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architexts ISSN 1809-6298

abstracts

português
Proporcionando a reflexão de que a cidade de São Paulo deve ser planejada protagonizando as pessoas, o artigo apresenta preocupações primordiais para se projetar considerando a vida, os espaços e os edifícios.

english
Providing the analysis that city of Sao Paulo should be planned with for people, the article presents primary concerns for projecting considering life first, then spaces and finally buildings.

español
Con la reflexión de que la ciudad de São Paulo debe planificarse con la participación de las personas, el artículo presenta preocupaciones primarias para proyectar considerando la vida, los espacios y los edificios.


how to quote

COSTA, Matheus Oliveira. Vida, espaço, edifício. São Paulo para pessoas. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 249.02, Vitruvius, fev. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.249/8007>.

Avenida Paulista fechada para carros no domingo
Foto Matheus Oliveira Costa

O urbanismo funcionalista moderno nas suas bases não privilegiava a grande escala da população na cidade de São Paulo, visto que edifícios projetados apenas pensando na sua finalidade dentro do lote passaram a caracterizar a imagem da cidade no final do século 20 com o planejamento urbano inspirado no modelo norte americano de protagonismo do automóvel. Como resultado, temos até hoje ruas congestionadas de carros, lotes com edifícios fechados em muros sem relação com o pedestre, distanciamento de trabalho, moradia e lazer, além de altos preços de m² nas regiões providas de infraestrutura e o deslocamento de parte da população para as periferias. Assim, sentimos diariamente os efeitos de um planejamento urbano que não priorizou a relação da cidade com o pedestre, o que resulta em uma maior preocupação na repaginação de valores humanistas.

Considerando o conceito de urbanidade definido como “a transformação do espaço urbano a partir da busca por uma equação entre verticalização, densidade e percepção” (1), a cidade é entendida como uma arquitetura que não se limita apenas à imagem visível do espaço urbano e seu conjunto de edificações, mas sim como um meio de construção no tempo que remete ao dado definitivo da vida da coletividade: a criação do ambiente em que esta vive (2). Ao descrevê-la, ocupamo-nos predominantemente de sua forma, um dado concreto que se refere a uma experiência concreta: São Paulo.

A partir da revisão do referencial teórico, com o olhar direcionado ao planejamento urbano, este artigo tem o objetivo de estimular estratégias projetuais que se alinhem com o planejamento urbano humanístico, considerando o protagonismo da dimensão humana na cidade, antes de pensar no objeto do edifício construído em si.

A visão de cidades vivas, seguras, sustentáveis e saudáveis tornou-se um desejo universal e urgente (3), imensamente reforçado pelo aumento da preocupação com pedestres, ciclistas e com a vida na cidade em geral. É importante que as pessoas sintam-se convidadas a caminhar, pedalar e permanecer nos espaços públicos da cidade em conexão com suas atividades cotidianas. Uma boa política urbana deve concentrar-se em melhorias para o espaço cotidiano comum, integrando algumas oportunidades para crianças, pessoas mais velhas e esportistas nesse espaço.

Ciclovia da Avenida Brigadeiro Faria Lima
Foto Matheus Oliveira Costa, 2019

Junto à tradicional ideia de “família extensa”, cada vez mais temos outras formas de convivência: os adultos solteiros, o casal sem filhos, o casal idoso ao idoso sozinho etc. A sociedade possui perfis diferentes em níveis de instrução, profissional e comportamental (4). A cada um desses grupos corresponde uma ideia diferente do espaço habitado e de seu desempenho, diferente dos caminhos da socialização e dos lugares a ela destinados; uma ideia que muda durante o próprio ciclo de vida.

Para o florescimento da urbanidade, é necessária uma arquitetura com espaço público bem definido, forte contiguidade entre edifícios, frágeis fronteiras entre espaço interno e externo, continuidade e alta densidade do tecido urbano etc (5). A cidade, as ruas e os edifícios são "participantes ativos" na construção da urbanidade e busca-se, por meio dela, atingir uma "cordialidade do espaço" (6), ou seja, criar edifícios com integração, função e articulação.

Assim, para estimular estratégias projetuais que se alinhem com o planejamento urbano humanístico, deve-se considerar o protagonismo da dimensão humana na cidade, antes de pensar no objeto construído em si, ou seja, visando a vida em primeiro lugar, seguida pelo espaço e por último os edifícios.

“No processo de planejamento, em vez da sequência que prioriza os edifícios, depois os espaços e depois (talvez) um pouco a vida, o trabalho com a dimensão humana requer que a vida e os espaços sejam considerados antes das edificações” (7).

Vida

Podemos dizer que a cidade é o progresso da razão humana e essa frase só terá sentido se pusermos em relevo a questão fundamental, isto é, que a cidade e qualquer fato urbano são, por natureza, coletivos (8). Seja na escala da rua, do bairro, da cidade ou da metrópole, as forças dinâmicas do urbanismo são vitais onde quer que homens e coisas se encontrem compactamente e o organismo urbano esteja sujeito às mesmas leis naturais e sociais, independentemente da dimensão.

“A solidão nem sempre resulta de estar sozinho; está relacionada a quão socialmente conectados nos sentimos às pessoas ao nosso redor – e é frequentemente um produto das casas onde moramos” (9).

Quando se reduzem os problemas da cidade a um problema de dimensão significa entender que as soluções estão em projetar no exterior o processo de crescimento, isto é, na desconcentração. Neste caso, hipótese e solução são controvertidas (10).

Uma cidadania ativa e uma vida urbana vibrante são componentes essenciais para uma cidade e uma boa identidade cívica. Para recuperar esses aspectos, onde eles estejam desconsiderados, os cidadãos devem estar envolvidos com o processo de evolução de suas cidades (11). Além disso, ensinar as crianças a respeitar seu ambiente urbano cotidiano é uma forma de prepará-las para participarem do amplo processo de respeitar e melhorar a cidade. As próprias cidades podem representar uma grande ferramenta, um laboratório vivo para a educação.

Crianças brincando na praça Sol Peres, em São Paulo
Foto Matheus Oliveira Costa, 2019

Se reforçarmos a vida na cidade de modo que mais pessoas caminhem e passem um tempo nos espaços comuns, em quase todas as situações, haverá um aumento da segurança, tanto da real quanto da percebida. A presença de “outros” indica que um lugar é considerado bom e seguro. A cidade como local de encontro também é uma oportunidade para trocas democráticas, onde as pessoas têm livre acesso para expressar sua felicidade, tristeza, entusiasmo ou raiva em festas de rua, manifestações, marchas ou encontros (12). Além dos vários encontros diretos com os cidadãos, essas manifestações são uma condição indispensável para a democracia.

Encontro de pessoas na Avenida Paulista
Foto Matheus Oliveira Costa

Avenida Paulista – térreo do edifício Barão de Christina
Foto Matheus Oliveira Costa

Rua Direita no centro de São Paulo
Foto Matheus Oliveira Costa

Uma característica comum da vida no espaço da cidade é a versatilidade e a complexidade das atividades (13). Enquanto caminhamos para nosso destino, observamos pessoas e acontecimentos, somos inspirados a olhar mais atentamente ou mesmo a parar e participar. Entre escolher caminhar por uma rua deserta ou uma rua movimentada, a maioria das pessoas escolheria a rua cheia de vida e atividade. A caminhada será mais interessante e segura.

Ciclofaixa da avenida Brigadeiro Faria Lima
Foto Matheus Oliveira Costa

Uso de bicicletas e patinetes na ciclovia da avenida Paulista
Foto Matheus Oliveira Costa

Na região do Brooklin, em São Paulo, nota-se o esvaziamento da região da avenida Luis Carlos Berrini nos horários não comerciais e em finais de semana. Este fato é consequência da grande quantidade de escritórios existentes na região, desde o fenômeno da migração de empresas para lá em meados da década de 1980, principalmente devido ao seu baixo valor imobiliário na época (14), que resultou na expulsão da população de baixa renda que ali residia. Consequentemente, notamos uma multidão de carros deixando o lugar no fim do expediente de trabalho.

Avenida Chucri Zaidan em horário comercial e Avenida Luis Carlos Berrini em um sábado, com pontos de ônibus vazios
Foto Matheus Oliveira Costa

Ao contrário da Berrini, caracterizada pela ausência de edifícios de uso misto, nota-se uma enorme vitalidade na avenida Paulista, que reúne empresas, comércios e residências no mesmo local e, desde 2015, é fechada para os carros aos domingos de manhã e a tarde. Esta nova dinâmica da avenida trouxe muitas possibilidades pelas pessoas que se apropriam do local, como mostra um estudo realizado pelo Labmob, ITDP, Bike Anjo e Corrida Amiga em 2019, apontando que 73% dos frequentadores da avenida entrevistados afirmaram que o fechamento da avenida para automóveis também os motivou a frequentar outros espaços públicos no dia a dia, 63% dos frequentadores afirmam consumir produtos no local e mais de 80% dos comerciantes notam que o impacto é favorável para seus estabelecimentos (15).

Avenida Paulista em dia comum
Foto Matheus Oliveira Costa

É possível afirmar que a cidade precisa de uma vida urbana diversificada, e esta é beneficiada quando diferentes atividades estão combinadas, deixando espaço para a necessária circulação de pedestres e tráfego, bem como oportunidades para participação na vida urbana.

Espaço

Ao privilegiar a construção do edifício como um objeto autônomo no final do século 20, surgiram muitas áreas sem vida no espaço urbano, as quais dividiram vizinhança, isolaram pessoas e isolaram as edificações do entorno. Sendo conveniente para os automóveis, faltavam características de fechamento e de escala humana nessas áreas (16).

Atualmente, muitas vezes a interação e a multifuncionalidade entre ruas, espaços públicos e as fachadas dos prédios no andar térreo foram ignoradas e negligenciadas. Geralmente, as ruas são vistas apenas como as ligações numa rede de ruas, possibilitando deslocamentos, e isso muitas vezes acabou definindo como as ruas são usadas. Onde o espaço público é inadequado, mal desenhado ou privatizado, a cidade se torna cada vez mais segregada. Onde o andar térreo de um prédio e a sua relação com a rua e o espaço público são ignorados, o seu uso e desenho fazem com que o espaço seja pouco atraente e, às vezes, inseguro (17).

A sociedade deve pressionar os urbanistas e os arquitetos a reforçarem as áreas de pedestres como uma política urbana integrada para desenvolver cidades vivas, seguras, sustentáveis e saudáveis. É importante reforçar a função social do espaço da cidade como local de encontro que contribui para os objetivos da sustentabilidade social e para uma sociedade democrática e aberta (18), distribuindo cuidadosamente as funções da cidade para garantir as menores distâncias entre os seus usos, além de uma massa crítica de pessoas e eventos.

O espaço público é entendido como ruas, edifícios, praças, e tudo o que possa ser considerado parte do ambiente construído. A vida na cidade também deve ser estendida, no sentido mais amplo, como tudo o que acontece entre as edificações, nos terraços, caminhando, pedalando etc (19).

“Prédio, rua e contexto: os níveis não podem ser separados um do outro, eles interagem; se não há pessoas suficientes morando na área, por exemplo, ou quando é escasso o poder de compra, uma loja pode ter um térreo excelente, porém ainda ter dificuldade de sobreviver. Um prédio individual pode ser bem desenhado (de uma perspectiva da rua), porém se o restante da rua tem fachadas cegas, ele não funcionará sozinho. Uma rua pode ser maravilhosa, porém se não está conectada aos fluxos principais no centro urbano, terá mais dificuldade de funcionar” (20).

O projeto da cidade contemporânea confia ao desenho dos espaços abertos a missão de ser o lugar onde se experimentam e aperfeiçoam as novas ideias (21). Uma cidade que convida as pessoas a caminhar deve ter uma estrutura razoavelmente coesa que permita curtas distâncias a pé, espaços públicos atrativos e uma variedade de funções urbanas. Esses elementos aumentam a atividade e o sentimento de segurança dentro e em volta dos espaços urbanos. É imprescindível o aumento da “mobilidade verde” (22), conceito que se refere aos meios de deslocamento sustentável quando os usuários se sentem seguros e confortáveis caminhando ou indo de bicicleta para e a partir dos ônibus, trens e metrôs.

“Ao pensar numa cidade, o que nos vem a cabeça são suas ruas. Se as ruas de uma cidade parecerem interessantes, a cidade parecerá interessante; se elas parecerem monótonas, a cidade parecerá monótona” (23).

O bairro e o maior número possível de segmentos que o compõem, deve atender a mais de uma função principal; estas devem garantir a presença de pessoas que saiam de casa em horários diferentes e estejam nos lugares por motivos diferentes, mas sejam capazes de utilizar boa parte da infraestrutura. A maioria das quadras deve ser curta, ou seja, as ruas e as oportunidades de virar esquinas devem ser frequentes. Deve haver densidade suficientemente alta de pessoas, sejam quais forem seus propósitos. Isso inclui alta concentração de pessoas cujo propósito é morar lá (24).

Planos de extensão ou revitalização urbana podem minimizar os custos do transporte, otimizar o uso do solo e a organização dos espaços urbanos abertos. Planos de melhoramento e modernização urbanos podem aumentar as densidades residencial e econômica assim como promover comunidades socialmente mais integradas.

Para organizar o espaço da cidade de São Paulo, o Plano Diretor Estratégico de 2014 dividiu-a em macrozonas e macroáreas, áreas homogêneas que orientam, ao nível do território, objetivos específicos de desenvolvimento urbano e a aplicação de instrumentos urbanísticos e ambientais (25).

Macrozonas e macroáreas do PDE SP 2014
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo

A rede estrutural de transportes coletivos é o sistema de infraestrutura que propicia a implantação dos eixos de estruturação da transformação urbana, considerando as linhas, ativas ou em planejamento, do trem, metrô, monotrilho e corredores de ônibus municipais e intermunicipais de média capacidade com operação em faixa exclusiva à esquerda do tráfego geral. Esses eixos determinam áreas de influência potencialmente aptas ao adensamento construtivo e populacional e ao uso misto entre usos residenciais e não residenciais, com coeficiente de aproveitamento igual a 4 e possibilidades de aumento da área construída ao utilizar recursos, como as fachadas ativas de comércios e permeabilidade através da fruição pública, além do estimulo ao uso de transporte público com o desincentivo para vagas de carros, agora limitadas a uma vaga por unidade habitacional.

Eixos de estruturação urbana – qualificação urbanística
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo

Eixos de estruturação urbana – qualificação urbanística
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Urbano da Prefeitura de São Paulo

Entretanto, atualmente podemos notar que o mercado imobiliário se adaptou para continuar atendendo interesses conservadores mesmo com as diretrizes do plano. Um exemplo é a avenida Rebouças e seu entorno imediato, na zona Oeste de São Paulo, com corredores de ônibus, estações de metrô (Clínicas, Oscar Freire e Fradique Coutinho) e da CPTM (Hebraica-Rebouças). Esse eixo passa por uma intensa transformação urbana, com o surgimento de cerca de 27 novos empreendimentos imobiliários residenciais desde o PDE SP 2014, conforme levantamento em campo realizado em maio de 2020.

Localização dos empreendimentos imobiliários lançados entre 2014 e 2020 no eixo da Rebouças
Elaboração Matheus Oliveira Costa sobre fonte do Google Maps

Caminhando pela própria avenida Rebouças ou por ruas próximas que são atendidas pela Zona de Estruturação Urbana do plano, como a rua Alves Guimarães, foram identificados lançamentos imobiliários com anúncios de apartamentos de diferentes tipologias dentro do mesmo edifício, nos quais as unidades com área abaixo de 30m² não possuem vaga de garagem, enquanto as ofertas de áreas maiores possuem duas vagas. Ou seja, a proposta da legislação vigente que busca limitar a uma vaga por unidade nos novos empreendimentos é desviada, visto que nos anúncios as unidades menores são lançadas visando atrair investidores ou plataformas de locação temporária, e as demais unidades, que atraem possíveis moradores fixos, continuarão possibilitando e estimulando que se tenha mais de um automóvel, contradizendo o incentivo de uso ao transporte público por todos.

Edifícios

Ao longo da história de São Paulo até pouco depois da metade do século 20, muito do espaço central da cidade foi projetado como ponto de encontro e de diversas possibilidades de convívio, seja nas ruas ou nos espaços privados de caráter público, em edifícios que hoje consideramos icônicos justamente por considerarem a experiência das pessoas com o seu entorno. Bons exemplos são: a Galeria Metrópole, da década de 1960, projetada pelos arquitetos Gian Carlo Gasperini e Salvador Candia, onde a experiência do pedestre atravessa a relação da praça Dom José Gaspar externa ao vazio central convidativo que, abraçado pelos comércios, faz a suave transição para a torre de unidades privativas; o Edifício Copan, do arquiteto Oscar Niemeyer, São Paulo, que teve sua construção iniciada em 1952 e se destaca por seguir a topografia do terreno no pavimento térreo, composto por comércios, proporcionando ao visitante que a mudança do espaço da rua para o interno do edifício seja discreta, com a ideia de que o pedestre só sai do espaço público ao sentir o nível retificado pela soleira da entrada das lojas; e, o Conjunto Nacional, projetado pelo arquiteto David Libeskind, inaugurado em 1958, que ocupa sua quadra com fachadas convidativas de comércios e com acessos que possibilitam cruzar as avenida Paulista, alameda Santos, rua Augusta e rua Padre João Manuel ao percorrer o térreo do edifício, além de ter seu piso construído em mosaico português, o mesmo que havia em todas suas calçadas, considerando que estas se estendem ao interior do edifício, mas, que em 2007 houve a substituição por placas de concreto na calçada da avenida Paulista.

Galeria Metrópole: a esquerda, o vazio central. Ao fundo, a abertura para a praça Dom José Gaspar
Foto Matheus Oliveira Costa

Nível térreo do Edifício Copan, seguindo a topografia do terreno
Foto Matheus Oliveira Costa

Relação da calçada com o espaço interno do Conjunto Nacional
Foto Matheus Oliveira Costa

O edifício é como signo parte integrante de um todo signíco, que é representado pelo contexto, em que seus significados estão incondicionalmente atados (26). A perda de significado em um implicará na perda de significado no outro. A arquitetura e o urbanismo devem ser analisados como um sistema formado pelo conjunto de elementos heterogêneos (27). Cada parte do sistema está em função de outra.

As forças do mercado e as tendências arquitetônicas do final do século 20 ao início do 21 em São Paulo saíram das inter-relações e espaços comuns da cidade, para os edifícios individuais cada vez mais isolados e autossuficientes em relação ao entorno, o que mostra a importância de reforçar a reflexão de que edifícios não são simples mercadorias. Eles formam o pano de fundo de nossa vida na cidade. A arquitetura é a arte à qual estamos expostos dia e noite. Ela amplia ou reduz nossa vida porque cria ambientes onde nossas experiências cotidianas acontecem, sejam elas comuns ou originais (28). Os edifícios ampliam a esfera pública de várias formas: eles conformam a silhueta da massa edificada, marcam a cidade, conduzem a exploração do olhar, valorizam o cruzamento das ruas. Mas mesmo no nível mais simples, a forma como os detalhes do edifício se relacionam com a escala humana, ou com o tato, tem um importante impacto no cenário urbano. O menor detalhe tem efeito crucial na totalidade. Qualquer edifício que busque alcançar a beleza – ou seja, que queira transcender o cotidiano e elevar o espírito daqueles que o utilizam – deve considerar essas questões. Não devemos perguntar o que a cidade pode fazer pelo edifício, mas o que o edifício pode fazer pela cidade. Uma resposta poderia ser: térreos atraentes que se projetam bem à frente em relação aos andares superiores (29).

O andar térreo pode ocupar somente 10% de um prédio, mas ele determina 90% da contribuição do prédio à experiência do entorno (30). Este dado é reforçado ao dizer que uma vez definidos os espaços públicos e as conexões, as edificações podem ser localizadas para garantir a melhor coexistência possível entre vida, os espaços e os edifícios (31). O tratamento dos espaços de transição da cidade, em especial, os andares mais baixos dos edifícios, tem influência decisiva na vida no espaço urbano. Trata-se da zona onde se caminha quando se está na cidade; São as fachadas que se vê e se experimenta de perto, portanto mais intensamente. É o local onde se entra e sai dos edifícios, onde pode haver interação da vida dentro das edificações e da vida ao ar livre. É o local onde a cidade encontra as edificações.

Edifícios com fachadas ativas na avenida Paulista
Foto Matheus Oliveira Costa

 

Fachadas fechadas, sem vida, tornam as pessoas indiferentes, enquanto fachadas abertas e interessantes ativam usuários urbanos, ao contrário de fachadas que interagem com o espaço público, que são ativas.

Fachada fechada de condomínio na Avenida Santo Amaro, São Paulo
Foto Matheus Oliveira Costa

“Em frente das fachadas ativas, os pedestres andam mais devagar, mais pessoas param, e mais atividades acontecem nos segmentos das ruas mais simpáticas, mais povoadas. Quando somamos tudo, vemos que o número de paradas e outras atividades é sete vezes maior em frente de fachadas ativas, em comparação a fachadas passivas” (32).

Os prédios devem dialogar com sua inserção urbana, afinal, são parte da cidade. Para uma cidade ser sustentável para as próximas gerações, é primordial que se pense em projetos habitacionais coletivos ao invés de unifamiliares, além da sobreposição de funções no lugar da segregação de usos (33). Ao abrir os espaços de transição entre a cidade e os edifícios, a vida no interior das edificações e a vida nos espaços urbanos funcionam conjuntamente. Os edifícios de uma rua preparada para receber estranhos e garantir a segurança tanto deles quanto dos moradores devem estar voltados para a rua (34). Se um projeto elaborado para um distrito no qual haja carência de pessoas ao longo do dia não atuar na causa do problema, só conseguirá substituir a velha estagnação por uma nova.

Os conceitos de público e privado podem ser vistos e compreendidos, em termos relativos, como uma série de qualidades espaciais que, diferindo gradualmente, referem-se ao acesso, à responsabilidade, à relação entre a propriedade privada e à supervisão de unidades espaciais específicas. Entre o efetivamente público e o efetivamente privado existe a possibilidade de uma gama de espaços intermediários que, relacionados entre si, podem variar no grau de acessibilidade (35). A permeabilidade (física e visual) é uma das qualidades inerentes à vitalidade urbana que deve ser considerada no projeto do edifício. Apenas lugares que são acessíveis ao público podem oferecer alternativas de escolha (36). A capacidade de um ambiente de conceder alternativas de penetração, de um lugar à outro, é a medida de sua vitalidade. O ambiente construído deve proporcionar aos seus usuários uma proposta essencialmente democrática, enriquecendo suas oportunidades pela maximização do grau de escolha disponível a eles. Assim, quanto maior for o número de acessos, maior permeabilidade e, portanto, mais possibilidades de escolha e de desenvolvimento de atividades ao longo de seus limites.

Os acessos do edifício devem ser “sociáveis, fáceis de entrar e sair” (37). Quando as entradas, praças, galerias e pátios se direcionam para a rua, a transição do espaço privado para o público faz com que as pessoas se cruzem no percurso de suas atividades diárias. Além disso, é importante que esses espaços funcionem como bordas suaves do espaço privado, que propiciem momentos de descanso, com bancos sombreados pelas árvores, pergolados e oportunidades de relaxar habitualmente no exterior ao apartamento. A ampliação das oportunidades de repouso onde ocorre a conexão para as atividades cotidianas é uma valiosa contribuição para gerar vida entre os edifícios.

Além disso, a densidade habitacional, que se mede pela razão entre o número de habitações e a área que se analisa, não significa apenas um balanço entre pessoas e usos, mas também possibilita maneiras mais sustentáveis para vivermos em sociedade, tornando a “cidade como casa” (38) dos cidadãos mesmo fora de suas residências. E, no projeto do edifício, deve ser considerado que durante seu ciclo pós construção, mudanças podem ocorrer entre os usos residenciais, corporativos e comerciais.

“Se o objetivo é uma vida urbana movimentada, as densidades habitacionais devem subir até onde for necessário para estimular a diversidade potencial máxima do distrito. Por que desperdiçar o potencial do distrito e da população da cidade de criar uma vida urbana atraente e intensa?” (39).

Considerações finais

Agora, o desafio que enfrentamos é de tornar as cidades sustentáveis. E isso exige mudanças fundamentais no comportamento humano, na prática do poder público, no comércio, na arquitetura e no planejamento urbano. O poder municipal e uma cidadania participativa equilibram a falta de eficiência dos governos federais de lidar com a diversidade e a especificidade dos problemas urbanos (40).

Além disso, a disputa de espaço entre empreendedores, o crescimento do número de pessoas com níveis mais elevados de educação, orientadas para o urbano, o número maior de moradias com áreas reduzidas para uma ou duas pessoas, além do desincentivo ao uso do automóvel individual, contrário ao que era estimulado no final do século 20, não provocam somente uma reavaliação da cidade como um todo, mas faz também com que a experiência de viver o espaço público da cidade se torne algo cada vez mais importante.

Para compreender as cidades, precisamos admitir de imediato, como fenômeno fundamental as combinações ou as misturas de usos, não os usos separados. Vale dizer que a cidade contemporânea deve ser lugar de continua e tendencial destruição de valores posicionais, de progressiva uniformização e democratização do espaço urbano (41).

Assim, o urbanismo e a arquitetura têm necessidade de refletir experimentalmente sobre sistemas de compatibilidade e incompatibilidade, distâncias e proximidades, mescla de pessoas e a diversidade de atividades, mobilidade urbana, densidade e, sobretudo, sobre como a dimensão humana interage com as características dos espaços públicos, como os edifícios se relacionam com seu entorno e, assim, sobre a forma da cidade e as estratégias das quais ela possa resultar.

notas

1
MARCHELLI, Maria Victoria. Urbanidade: verticalização, densidade e percepção nos espaços urbanos. Dissertação de mestrado. São Paulo, FAU Mackenzie, 2016.

2
ROSSI, Aldo. A arquitetura da cidade. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

3
GEHL, Jan. Cidades para pessoas. São Paulo, Perspectiva, 2017.

4
SECCHI, Bernardo. Primeira lição do urbanismo. São Paulo, Perspectiva, 2012.

5
HOLANDA, Frederico. Urbanidade arquitetônica e social. I Encontro Nacional da Associação da Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo: Arquitetura, Cidade, Paisagem e Território: percursos e prospectivas, Rio de Janeiro, 29 de nov. 2010 a 3 de dez. de 2010.

6
AGUIAR, Douglas. Urbanidade e estrutura espacial. Cadernos Pro Arq, Rio de Janeiro, PPGAU FAU UFRJ, 2015, p. 57-67.

7
GEHL, Jan. Op. cit., p. 198.

8
ROSSI, Aldo. Op. cit.

9
KIM, Grace. Entrevista citada em LIMA, Juliana Domingos de. Como a arquitetura urbana pode combater a solidão. Revista Nexo, São Paulo, 17 dez. 2018 <https://bit.ly/3t2kD1s>.

10
ROSSI, Aldo. Op. cit.

11
ROGERS, Richard George; GUMUCHDJIAN, Philip. Cidades para um pequeno planeta. Barcelona, Gustavo Gili, 2012.

12
GEHL, Jan. Op. cit.

13
Idem, ibidem.

14
FIX, Mariana; Parceiros da exclusão, São Paulo, Boitempo, 2001.

15
LABORATÓRIO DE MOBILIDADE SUSTENTÁVEL; INSTITUTO DE POLÍTICAS DE TRANSPORTE E DESENVOLVIMENTO; BIKE ANJO; CORRIDA AMIGA. Avaliação do Impacto da Paulista aberta na Vitalidade Urbana. Rio de Janeiro, UFRJ, 2019.

16
KOETTER, Fred; ROWE, Colin. Cidade-colagem. In NESBITT, Kate (Org.). Uma Nova Agenda para a Arquitetura. Antologia Teórica 1965-1995. São Paulo, Cosac Naify, 2006.

17
GEHL, Jan. Op. cit.

18
Idem, ibidem.

19
GEHL, Jan; SAVARRE, Birgitte. A vida na cidade: como estudar. São Paulo, Perspectiva, 2018.

20
KARSSENBERG, Hans (Org.). A cidade ao nível dos olhos: lições para os plinths. Porto Alegre, Edipucrs, 2015, p. 15.

21
SECCHI, Bernardo. Op. cit.

22
GEHL, Jan. Op. cit.

23
JACOBS, Jane. Morte e vida de grandes cidades. São Paulo, WMF Martins Fontes, 2018, p. 30.

24
Idem, ibidem.

25
SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO URBANO DA PREFEITURA DE SÃO PAULO. Lei no 16.050, de 31 de Julho de 2014 – Plano Diretor Estratégico de SP – Texto Ilustrado. São Paulo, Prefeitura Municipal de São Paulo, 2014.

26
SCOTT BROWN, Denise; VENTURI, Robert. Architecture as signs and systems: For a mannerist time. Cambridge, Harvard University Press, 2004.

27
MONTANER, Josep Maria. Sistemas arquitectónicos contemporâneos. Barcelona, Gustavo Gili, 2008. Apud NESBITT, Kate (Org.). Op. cit.

28
ROGERS, Richard George; GUMUCHDJIAN, Philip. Op. cit.

29
GEHL, Jan. Op. cit.

30
KARSSENBERG, Hans (Org.). Op. cit.

31
GEHL, Jan. Op. cit.

32
KARSSENBERG, Hans (Org.). Op. cit., p. 33.

33
DEZA, Aitor; MOZAS, Javier; OLLERO, Alex; PER, Aurora. Why Density? Debunking the myth of the cubic watermelon. Vitoria-Gasteiz, A+T Research Group, 2015.

34
JACOBS, Jane. Op. cit.

35
HERTZBERGER, Herman. Lições de arquitetura. São Paulo, Martins Fontes, 2006.

36
BENTLEY, Ian; ALCOCK, Alan; MURRAIN, Paul; MCGLYNN, Sue; SMITH, Graham. Responsive environments: a manual for designers. Londres, Architectural Press, 1985.

37
GEHL, Jan. La humanizacion del espacio urbano: la vida social entre los edifícios. Barcelona, Reverté, 2013.

38
DEZA, Aitor; MOZAS, Javier; OLLERO, Alex; PER, Aurora. Op. cit.

39
JACOBS, Jane. Op. cit.

40
ROGERS, Richard George; GUMUCHDJIAN, Philip. Op. cit.

41
SECCHI, Bernardo. Op. cit.

sobre o autor

Matheus Oliveira Costa é arquiteto e urbanista graduado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Presbiteriana Mackenzie, com graduação sanduíche pela Curtin University com bolsa do CNPq. Atualmente é mestrando em Urbanismo Moderno e Contemporâneo pelo Programa de Pós Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

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