"Dis-moi
[…] n’as-tu pas observé,
en te promenant dans cette ville,
que d’entre les édifices dont elle est peuplée,
Les uns sont muets; les autres parlent?"
Paul Valéry (1)
“A cidade diz tudo o que você deve pensar.
Faz você repetir o discurso”.
Italo Calvino (2)
A noção de significância ¾ do latim significantia ¾ corre o risco de se tornar banal, tal a frequência do uso do termo, antes mesmo de ter sido adequadamente apreendida no que diz respeito à teoria da arquitetura.
Em texto crítico sobre essa questão, Mason avalia que há uma certa negligência quanto à investigação teórica da ideia de significância. Para Mason, os que se dedicam à preservação do patrimônio edificado “têm mostrado pouco interesse por refletir sobre a noção de significância”. Como consequência, a ideia de significância tem sido “frequentemente usada como um blunt instrument ou, pior, como uma black box” (3) da qual se acercam apenas especialistas.
Em texto anterior, Tainter e Lucas, tratando justamente da epistemologia do conceito de significância, assinalaram o fato de que, embora se discuta essa questão há algum tempo, “a origem dessa ideia permanece não examinada” (4), sugerindo, assim, o aparente pouco interesse acadêmico sobre esse tema.
Uma outra evidência desse saber incipiente é a imprecisão com a qual documentos importantes que tratam do tema, a exemplo da Carta de Burra (5), definem o que seria significância. No Artigo 1, Inciso 1.2, dessa carta, lê-se: “Significado cultural significa [sic] valor estético, histórico, científico, social ou espiritual para as gerações passadas, atual ou futuras”. Nas notas explicativas do mesmo inciso, lê-se que “a expressão significado cultural é sinônima de significado patrimonial e de valor cultural”. Esse aparente girar em círculos não é, certamente, consequência de limites intelectuais dos redatores dessa carta, mas antes um indício de persistentes dificuldades teóricas.
É nesse contexto de insuficiência e dificuldades conceituais que se esboçam aqui notas preliminares com vistas a uma reflexão teórica sobre a noção de significância.
À luz de conceitos-chave na teoria da arquitetura e da psicanálise — a definição de monumento e o conceito de supereu —, trabalha-se com a hipótese de que a significância que determinadas edificações adquirem decorre de uma imposição psíquica, de natureza inconsciente, manifesta no ambiente construído desde tempos imemoriais.
Espera-se, assim, dar um passo adiante no sentido de, ampliando o lastro teórico, contribuir para a compreensão dessa ideia complexa.
Não removas os marcos
“Não removas os marcos antigos que puseram teus pais” (6). Foi com essa advertência que o rei Salomão se dirigiu aos mais jovens em tempos imemoriais, segundo registra o Livro dos Provérbios. Essa advertência é um bom ponto de partida para a articulação entre os conceitos-chave que norteiam este texto.
A primeira aproximação entre o texto bíblico e a reflexão que ora se elabora é a ideia de proibição presente no advérbio de negação que inicia a advertência salomônica. Essa proibição, esse não, permite introduzir, logo de início, a noção supereuoica — a instância psíquica que impõe limites ao sujeito — como referência privilegiada para a construção do argumento esboçado ao longo destas notas.
Uma segunda aproximação a sublinhar é a menção às figuras parentais. O não proibitivo do texto citado não é genérico, tampouco se refere a algo menor. A proibição da remoção de marcos antigos diz respeito às figuras parentais. Outra vez, a assertiva bíblica aponta à noção de supereu, uma vez que é a função paterna que entra em cena quando o supereu atua no psiquismo humano.
Por fim, o alvo da proibição imposta por Salomão é precisamente a configuração do ambiente construído: Não removas os marcos, elementos construídos estabelecidos pelas gerações que te antecederam, diz Salomão.
É, pois, com essa assertiva em mente que se define a hipótese central deste texto, segundo a qual há uma expressão supereuoica, inconsciente, no processo socioespacial que configura a cidade, da qual derivaria a significância conferida a determinados objetos arquitetônicos.
Caso essa hipótese se mostre plausível, há que se rever as premissas que norteiam a eleição de um objeto construído a preservar, uma vez que não seria da qualidade estética, construtiva do edifício, nem mesmo da sua valoração histórica, conferida por especialistas, que emergiria a sua significância, mas antes de demandas psíquicas que o edifício expressa, conforme se quer mostrar neste ensaio.
Um exemplo dessa dissociação entre a atribuição de valor a um edifício por parte de especialistas e a significância que uma comunidade confere a uma determinada edificação é dado por Argan ao referir-se à importância do Coliseu romano.
“Do ponto de vista estético [...], o Coliseu não tem mais nenhum valor [...]. Entretanto, o Coliseu não é apenas um elemento do valor ou do significado urbano de Roma: foi seu símbolo, desde a Idade Média. Às vezes, para se representar Roma, tem-se figurado apenas o Coliseu; em todo caso, não conheço uma representação de Roma em que falte o Coliseu [...]. Se alguém o quisesse destruir, não apenas se revoltariam os arqueólogos e os historiadores da arquitetura, mas também o povo romano” (7).
Com sua destruição interditada pela importância simbólica que os romanos lhe atribuem nos dias atuais, ainda que, localizado onde está, “atrapalhe o trânsito e impeça a exploração de uma área valiosa”, como escreve Argan no texto mencionado, o Coliseu impõe-se como objeto de valor por motivos imponderáveis à razão. Não é da excepcionalidade construtiva ou estética desse edifício, do que foi a sua forma artística, que emerge a sua valoração, uma vez que essa forma não tem mais nenhum valor, mas, sim, de um sentido inapreensível racionalmente que lhe é atribuído pela comunidade.
De outro lado, o inverso também se verifica. Edificações tidas por especialistas como excepcionais podem ser destruídas quando a sociedade não as reconhece como bens a preservar.
É nesse contexto, instigante, certamente, para os que lidam com a questão da preservação de determinadas estruturas edificadas e, portanto, com a questão da significância, que o conceito de supereu oferece uma importante chave conceitual para investigar como e por que o ser humano atribui valores imateriais a estruturas fisicamente edificadas.
A noção de supereu
A noção de supereu — über-Ich no texto original — foi introduzida por Freud em O Eu e o Id, texto que apresenta “a diferenciação do psíquico em consciente e inconsciente [...] premissa fundamental da psicanálise” (8).
Do ponto de vista do psiquismo individual, Freud põe em evidência a divisão entre consciente, pré-consciente e inconsciente, isto é, em sua vida mental, o indivíduo vivencia um estado psíquico em que alguns sentimentos, experiências, etc., tornam-se conscientes, enquanto outros se mantêm inconscientes. Estes, por sua vez, também se dividem em conteúdos (desejos, emoções etc.) latentes, pré-conscientes, e aqueles que são impedidos de chegar à consciência por mecanismos diversos do aparelho psíquico, mantendo-se, assim, inconscientes.
É evidente que a descrição desse sistema psíquico extrapola os objetivos deste texto. O que importa assinalar aqui é a manifestação cultural do supereu, da qual se pode apreender a função supereuoica que determinados edifícios desempenham na arquitetura da cidade, se se tem como válida a hipótese formulada.
Dois elementos próprios dessa instância psíquica merecem especial atenção. O primeiro é seu caráter proibitivo. Isto é, a injunção de um não categórico, determinante na vida psíquica individual ou coletiva. Assim, se para o sujeito em sua singularidade esse caráter proibitivo do supereu se manifesta no desenvolvimento da consciência moral frente à força do desejo humano — irrenunciável e indestrutível de acordo com a escrita freudiana —, na vida coletiva ele se expressa por meio “[d]A grande voz” (9) que emana de uma sociedade, transmitida de geração a geração pelo conjunto de normas, crenças, valores, etc., que definem o que é e o que não é socialmente aceito.
Assim, se para o indivíduo as imposições supereuoicas se manifestam nas proibições e imposições paternas — Não faça isso! Faça aquilo! —, no âmbito social aparecem, por exemplo, nos Dez Mandamentos — Não matarás! Honra a teu pai e a tua mãe! —, impostos ao povo hebreu em tempos imemoriais ou, em tempos atuais, no conjunto de leis que definem o Estado de Direito.
O segundo elemento próprio do supereu que importa considerar neste texto é a imposição de um ideal, ideal do eu, em termos conceituais precisos (10). Agora, a natureza impositiva do supereu se manifesta na injunção de valores, de crenças, de ideais — inclusive ideais coletivos que ao sujeito não é dado ignorar (11).
A noção de ideal do eu traz implícita a ideia de identificação. Na teoria freudiana, a identificação é o processo inconsciente por meio do qual o indivíduo humano incorpora traços psíquicos de um outro sujeito tornando-os doravante seus. Para a psicanálise, não se nasce sujeito. O indivíduo humano torna-se sujeito pelo processo de identificação com o outro. Nesse processo, marcadamente inconsciente, os elementos basilares são precisamente as figuras parentais.
É no processo de identificação com a figura paterna que o ideal do eu se configura. Aspirando ao lugar de poder do pai, isto é, o lugar de sujeito ocupado por alguém capaz de dar efetividade ao próprio desejo — todo menino quer ser como o pai —, a figura paterna, objeto privilegiado de identificação para o filho, transforma-se em ideal para o sujeito em fase de constituição.
Assim, junto ao não impositivo que aparece na forma de proibição — Não faça isto! —, emerge, também, um ideal igualmente imposto — Honra a teu pai e a tua mãe! —, isto é, faça aquilo que é socialmente esperado de você.
Importa lembrar aos menos familiarizados com a escrita freudiana que, mesmo para o indivíduo, a função paterna expressa nas injunções supereuoicas não se confunde com o pai biológico — circunstância teórica essencial para a pertinência da utilização dessa categoria freudiana na investigação da hipótese apresentada.
Assim, referindo-se às sociedades primitivas, Freud escreve em Totem e Tabu: “Um homem chama de ‘pai’ não apenas seu genitor, mas também qualquer outro homem que, conforme os estatutos da tribo, poderia ter desposado sua mãe e se tornado seu pai” (12). Freud, lembra que essa prática ancestral está presente entre nós sempre que “uma criança é estimulada a saudar todo amigo [...] dos pais como tio, [...] ou, em sentido figurado, quando falamos de em irmãos em Cristo” (13).
É, pois, como expressão de uma função psíquica, e não de uma relação biológica, que as injunções supereuoicas se impõem culturalmente. Acerca desse ponto, Chemama anota:
“Herdeiro do Complexo de Édipo, [o supereu] adotará, a seguir [após a fase do Édipo no desenvolvimento infantil], as influências dos mestres e educadores que assumem o lugar dos pais. Ele se enriquecerá com as ulteriores contribuições da cultura [...]. Torna-se o veículo da tradição” (14).
Deve-se, portanto, às artimanhas psíquicas que o inconsciente nos faz viver, que ideais, desta feita coletivos, se imponham para uma comunidade.
Desse modo, a função paterna, tanto individual quanto socialmente, é irredutível ao pai biológico. É essa irredutibilidade a uma relação de consanguinidade que justifica o esforço de investigar como, e em que medida, essa função vivenciada desde tempos imemoriais chegou à cidade contemporânea e à sua arquitetura, donde se tem, quiçá, uma indicação plausível para a questão da origem da ideia de significância — uma imposição de memória manifesta em determinadas estruturas edilícias.
Nessa perspectiva, é possível considerar que os edifícios que se tornam monumentos, aqueles que falam, são precisamente aqueles que expressam ideais, coletiva e inconscientemente partilhados, impostos pelos pais fundadores que cada cidade cultua — donde a significância que lhes é socialmente atribuída.
Assim, à luz do conceito de supereu, a assertiva bíblica usada como ponto de partida para estas reflexões assume um outro sentido, bem como a hipótese formulada apresenta maior plausibilidade. Com efeito, se o caráter proibitivo — não removas os marcos antigos —, inerente à instância supereuoica, impõe a permanência de determinados marcos estabelecidos, a injunção de ideais, igualmente imposta pelos nossos pais fundadores, aponta para as razões que levam gerações sucessivas a atribuírem significância imaterial a determinadas estruturas edificadas.
Monumento, uma imposição de memória
O termo monumento deriva do latim monere, advertir; do alemão Mahnmal, lugar de advertência, e Denkmal, lugar que impõe memórias. Como se vê, não há na etimologia desses vocábulos nenhum elemento que sugira a questão da valorização artística dos lugares de advertência ou dos lugares que impõem memórias, mas, sim, o caráter impositivo, próprio da instância supereuoica, ainda que, naturalmente, os homens de antigas idades, expressão feliz de Fustel de Coulanges, sequer suspeitassem do conceito de supereu tal como formulado pela teoria psicanalítica.
De fato, foi a intenção de advertir e de impor memória que fez surgir o que talvez se constitua no primeiro monumento de que se tem notícia: a pedra que, após uma noite memorável, durante a qual servira de travesseiro ao patriarca Jacó na alvorada da história humana, foi erguida em coluna para advertir às gerações futuras que o lugar onde foi levantada não era outro senão “a casa de Deus”. Uma pedra, que, uma vez erguida com a intenção de advertência quanto à natureza sagrada daquele sitio em particular, se torna um monumento, um marco inamovível para aqueles que habitariam a cidade de Betel, conforme se lê no Gênesis (15).
Para além da narrativa bíblica, a história registra que Atenas gravou ritos — imposições de comportamento social — em estelas como imposição de memória. Fustel de Coulanges registra que esses elementos construtivos foram erguidos “para lembrança futura [...] a fim de que se tornassem imperecíveis (16)”. Os gregos atribuíam, assim, a esses objetos materiais, o papel de elementos transmissores de ideais coletivos. De enunciação, portanto, do discurso que emana da grande voz à qual ao sujeito humano não é dado esquecer.
Nesse sentido, Fustel de Coulanges escreve — de modo surpreendente para a arquitetura — que imposições de memórias determinaram a construção da casa e não o inverso. Em outros termos, demandas imateriais vieram antes, na construção da casa, do que as necessidades objetivas de edificação do espaço.
De fato, foi a necessidade de cultuar os antepassados, notadamente o pai morto ― uma exigência do espírito, diria Simmel (17), uma imposição psíquica, escreveria Freud ―, que fez as sociedades da Antiguidade erguerem seus primeiros elementos construtivos, o altar e a lareira — donde se tem o vocábulo lar —, estabelecendo, assim, os mais antigos monumentos da história.
Uma imposição de memória, pois, fez surgir o lar e com ele a casa onde cada família se reunia para lembrar os seus antepassados, como anota Fustel de Coulanges:
“A família, que por dever e religião fica em redor do seu altar, fixa-se no solo, como o próprio altar. [...] Com efeito, o homem, que pela religião era fixado num lugar que ele julgava nunca mais deixar, bem cedo passou a sonhar em levantar, nesse sítio, uma construção sólida. É nesse sentido que gregos diziam que a prática desse culto “tinha ensinado o homem a construir casas” [uma vez que] “levantavam-se as paredes ao redor do altar para isolá-lo e protegê-lo” (18).
Hegel percebeu claramente essa anterioridade de exigências psíquicas em relação à edificação do ambiente construído: “Nações inteiras não souberam expressar [...] as suas necessidades mais profundas, senão construindo” (19), escreveu o filósofo.
Assim, em tempos imemoriais, cada casa tinha um altar onde ardia o fogo do lar em memória do pai morto, “uma espécie de ser moral [que] impõe deveres e vigia-lhe o cumprimento” (20) — exercendo, desse modo, precisamente, a função do supereu em sua manifestação sociocultural.
Nasce, pois, na e da casa paterna — como imposição psíquica, segundo as referências teóricas que norteiam estas notas — a determinação de reverenciar estruturas físicas em decorrência de proibições e imposições parentais. Ter-se-ia aqui a origem da ideia de significância em sua manifestação espacial?
Nessa perspectiva, a hipótese formulada parece se tornar cada vez mais plausível. Afinal, o conjunto de ritos que transformavam o altar em expressão material de imposição de memória não se fazia em torno de uma figura qualquer. O culto celebrado em torno desse altar, fim último desses ritos, era prestado aos antepassados — ao pai morto —, que, assim, pelo culto que lhes faziam seus descendentes, perenizavam-se na memória das gerações futuras.
O pai morto e o não categórico
O pai morto funda o social segundo a teoria freudiana. Em Totem e Tabu, Freud formula uma teoria para a instituição das sociedades tendo como ponto de partida o mito da morte do pai primevo. Longe de pretender esgotar aqui a questão, naturalmente, registro apenas os elementos fundamentais dessa ideia frente à construção do argumento que se esboça ao longo deste texto. Diz Freud:
“Certo dia, os irmãos [...] se juntaram, abateram e devoraram o pai [...]. No ato de devorá-lo, eles realizavam a identificação com ele, e cada um apropriava-se de parte da sua força. A refeição totêmica, talvez a primeira festa da humanidade, seria a repetição e a celebração desse ato memorável e criminoso, com o qual teve início tanta coisa: as organizações sociais, as restrições morais, a religião” (21).
A hipótese com a qual Freud trabalha é a de que esse ato memorável e criminoso teria impregnado a humanidade com uma consciência de culpa inescapável, uma vez que os filhos haviam infringido um “dos dois crimes que inquietavam as sociedades primitivas” — o homicídio e o incesto. Haviam atentado, pois, “contra as sagradas leis do sangue” (22). Como o assassinato se constituía num ato sem volta, as comunidades primitivas teriam aliviado a culpa desse assassínio com a proibição de matar o animal totêmico, um substituto simbólico do pai morto. Institui-se, portanto, desse modo, o não categórico essencial à construção da consciência moral e à vida em sociedade.
Assim, “eles revogaram seu ato declarando ser proibido o assassínio do substituto do pai, o totem. [...]. [Com isso, tornaram] o morto mais forte do que havia sido o vivo” (23). Perenizaram-no ao torná-lo um ente sagrado, ao atribuir-lhe um poder sem limites, transformando-o, por fim, pela morte, no deus da casa a que toda a família, a rigor, todo o clã, deveria prestar culto.
Para efeito destas minhas notas, importa assinalar a relevância, a força e a origem do tabu em relação ao totem, do não categórico que por ele é imposto à vida social, uma vez que a compreensão da sua origem e de suas motivações “lança luz sobre a obscura origem de nosso próprio ‘imperativo categórico’”, como diz Freud (24).
O culto prestado aos antepassados ao redor dos monumentos primitivos, do altar e da lareira, a tradição de celebrar memórias, de reverenciar figuras parentais, seria, pois, decorrência de uma “[...] antiga crença [que] ordenava ao homem que honrasse o antepassado” (25), apropriada como um imperativo categórico.
Não surpreende, portanto, que o fogo sagrado, aceso em honra aos antepassados — em seu papel de ser moral que impõe deveres e vigia-lhes o cumprimento —, jamais poderia ser extinto. Sem o fogo sagrado permanentemente aceso, não se tinha assegurada a perenidade do pai morto, os filhos não teriam, consequentemente, garantida a proteção à vida e assim as gerações sucessivas estariam entregues à danação eterna que a culpa impõe, uma vez que, extinto o fogo, extinta também seria qualquer esperança de vida perene.
Mas, para além do papel de proteção divina, o culto ao pai morto tinha também a função terrena de organizar a vida social. É precisamente essa função terrena do culto, de celebração da memória dos antepassados, de impor pensamentos — manifesta na construção de monumentos que assim se fazem veículos da tradição — que interessa aqui. Essa função de memória, eminentemente social, permite compreender que o fenômeno que atribui sentido imaterial a estruturas edificadas não se limita a demandas religiosas próprias das comunidades primitivas, e sim a imperativos psicossociais que, como tais, persistem nas sociedades modernas.
Fustel de Coulanges, uma vez mais, deixa bem clara essa função terrena, presente na instituição de ritos, crenças, e valores socialmente partilhados, quando anota:
“O vínculo social não é fácil de estabelecer entre seres humanos [...]. Para dar-lhes regras comuns, para emitir ordens e fazer aceitar a obediência, para obrigar a paixão a ceder à razão, e a razão individual à razão pública, parece com certeza indispensável existir algo mais forte que a força material, mais respeitável que o interesse, mais seguro que a teoria filosófica, mais imutável que a convenção, alguma coisa que esteja radicada no fundo dos corações e, nestes, resida imperativamente” (26).
Na escrita freudiana, essa coisa que reside de modo imperativo no coração do homem é precisamente o supereu, a instância psíquica responsável por obrigar a paixão a ceder à razão, e a razão individual à razão pública.
Nessa perspectiva teórica, edifícios tidos como monumentos são representações simbólicas de figuras parentais, nossos pais fundadores, e do que elas nos impõem culturalmente. Enunciando valores partilhados coletivamente, são a expressão psicossocial manifesta de um discurso emitido pela grande voz que nos insere na ordem simbólica da qual emerge a nossa humanidade.
Edifícios tornam-se monumentos, pois, se e quando são inconscientemente reconhecidos como a grande voz que fala a uma coletividade. Isto é, quando se constituem em marcos psíquicos postos pelos pais fundadores, marcos esses que a uma determinada sociedade não é dado ignorar ou negligenciar, a exemplo do Coliseu romano.
Nesse ponto temos mais uma questão relevante para a compreensão da ideia de significância. De modo semelhante ao que indica a etimologia do vocábulo monere, a significância atribuída a estruturas físicas nada tem a ver com a qualidade construtiva dessas edificações, mas, sim, com a enunciação de um discurso. Um discurso que impõe ideais coletivos capazes de obrigar a razão individual a ceder à razão pública, de transformar lembranças individuais em memórias socialmente partilhadas.
Nossos pais fundadores, um discurso em ato
Durante séculos, a família, entendida como um extenso clã, foi a instituição social por excelência. Não surpreende, portanto, que a cidade tenha trazido para si o conjunto de ritos e cultos próprios da casa.
Com efeito, a cidade, em seus primórdios, se organizava em torno da figura do seu fundador — o pai da cidade —, uma figura sacralizada, imprescindível, como tal, para a constituição psicossocial da sociedade. Ainda Fustel de Coulanges:
“Fundador era o homem que praticava o ato religioso, sem o qual a urbe não poderia instalar-se. O fundador preparava a lareira, onde, para sempre, deveria arder o fogo sagrado. [...]. Durante a vida, os homens viam nele o autor do culto e o pai da cidade; morto, tornava-se um antepassado comum para todas as gerações que se sucedessem e era, para a cidade, aquilo que o primeiro antepassado fora para a família [...]. Sua lembrança perpetuava-se como o fogo da lareira que ele acendera” (27).
A cidade se constitui, pois, a partir da ação e do poder, real e simbólico, dessa figura sagrada, por vezes mitológica, a quem se atribuía a emissão de um discurso evocado e manifesto em preces e ritos que expressavam ideais coletivos. A exemplo do altar e do fogo sagrado que sobre ele ardia, esses ritos demandavam um lugar onde a imposição de memória se materializasse — um monumento.
Talvez se tenha nessa necessidade de construir para expressar demandas imateriais, uma explicação para uma afirmativa, um tanto enigmática, de John Ruskin, sobre a importância da arquitetura para o exercício da memória: “Nós podemos viver sem ela, e orar sem ela, mas não podemos rememorar sem ela” (28).
Seria o monumento a expressão de uma exigência psíquica que nos leva a edificar para tornar visível uma demanda imaterial?
Parodiando Heidegger (29), dir-se-ia que não lembramos por que erguemos monumentos. Ao contrário, erguemos monumentos porque vivemos sob a imposição de memórias. Isto é, não atribuímos significância a determinadas estruturas construídas porque há edificações notáveis a serem preservadas. Há edificações a preservar porque há edifícios que falam, isto é, impõem um conjunto de valores inalienáveis. Porque há edificações que enunciam, enfim, um discurso, oriundo da função paterna, que nos funda como sociedade.
Paola Mieli aponta para essa direção quando se refere ao ambiente construído, à “paisagem que antecede o ser vivo”, como sendo uma “dimensão de fala” para o sujeito humano (30).
Mieli sublinha o fato de que, para a psicanálise, a constituição da subjetividade humana comporta necessariamente uma relação de transmissão de um discurso, de um saber expresso por palavras ou mesmo pelo silêncio, como se lê no texto mencionado.
Lacan lança luz sobre esse fato psíquico ao elaborar a ideia de que o outro com o qual o sujeito se relaciona — se identifica, em termo conceitualmente preciso — extrapola a figura do semelhante. Lacan diferencia o outro, o semelhante, cujo vocábulo é grafado com o minúsculo, do grande Outro, desta feita escrito com a letra O maiúscula. É do grande Outro, anterior e exterior ao sujeito, expressão da cultura, da linguagem, daquilo que nos faz humanos, enfim, que emana o fio condutor de um discurso emitido pelos pais fundadores da história humana, transmitido, como tal, de geração a geração.
É nessa perspectiva teórica que se pode compreender — para melhor definir — a significância que emana de edifícios reconhecidos como monumentos, como sendo resultante de um “discurso em ato”, isto é, um ato de fala que se desenvolve num contexto preciso do laço social, como escreve Mieli (31).
Desse modo, não é possível definir significância como sendo simplesmente a atribuição de um sentido a determinadas estruturas ambientais, uma vez que não se trata de algo racional, de algo simplesmente traduzível, a exemplo do que se faz com um vocábulo qualquer entre línguas distintas. Muito mais do que isso, a significância seria precisamente esse discurso em ato, isto é, um discurso que se faz ação por se fazer presente no cerne do laço social.
Um discurso que não nos é dado interromper ou negligenciar como escreve Lacan:
“O discurso do outro não é o discurso do outro abstrato, do outro da díade, do meu correspondente [...], é o discurso do circuito no qual estou integrado. Sou um de seus elos. É o discurso do meu pai [...] é o que se denomina supereu. Estou condenado a reproduzi-lo porque é preciso que eu retome o discurso que ele me legou, não só porque sou seu filho, mas porque não se para a cadeia do discurso, e porque estou justamente encarregado de transmiti-lo [...] a outrem [...]. Este discurso efetua um pequeno circuito em que se acha presa uma família inteira, um bando inteiro, uma nação inteira” (32).
O que Lacan põe em evidência, portanto, é que esse discurso que nos constitui é “a forma circular de uma fala” (33) introduzida pelo registro da linguagem que define a própria condição humana, razão pela qual não pode ser interrompida.
No entanto, e este é um ponto fundamental para a compreensão de como o discurso dos nossos pais fundadores se mantém capaz de atuar como laço social nos dias que correm, essa forma circular de uma fala não implica num determinismo quanto ao conteúdo desse discurso, mas antes à sua força como elemento constitutivo do psiquismo.
Mieli deixa claro esse ponto quando registra que “de uma época a outra, ou simplesmente de uma geração a outra, um chiste pode se tornar incompreensível no cerne de uma mesma cultura” (34). Assim, embora não se possa parar a cadeia do discurso, como escreve Lacan, a cada geração é possível (re)significá-lo, fazê-lo ato capaz de repercutir nos laços sociais estabelecidos ou deixá-lo perdido na poeira do tempo. Quanto aos edifícios, a cada geração, é preciso distinguir aqueles que falam e, portanto, são elos da cadeia do discurso que nos constituem, daqueles que, mudos, nada têm a dizer.
É o que fizeram os romanos com o Coliseu herdado dos seus pais fundadores. Pleno em significância, porquanto discurso em ato, tornaram-no representação de todo o povo romano (35).
Para concluir
Caso se tenha como plausíveis a hipótese e o argumento apresentados, a significância de um objeto arquitetônico decorre da sua função supereuoica, isto é, da transmissão de um ideal, da imposição de um agir, da relevância de uma memória assentada inconscientemente no psiquismo humano, manifesta no objeto edificado.
À luz dessa ideia, há que se rever métodos e técnicas quando se trata de atribuir significância a estruturas edilícias, uma vez que não há como valorá-los racionalmente, por meio de indicadores, nem como defini-los a partir de seu valor patrimonial como quer a Carta de Burra.
Afinal, edifícios adquirem significância se e quando se tornam parte de um discurso que se faz ato e assim se tornam, também, marcos psíquicos estabelecidos. É quando a cidade diz tudo o que você deve pensar. Faz você repetir o discurso.
notas
NA – Esse artigo foi originalmente apresentado, parcialmente, durante palestra realizada na Universidade de São Paulo – USP em 2017 e também parcialmente em congresso realizado em Portugal.
1
VALÉRY, Paul. Eupalinos ou o arquiteto. Rio de Janeiro, Editora 34, 1966.
2
CALVINO, Italo. Cidades invisíveis. São. Paulo, Companhia das Letras, 1990.
3
MASON, Randon. Fixing Historic Preservation: A Constructive Critique of "Significance". Places, a Forum oh environmental design, vol. 16, n. 1, 2004, p. 64.
4
TAINTER, Joseph; LUCAS, John. Epistemology of the significance concept. American Antiquity, vol. 48, n. 4, 1983, 9 jul. 2020, p. 707 <https://doi.org/10.2307/279772>.
5
Carta de Burra. Carta do ICOMOS da Austrália para a conservação dos sítios com significado cultural. Icomos Australia, 9 jul. 2010 <http://www.icomos.org/australia/burra.html>.
6
SALOMÃO, Provérbios de. A Bíblia Sagrada. Tradução de João F. de Almeida. Rio de Janeiro, Sociedade Bíblica do Brasil,1958, cap. 22: 28.
7
ARGAN, Giulio Carlo. História da arte como história da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 1992, p. 227-228.
8
FREUD, Sigmund [1920-21]. O eu e o id. In Obras Completas. Vol. 15. São Paulo, Companhia das Letras, 2011, p. 15. Todas as citações freudianas têm como referência as Obras Completas de Freud publicadas pela Companhia das Letras, tradução de Paulo César de Souza. As datas das publicações originais são indicadas entre colchetes.
9
CHEMAMA, Roland. Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre, Artes Médicas, 1995, p. 211.
10
FREUD, Sigmund [1914]. Introdução ao narcisismo. In Obras Completas. Vol. 12. São Paulo, Companhia das Letras, 2010.
11
LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J-B. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris, PUF, 1967.
12
FREUD, Sigmund [1912-13]. Totem e Tabu. In Obras Completas. Vol. 11 São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 26. Aspas do autor.
13
Idem, ibidem.
14
CHEMAMA, Roland. Op. cit., p. 210-211.
15
GÊNESIS, Livro do. A Bíblia Sagrada. Tradução de João F. de Almeida. Rio de Janeiro, Sociedade Bíblica do Brasil,1958, cap. 28:10-22.
16
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. A cidade antiga. São Paulo, Editora Revista dos Tribunais, 2011, p. 218.
17
SIMMEL, Georg. A metrópole e a vida mental. In VELHO, Otávio (Org.). O fenômeno urbano. 3ª edição. Rio de Janeiro, Zahar, 1976.
18
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. Op. cit., p. 80-82.
19
HEGEL, Georg. A arquitetura. São Paulo, Edusp, 2008, p. 100. Destaques da autora.
20
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. Op. cit., p. 41.
21
FREUD, Sigmund [1912-1913]. Totem e Tabu. In Obras Completas. Vol. 11 São Paulo, Companhia das Letras, 2012, p. 216-217.
22
Idem, ibidem. p. 219.
23
Idem, ibidem.
24
Idem, ibidem, p. 48. Aspas simples na versão consultada.
25
FUSTEL DE COULANGES, Numa Denis. Op. cit., p. 167.
26
Idem, ibidem, p. 166-167. Destaques da autora.
27
Idem, ibidem, p. 180. Destaques da autora.
28
RUSKIN, John. Les sept lampes de l’architecture. Clamecy, Klincksieck, 2008, p. 191.
29
HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis, Vozes, 2001.
30
MIELI, Paola. Figuras do espaço: sujeito, corpo, lugar. São Paulo, Annablume, 2016, p. 70.
31
Idem, ibidem, p. 72.
32
LACAN, Jacques. Seminário, livro 2. Rio de Janeiro, Zahar, 2010, p. 127. Destaques da autora.
33
Idem, ibidem.
34
MIELI, Paola. Op. cit, p. 72.
35
Enquanto escrevia este texto, eclodiu no mundo, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, com eco também no Brasil, um movimento contestatório quanto à legitimidade de determinados monumentos, notadamente estátuas que celebram personalidades. Pensei em incluir aqui essa questão, mas percebi que, além de não haver ainda um distanciamento temporal que possibilitasse uma avaliação consistente das contestações ocorridas, esse tema —— de validação, ou não, de monumentos tidos como estabelecidos, pelas razões apresentadas pelo referido movimento ——, exige uma abordagem mais ampla do que seria possível fazer neste ensaio breve. Portanto, esse ponto fica como uma proposição a ser explorada em outro artigo, ou por outro(a) pesquisador(a), em um outro momento que se espera próximo.
sobre a autora
Lúcia Leitão Santos é doutora em Arquitetura (Universidade do Porto, 2004) e realizou estágio de Pós-doutorado na Universidade Paris-Descartes (Sorbonne, 2011). É professora associada do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Pernambuco e pesquisadora do CNPq desde 2007. Publicou, dentre outros, Onde Coisas e Homens se encontram (Annablume, 2014).