Ermínia trabalha para reabrir diálogos entre atores sociais do campo democrático – movimentos populares, universidades, ONGs, entidades técnicas e profissionais – de modo a aglutinar forças comprometidas com a construção social de uma nova agenda para as cidades do Brasil (26).
Em torno do Projeto BrCidades, a rede de militantes já se espalha pelo país, com núcleos no Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Goiás, Espírito Santo, Bahia, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte, Amazonas e Pará. O repertório de ação da rede combina atividades em espaços públicos, formações em territórios populares junto a movimentos sociais, além de debates com profissionais do Direito, da Saúde Pública e de estudos ambientais. Essas formações acontecem em parcerias com universidades públicas e privadas, assim como, movimentos de juventude, moradia e mobilidade.
O projeto BrCidades trata de questões urbanas em publicações semanais em sites e revistas digitais, como Carta Capital, GGN-Luis Nassif, Outras Palavras, Jornal Nexo e Brasil de Fato; contando ainda com um canal de podcast e vídeos. A organicidade da rede cresce através dessas atividades, mas sobretudo com os fóruns regionais organizados pelos próprios núcleos e, uma vez no ano, o Fórum Nacional. Como Ermínia ressalta em um artigo de 2013, “se fizermos um bom trabalho pedagógico, teremos uma nova geração com uma nova energia para lutar contra a barbárie” (27).Em 2019, o BrCidades recebeu o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte – APCA, na categoria urbanidade.
Considerações finais
Nesse texto, reconstituímos marcos fundamentais da trajetória e produção da arquiteta e urbanista Ermínia Maricato, buscando destacar sua atuação ramificada como pesquisadora e intelectual pública, engajada na participação ativa junto a movimentos sociais e, também, em administrações públicas. A reconstituição não deve ser tomada como meros elogios à urbanista, ainda que ela sem dúvidas os mereça.
Para além disso, é preciso perceber nessa trajetória uma referência intelectual e política, pois se trata de uma experiência com formulações de fato transformadoras, com atenção ao presente e ancoradas na realidade social urbana. Além disso, percebe-se nesta, o percurso ascendente em termos de incidência na sociedade, elevando sua presença e influência nos debates públicos à escala internacional. Ao mesmo tempo, mostra uma disposição para se manter atenta às dinâmicas da conjuntura e, ainda, numa distância crítica em relação aos projetos nos quais ela própria esteve envolvida. Isso explica, em alguma medida, por que Maricato recebeu em 2020 o prêmio Colar de Ouro da Federação Panamericana de Associações de Arquitetos – FPAA.
notas
1
SADER, Éder. Quando novos personagens entram em cena. São Paulo, Paz e Terra, 1988.
2
BONDUKI, Nabil (Org.). A luta pela Reforma Urbana no Brasil: do Seminário de Habitação e Reforma Urbana ao Plano Diretor de São Paulo. São Paulo, Casa da Cidade/CAU SP, 2017, p. 90.
3
Idem, ibidem.
4
MARICATO, Ermínia. Metrópole na periferia do capitalismo. São Paulo, Hucitec, 1996, p. 15.
5
Idem, ibidem, p. 18.
6
Idem, ibidem, p. 19.
7
Isto vem a ser desenvolvido em outro clássico de Flávio Villaça, O espaço intraurbano no Brasil. Outro momento importante para o desenvolvimento deste ponto por Ermínia está no artigo “Ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias”, no livro A cidade do pensamento único, do qual falaremos adiante.
8
Vale conferir, por exemplo, FERREIRA, João Whitaker. O mito da da cidade global: o papel da ideologia a na produção do espaço urbano. Petrópolis, Vozes, 2007. E também FIX, Mariana. Financeirização e transformações recentes no circuito imobiliário no Brasil. Orientador Wilson Canon. Tese de Doutorado. Campinas: Unicamp, 2011.
9
Erminia Maricato forma mais de uma geração de pesquisadores no tema da Assessoria Técnica a Habitação de Interesse Social.
10
Memorial para Concurso de professor titular. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo, UNiversidade de São Paulo, 1998.
11
MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias: planejamento urbano no Brasil. In ARANTES, Otília; VAINER, Carlos; MARICATO, Ermínia (Org.). A cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Rio de Janeiro, Vozes, 2000.
12
“As recorrentes discussões técnicas detalhadas sobre posturas urbanísticas ignoram esse fosso existente entre lei e gestão e ignoram também que a aplicação da lei é Instrumento de poder arbitrário. A leitura das justificativas de planos ou projetos de leis urbanísticas, no Brasil, mostra o quão pode ser ridículo o rol de boas intenções que as acompanham. Ridículo sim, porém não inocente. Cumprem o papel do plano-discurso [...] Sua aplicação segue a lógica da cidadania restrita alguns”. MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias: planejamento urbano no Brasil (op. cit.), p. 148.
13
MARICATO, Ermínia. As ideias fora do lugar e o lugar fora das ideias: planejamento urbano no Brasil (op. cit.), p. 143.
14
Cf. Cadernos MCidades. Erminia Maricato <https://Erminiamaricato.net/cadernos-mcidades/>.
15
MARICATO, Ermínia. Impasse da política urbana. Petrópolis, Vozes, 2011, p. 156.
16
Idem, ibidem, p. 100.
17
MARICATO, Ermínia et al. É a questão urbana, estúpido. In MARICATO, Ermínia. et al. (Org.). Cidades Rebeldes: passe Livre e as Manifestações que tomaram as ruas do Brasil. São Paulo: Boitempo, Carta Maior, 2013, p. 19.
18
Idem, ibidem, p. 24.
19
Vale trazer o argumento: “a prioridade o transporte individual é complementado pelas obras de infraestrutura dedicadas a circulação de automóveis. Verdadeiros assaltos aos cofres públicos, Os investimentos em obras de viadutos, pontes e túneis, além da ampliação de avenidas, não guardam qualquer ligação com a racionalidade da mobilidade urbana, mas com a expansão do mercado imobiliário, além, obviamente, do financiamento de campanhas”. MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido. In MARICATO, Ermínia. et al. (Org.). Cidades Rebeldes: passe Livre e as Manifestações que tomaram as ruas do Brasil (op. cit.), p. 25. Vale também lembrar de uma tese de doutorado em andamento, sob orientação de Maricato, a respeito dessa conjunção de fatores. PILOTTO, Ângela. O boom imobiliário e o boom automobilístico: contornos recentes da crise da mobilidade urbana em metrópoles brasileiras. Orientadora Ermínia Maricato. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU USP, 2014.
20
MARICATO, Ermínia. Impasse da política urbana (op. cit.).
21
SALDIVA, Paulo. Nossos doentes pneumopatas e a poluição atmosférica. Jornal Brasileiro de Pneumologia, São Paulo, n. 34 (1):1, jan. 2008 <https://bit.ly/39XrCBl>.
22
MARICATO, Ermínia. É a questão urbana, estúpido (op. cit.), p. 23.
23
Em alguma medida, os insights desse artigo de Maricato foram desenvolvidos na tese de COLOSSO, Paolo. Disputas pelo direito à cidade: outros personagens em cena. Tese de doutorado. São Paulo, FFLCH USP, 2020.
24
Na publicação de 2000 aqui mencionada este tópico já é levantado e mais desenvolvido. Lá a autora defende que o Plano de Ação deve focar em: controle e orientação dos investimentos; criação de um serviço especial de fiscalização do uso e ocupação do solo; enfoque integrado das ações sociais, ambientais e econômicas; detalhamento de planos prioritários, executivos e específicos: habitação, transporte público e meio ambiente (incluindo saneamento e drenagem).
25
MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana. São Paulo, Expressão Popular, 2015, p. 97. O balanço histórico e perspectivas para a urbanização recente também se encontra em MARICATO, Ermínia; COLOSSO, Paolo. O duplo desafio contra as regressões do direito à cidade. In Direitos Humanos no Brasil de 2019. São Paulo, Outras Expressões, 2019.
26
Refiro-me aqui ao Projeto BrCidades, do qual Ermínia é coordenadora. Vale conferir. BrCidades <www.brcidades.org>.
27
MARICATO, Ermínia. Para entender a crise urbana (op. cit.), p. 26.
sobre os autores
Paolo Colosso é professor no Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Santa Catarina, onde coordena o Programa de Pós-Graduação (2020-2022). Graduado pela Unicamp (2012) mestre (2015) e doutor (2019) em Filosofia pela USP. Publica textos de situação e análises de conjuntura nos sites de Carta Capital e Outras Palavras. Autor de Rem Koolhaas nas metrópoles delirantes: entre a Bigness e o big business (Annablume, 2017).
Rossella Rossetto arquiteta e urbanista com especialização na Universidade de Roma (1982), mestrado (1993) e doutorado pela FAU USP (2003). Membro do Conselho Superior do IAB, do Conselho dos ODS de São Paulo e conselheira do CAU SP. Trabalha na Secretaria de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura Municipal de São Paulo, onde compôs a equipe de redação do Plano Diretor Estratégico de 2002 e 2014. Foi coordenadora executiva do Plano Nacional de Habitação do Ministério das Cidades (2009) e consultora da ONU Habitat no Plano de Habitação de Angola (2010).
Luiza de Mattos Silva é arquiteta e urbanista, com graduação no Instituto Federal do Espírito Santo. Trabalha com temas ligados à interação pessoa-ambiente, avaliação pós-ocupação, metodologias de projeto para instituições de tratamento de saúde mental, além de apropriação e uso de espaços públicos.