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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
Uma série de oficinas foi oferecida ao povo de Curitiba durante seis anos para observar o espaço urbano. Comparamos nossa proposta com outros modelos de caminhadas, discutindo nosso método de trabalho e os resultados.

english
A series of workshops were offered to the people of Curitiba for six years to observe urban space. We compared our proposal with other walking models, discussing our working method and results.

español
Se ofreció una serie de talleres a la gente de Curitiba durante seis años para observar el espacio urbano. Comparamos nuestra propuesta con otros modelos de caminatas, discutiendo nuestro método de trabajo y los resultados.


how to quote

FREITAS, Mário Sérgio; CODOGNOTO, Rafael. Caminhadas observacionais de Curitiba. Uma experiência urbana de 152 km. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 249.03, Vitruvius, fev. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.249/8008>.

Contexto e fundamentos do projeto

Que benefícios teria alguém por se deslocar até um bairro da sua própria cidade, passando horas com um grupo de desconhecidos que caminham procurando coisas para observar?

Foram oficinas dessa natureza que, por iniciativa livre, promovemos em Curitiba num projeto educacional que visou vivenciar a pé o ambiente urbano com atenção ao campo visual. As Caminhadas Observacionais de Curitiba – COC ocorreram de 2010 a 2016, em 24 circuitos com cerca de 6 km de extensão, percorridos em quatro horas. As inscrições, gratuitas, se limitavam a uma lista de assinaturas, não havendo patrocínio, nem divulgação em grande escala, e tampouco declarações curriculares. O número médio foi de 32 inscritos em cada edição.

Argumentos de fundo sociológico podem justificar o interesse do público por essas oficinas.

Inconscientemente, ao transitar no espaço urbano o caminhante filtra sua percepção do espaço, ignorando grande volume de informação visual. Uma espécie de “olhar naturalizado” (1) faz com que ele não enxergue conteúdos potencialmente interpretáveis, mesmo estando acessíveis à sua visão. Por exemplo, os pedestres no centro de Curitiba passam sobre os mosaicos de calçada (2) geralmente sem se dar conta das diferenças entre os desenhos e seus significados. Vemos o voo de pombos no prédio dos Correios, as liras na praça Carlos Gomes, padrões de cestos indígenas, as flores dos ipês-rosa que arborizam a rua Barão do Serro Azul, os arcos neogóticos nos acessos à Catedral, e o cruzamento de duas calçadas com pinhões formando a rosa-dos-ventos.

Além disso, caminhar em ritmo contemplativo desvia um pouco o olhar dos telefones celulares com acesso à internet, que têm banalizado a comunicação por mensagens e o fluxo de fotos captadas, compartilhadas e logo esquecidas. O apego exagerado a tais recursos pode restringir a interação do indivíduo com o meio, gerando relações de dependência e ansiedade (3), como a nomofobia, medo irracional de se sentir desconectado (4). Projetos educacionais, sejam formais ou informais, podem atenuar esses danos. Uma opção alternativa de lazer que escape da lógica disciplinante da cultura de consumo pode dar acesso a conteúdo que alimentam a criatividade. Abre-se assim o caminho para distinguir os eventos cotidianos comuns, que simplesmente "se passam”, das experiências que de fato "nos acontecem" (5). Aqui entra o papel de um mediador que recupere no cidadão o contato visual mais íntimo com o ambiente em que se encontra, despertando os sentimentos proporcionados por vivenciar sensorialmente, usando o próprio corpo, uma realidade tridimensional que pode ser fisicamente localizada no espaço e no tempo, em contraste com o mundo paralelo chamado de virtual (6).

O projeto das COC, ao multiplicar um conhecimento que foi ao longo de anos desenvolvido e praticado pelos autores deste artigo, deixou total liberdade para que cada participante fizesse seu próprio exercício. Não apenas reparando naquilo que é academicamente artístico, célebre, monumental, mas estendendo um "olhar flutuante" a focos de atenção às vezes efêmeros, que representam tipos de interesse ignorados pelos mapas turísticos. Nesse sentido, o caminhar também significa “atuar” sobre os espaços urbanos, num processo cognitivo em que o indivíduo não apenas “vê”, mas “cria” as paisagens que percorre, participando de um jogo em que se descortina uma “cidade nômade” que vive “dentro da cidade sedentária” (7).

Que respostas davam os inscritos a tais estímulos? Antecipamos aqui alguns dos resultados apresentados no final. A proposta induzia trocas de informação e relações amigáveis entre as pessoas, que potencializavam o amadurecimento das discussões. Uma das correntes mais consolidadas da Educação se baseia no socio-interacionismo (8), defendendo que em todos os estágios do desenvolvimento humano os conteúdos são assimilados pelo sistema cognitivo a partir do relacionamento com o próximo e com o ambiente que o cerca, para só depois ser internalizado individualmente. De fato, a maioria guardava o telefone celular ou usava só para tirar fotos. Alguns produziam breves esboços à mão livre, ou colagens compostas de sementes e penas encontradas no caminho, ou escreviam haicais. Caminhar na rua não requer gastos e permite roupas simples, o que criou um clima democrático possibilitando que mesmo pessoas com rendas familiares muito diversas tivessem contato próximo e compartilhassem a experiência de observar. O mesmo pode ser dito sobre escolaridade, faixa etária, gênero, e área profissional. Às vezes os comentários do grupo eram surpreendentes. Por exemplo, ao apontarmos um item bizarro visto numa calçada, tivemos como retorno esse jogo de palavras: “Não sei o que dá mais nojo, se é os dentes sujando a pedra, ou a pedra sujando os dentes” (S.M.D., estudante de História). No dia em que foi feito o rejunte alguém aproveitou para enterrar uma dentadura. Atribuir significação a um gesto como esse abre uma multiplicidade de interpretações que pode ir muito além da motivação real que teve o autor da intervenção.

Quanto aos passantes e moradores diante da passagem do grupo, houve diferentes interações, desde questionar a tomada de fotos, até juntar-se de improviso aos caminhantes. Era frequente a perplexidade diante de não-turistas reunidos para visitar as ruas de um bairro. O tratamento costumava ser gentil e aberto, inclusive nos convidando para entrar na propriedade e observar detalhes não visíveis da rua. Moradores idosos vinham ao portão com narrativas sobre o passado do bairro. Numa ocasião, ao admirarmos as citações de Paulo Leminski grafitadas sobre um tapume, três adolescentes se apresentaram como autores, um deles amigo da família do poeta. Tais encontros efêmeros, que ocorrem graças aos cidadãos compartilharem um espaço aberto no cotidiano, convidam a refletir sobre a arte, a memória e os estilos de vida locais, as ditas “com-vivências inesperadas” (9).

Dentadura enterrada no cimento
Foto Mário Sérgio Freitas, 2012

 

Curitiba se mostrou propícia para realizarmos o projeto, por ter bairros impregnados da memória de imigrantes de várias etnias, obras de arte em espaço público, ruas e praças generosamente arborizadas. Um olhar aguçado percebe nos jardins, muros, postes e calçadas as manifestações da criatividade dos residentes. Nossas pesquisas de campo para preparar os itinerários também revelaram territórios pouco convencionais, vazios de transição onde se pisa sobre rastros invisíveis (10), as dobras da cidade onde se esconde o seu inconsciente. São paisagens urbanas que elucidam sobre os conceitos de “lugar”, visto como subjetivo e dinâmico uma vez que envolve o uso e a significação, e de “espaço”, exclusivamente de caráter geométrico, objetivo e estacionário (11). Assim incluímos nas COC o trânsito, ou pelo menos a visualização, de exemplos: uma ampla área que passou anos ociosa próximo ao Centro, os restos da demolição de uma casa, uma passagem que liga duas ruas sem saída, galpões abandonados de uma antiga serraria, um interior sem piso e sem telhado em pleno Centro (encontre o carro!), e o entorno da via férrea Norte-Sul. A experiência do caminhante, ao fazer a travessia da Curitiba do senso comum para esta outra, materializa em pequena escala o trecho da obra de Italo Calvino em que o narrador descreve o direito e o avesso da cidade fabulosa de Moriana que, como os dois lados de uma folha de papel, "não podem se separar nem se encarar" (12).

Fazemos uma ressalva quanto à reputação de cidade-modelo que tem Curitiba em âmbito nacional. Aqui são compartilhados os mesmos problemas de outras capitais brasileiras. As galerias pluviais sob os bueiros do calçadão ajardinado do centro exalam odores do lançamento irregular de esgoto sanitário (13). Os investimentos públicos nos bairros, em vez de combaterem as desigualdades entre os moradores, agravam a segregação social, tornando invisíveis na mídia os que vivem nas regiões menos salubres(14). Quanto à violência urbana, um levantamento recente revelou o índice de 31,7 homicídios anuais por 100 mil habitantes, muito próximo dos 34,9 computados no Rio de Janeiro (15). Mas entre essa descrição pessimista e a visita-padrão às principais atrações (Ópera de Arame, Museu Oscar Niemeyer, Jardim Botânico, ou a gastronomia de Santa Felicidade), existe um amplo espectro de possibilidades a ser explorado.

Exemplos de “espaços de transição” identificados em Curitiba
Foto Mário Sérgio Freitas, 2012-2015

A atual capital paranaense foi fundada em 1693, ou seja, antes dos primeiros modelos rudimentares de uma máquina a vapor e de toda a produção musical de Johann Sebastian Bach. A história da construção da cidade transparece na rica diversidade arquitetônica, tanto nos bairros vizinhos do Centro como nos mais afastados, mesmo sem nos atermos a monumentos que remontam à época colonial como a Casa Romário Martins. Moradas simples datando de diferentes períodos, como as casas em madeira com beirais de lambrequins (16), fachadas em alvenaria com elementos ecléticos, acabamentos prismáticos do período Art Déco, paredes texturizadas e janelinhas repetidas do estilo missões, paredes em falso enxaimel de inspiração normanda, ou telhados assimétricos e marquises típicas do “modernismo popular”. Reconhecer essas diferenças no ambiente urbano pode ser um primeiro passo para romper o olhar naturalizado.

Estilos arquitetônicos em casas simples de Curitiba
Foto Mário Sérgio Freitas, 2012-2019

Em suma, nosso projeto teve por objetivo oferecer gratuitamente para o público local atividades alternativas na forma de caminhadas nos bairros, para observar o campo visual e discutir sobre suas possíveis significações.

O clima de Curitiba é favorável para atividades ao ar livre, sendo infundada a fama de que “o sol quase nunca aparece”. Devido à situação geográfica, há bruscas mudanças do tempo ensolarado para o encoberto, assim como períodos de temperaturas baixas se comparadas a outras capitais brasileiras. Mas os mapas das outras variáveis climáticas medidas ao longo de trinta anos, indicam que a precipitação acumulada é equiparável à de Brasília, e a taxa de insolação total, à do Rio de Janeiro (17). De fato, as COC ocorreram ao ritmo de uma por estação do ano, e quando houve chuva, ficou quase sempre limitada a breves pancadas ou garoa fina. Tivemos 19 em 24 edições com tardes inteiramente secas (fossem quentes ou frias), e só uma vez a caminhada precisou ser adiada devido a uma chuva insistente.

Mapas comparando o clima de Curitiba com o de outras regiões do Brasil
Elaboração INMET (2011) com indicações gráficas de Mário Sérgio Freitas

A ideia das COC nasceu no Centro de Artes da Universidade Federal do Paraná – UFPR, durante uma oficina de férias sobre arte e cidade cursada pelo primeiro autor deste artigo (18). Comentando em aula alguns subsídios teóricos apresentados, citou um exemplo notável descoberto num passeio com o segundo autor no bairro Mercês: Um morador levou sua criatividade ao paroxismo ao instalar torres e arcos decorativos na calçada em frente à sua casa, acumulando embalagens coloridas de refrigerante e outros produtos. Identificamos esse trabalho com um padrão já estudado dentro e fora do Brasil, de manifestações de amadores que passam anos a construir sua “arquitetura fantástica” (19), ou seu "mundo de fantasia" (20). Foi então organizada, para o grupo e eventuais acompanhantes, uma oficina de uma tarde para reconhecimento desta e outras atrações do bairro, que consistiu na primeira das Caminhadas Observacionais de Curitiba.

Exemplo de “mundo de fantasia” encontrado pelos autores em Curitiba
Foto Rafael Codognoto, 2010

O preparo do itinerário contou com a colaboração do segundo autor, que participou juntamente com as trinta pessoas que vieram fazer a caminhada. Numa conversa final, os inscritos sugeriram que houvesse novos percursos em outros bairros. Optamos por realizar quatro edições por ano, e o êxito do projeto se manteve contínuo ao longo de 24 edições. Deixamos disponíveis na internet todos os projetos para quem se interessasse em repetir um itinerário com outro grupo. Completado o ciclo, decidimos interromper as COC para um balanço e avaliação.

Confronto com outras caminhadas

Houve na história da Arte pontos de mutação centrados na experiência de caminhar. Partindo do nomadismo paleolítico, chega-se a exemplos famosos como a figura do flâneur. O movimento Dada realizou visitas aos “locais comuns” de Paris, despertando uma dimensão onírica que levou à revelação do inconsciente da cidade pela deambulação surrealista. Revisões como esta já se encontram publicadas, como na obra de Francesco Careri anteriormente citada (21), que menciona outros momentos importantes como a passagem da Internacional Letrista à Situacionista, a do Minimalismo à Land art, e conclui com a caminhada de quatro dias em torno de Roma, feita em 1995 pelo grupo Stalker.

Histórias sobre Curitiba foram levantadas pelo pesquisador conhecido como Urbenauta, que não apenas caminhou pelos bairros, como também navegou num pequeno barco pelos rios da cidade. Uma série de livros, um deles contemplando lugares percorridos em três diferentes edições das COC (22), comentam sobre a Natureza, as construções notáveis, o artesanato e a gastronomia.

A proposta das COC difere em dois pontos principais dos percursos a pé realizados em outras cidades: o foco das observações e o público-alvo.

Nossos itinerários estão até hoje disponibilizados na internet (23), incluindo mapas e a pré-visualização de alguns itens significativos, aos quais chamamos “marcos de interesse”. A adoção de um “olhar flutuante” permitia que cada um descobrisse por si elementos imprevistos. Mas ao passo que o foco das COC independe de categorias, as outras caminhadas se concentram, em sua maioria, num tema específico. Sobre esses roteiros temáticos, experimentá-los ao vivo, sobretudo em viagens, representou para os autores uma etapa importante no desenvolvimento do olhar. As figuras exemplificam com os cenários que inspiraram os livros de Franz Kafka vistos do fosso junto ao Castelo de Praga; as ruas que acompanham os marcos de bronze ao longo do meridiano de Paris (medalhões Arago); ou o percurso pelas fachadas Art Déco no Rio de Janeiro.

As COC têm interesses menos delineados, voltados para itens encontrados em qualquer bairro, como curiosidades em letreiros, trabalhos criativos em frente às casas, ou efeitos da interação casual entre a Natureza e as construções, numa busca mediada pelo “olhar flutuante”. Na figura exemplificada com o nome “AMÉRICA” escrito ao contrário; uma escultura de picaretas funcionando como lixeira e caixa de correspondência; estalactites de infiltração numa marquise; e raízes monstruosas agarradas a uma parede de madeira, restantes da poda de uma costela-de-adão. Também são valorizadas as transformações nos trechos percorridos em relação ao que havia anteriormente, como um novo grafite, corte de árvores, uma obra de arte num jardim, uma casa demolida. Esta é a cidade efêmera, que perturba a ilusão da paisagem fixa e imutável.

Caminhadas temáticas existentes em Praga, Paris e Rio de Janeiro
Foto Mário Sérgio Freitas, 2008-2013

A propósito, o afastamento das ideias pré-concebidas que obstruem a liberdade interpretativa do campo visual vem de encontro a um método de pesquisa acadêmica envolvendo caminhadas urbanas no interior de São Paulo, com foco diferente do nosso, mas com pressupostos muito semelhantes (24).

Além de exercitarem o “olhar flutuante”, as COC se diferenciam dos roteiros disponíveis na internet por estes se destinarem, em sua maioria, a visitantes externos. Nossas oficinas foram sempre concebidas para atrair os que se interessam por experiências alternativas envolvendo sua própria cidade.

Exemplos de marcos de interesse levantados no projeto
Foto Mário Sérgio Freitas, 2011-2015

Como preparar uma caminhada observacional?

O método desenvolvido para a preparação das COC envolvia a escolha do local e a data, várias idas ao bairro para a pesquisa de campo em que selecionávamos os trechos de maior interesse, o traçado do trajeto usando ferramentas digitais, a escolha do ponto exato de encontro e horário para iniciar o percurso, a realização de um teste-piloto, e a produção do material de divulgação. Imaginando o interesse dos leitores em reproduzir ou adaptar nosso método em outras localidades, desenvolvemos abaixo os detalhes de cada etapa.

Escolha do bairro

No contexto das COC, chamamos genericamente de “bairro” a uma região da cidade que independe das fronteiras oficiais. A diversidade de ambientes em Curitiba foi valorizada escolhendo um bairro que contrastasse com o da caminhada anterior: residenciais ou comerciais, sujos ou limpos, próximos ou distantes, antigos ou novos, desertos ou populosos, ricos ou pobres, montanhosos ou planos. Incluímos a antiga área industrial do Rebouças, a Vila Torres que é tida como perigosa, e o próprio Centro.

Pesquisa de campo

Por quatro ou cinco vezes, íamos ao bairro escolhido percorrer algumas ruas numa deriva (25). Identificávamos os trechos com os mais diversificados “marcos de interesse” que seriam incluídos no projeto, conforme os mapas e indicações esboçados à mão. Procurávamos não invadir a privacidade das casas com fotos.

Trajeto, ponto de encontro e horário

Os resultados das pesquisas de campo eram trazidos a um computador de mesa com o programa Google Earth. Localizávamos com marcadores todos os itens observáveis, para então procurar a solução mais razoável que contemplasse a maioria deles em um circuito fechado. Incluíamos passagens desconhecidas existentes ao final de ruas sem saída, e também rampas íngremes, que contam a história geológica do local e permitem vistas mais amplas. Esse era um trabalho feito “a olho”, sem adotar algoritmos aproximativos (como os existentes na teoria dos grafos), conforme exemplificado na captura de tela do programa, antes e depois da definição do itinerário da 10a COC.

Esboços à mão livre feitos nas pesquisas de campo
Foto Mário Sérgio Freitas, 2019

Como ponto de encontro escolhíamos igrejas, prédios públicos, postos de gasolina, praças. O percurso durava cerca de quatro horas, portanto pesquisávamos um horário de término perto do pôr do sol, que em Curitiba pode variar de quase duas horas do verão para o inverno.

Com tudo estabelecido, usávamos um sábado para ir mais uma vez ao bairro e testar o itinerário completo, confrontando com o mapa e buscando marcos de interesse que ainda não tinham sido detectados.

Divulgação

Os projetos das primeiras COC, até 2012, foram disponibilizados na página pessoal do primeiro autor, e os convites foram feitos por uma lista de e-mails acumulada, baseada nas presenças das edições anteriores. A partir de 2012 criamos uma página Facebook (26). O documento de cada projeto traz o ponto de encontro, algumas pré-visualizações de marcos de interesse, mapas, fontes de pesquisa consultadas. Cada participante deveria trazer consigo água potável, um pequeno lanche, filtro solar, e usar calçados confortáveis. Menores de idade só eram admitidos se acompanhados de um responsável. O material era enviado ao público duas semanas antes da data de realização.

Marcação dos pontos de interesse e resolução do traçado
Imagem Google Earth com indicações gráficas dos autores

Além de todos os documentos e a galeria de fotos publicados na página do primeiro autor mencionada anteriormente, também foram editados convites resumidos.

Exemplo de convite resumido para as COC
Elaboração dos autores, 2013

Resultados e desdobramentos

As 24 edições das COC totalizaram 152 km percorridos a pé nos bairros da cidade, com a média de 32 pessoas, variando de 12 a 70, aparentemente dependendo de o clima estar frio ou quente.

O entendimento do projeto por parte dos frequentadores mais assíduos foi levantado mediante consulta enviada a 24 pessoas (estando entre elas oito casais). As respostas que recebemos foram transcritas e a análise revela um denominador comum que aponta para a dimensão de prazer diante da educação do olhar, do melhor conhecimento da cidade, e do convívio entre os cidadãos, convergindo em muito com os objetivos previstos para o nosso projeto.

A página Facebook continua no ar, visualizada pelo público a cada semana, acumulando mais de mil “curtidas” desde a sua criação. Contudo, só tivemos notificações de três iniciativas de grupos que baixaram um projeto para realizar uma ou outra caminhada de forma independente. Por outro lado, houve o caso singular de C.E., geóloga, que depois de participar da 10aoficina em 2013, passou a planejar caminhadas de forma independente, munida de câmera e mapa da cidade. Até o momento da redação deste artigo, já explorou sozinha 38 bairros de Curitiba, dispendendo vários dias de trabalho em cada um. Seu método consiste em percorrer as fronteiras com os bairros vizinhos e depois penetrar nas ruas do “miolo”. Suas postagens de fotos são ricas em narrativas urbanas (27).

Resumo dos dados das 24 edições das COC
Elaboração dos autores, 2016

Panorama dos 24 itinerários das COC sobre o mapa da cidade
Imagem Google Earth com indicações gráficas de Mário Sérgio Freitas, 2016

A Figura mostra os itinerários acumulados, indicando com as áreas sombreadas os limites de Curitiba.

Respostas dos participantes mais assíduos à pergunta enviada pelos autores: “O que as COC significaram para você?”
Elaboração dos autores

A memória das COC também se encontra em páginas de fotógrafos profissionais que delas participaram, por exemplo, W.T. (28).

Do ponto de vista dos autores, o maior ganho do projeto foi constatarmos o olhar transformado de vários inscritos, a partir das conversas nas observações. O exercício possibilitou detectarem marcos de interesse cheios de significação, inclusive alguns que na pesquisa de campo tinham passado despercebidos dos organizadores, como exemplifica a figura com uma copa de árvore se espalhando logo acima de um telhado de loja (o tronco fica protegido num quartinho de chão de terra!); desgastada pela exposição ao tempo, a inscrição de pensamentos numa pedra; uma relação de sincretismo vista dois dias após a festa de Nossa Senhora dos Navegantes, da fonte com uma ninfa das águas que recebeu pérolas consagradas a Yemanjá.

Exemplos de itens detectados pelos participantes que não tinham sido percebidos pelos organizadores, como a árvore dentro da loja, pensamentos escritos em pedras, as pérolas ofertadas a uma escultura
Foto Mário Sérgio Freitas, 2012-2014

Uma pesquisa desenvolvida por professores de Design da Universidade Federal do Paraná equiparou nossas oficinas a outro evento local: “Observa-se que tanto a Bicicletada de Curitiba, quanto as Caminhas Observacionais são iniciativas que resgatam o reconhecimento do território e o sentimento de pertencimento” (29).

Por ocasião da sua oitava edição, as COC foram tema de uma reportagem local (30). A redatora, após um breve histórico das nossas caminhadas, inclui alguns depoimentos de participantes e complementa: "É essa Curitiba simples que o grupo procura descobrir – e viver – assim como a definida na prosa de Dalton Trevisan, o mais ilustre escritor paranaense, que diz: ‘Curitiba sem pinheiro ou céu azul pelo que vosmecê é – província, cárcere, lar – esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo’."

notas

1
WAGNER, Debora Regina. Arte, técnica do olhar e educação matemática: o caso da perspectiva central na pintura clássica. Dissertação de mestrado. Florianópolis, UFSC, 2012, p. 21.

2
VASCONCELOS, Lucia. Calçadas de Curitiba – preservar é preciso. Curitiba, edição da autora, 2006, p. 41-59.

3
FOURQUET-COURBET, Marie-Pierre; COURBET, Didier. Anxiété, dépression et addiction liées à la communication numérique. Quand Internet, smartphone et réseaux sociaux font un malheur. Revue Française pour les SIC, n. 11, 2017 <https://bit.ly/2O6hIVu>.

4
SILVA, Thayse de Oliveira; SILVA, Lebiam Tamar Gomes. Os impactos sociais, cognitivos e afetivos sobre a geração de adolescentes conectados às tecnologias digitais. Revista Psicopedagogia, vol. 34, n. 103, São Paulo, 2017.

5
LARROSA-BONDÍA, Jorge. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. Revista Brasileira de Educação, n. 19, 2002 <https://bit.ly/2ZTlZxS>.

6
CHAUÍ, Marilena; MATOS, Olgária. Espaço, tempo e mundo virtual. Palestra apresentada no Café Filosófico CPFL-Cultura. Vimeo, Nova York, 2012 <https://bit.ly/37Oe21s>.

7
CARERI, Francesco. Walkscapes: O caminhar como prática estética. São Paulo, Gustavo Gili, 2013, p. 30.

8
VYGOTSKY, Lev. A formação social da mente: o desenvolvimento dos processos psicológicos superiores. 7ª edição. São Paulo, Martins Fontes, 2007, p. 19-20.

9
FORTUNA, Carlos. Caminhadas urbanas, com-vivências inesperadas. e-cadernos CES online, vol. 29, 2018 <https://bit.ly/3pVxSy2>.

10
CARERI, Francesco. Op. cit., p. 80.

11
MACIEL, Ulisses. Não-lugares. Um olhar sobre as metrópoles contemporâneas. Drops, São Paulo, n. 15.086.02, Vitruvius, nov. 2014 <https://bit.ly/3r2rVko>.

12
CALVINO, Italo. As Cidades Invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 2003, p. 101.

13
SILVEIRA, Alex. “Fiscais do esgoto” vão reforçar buscas por ligações clandestinas em Curitiba. Gazeta do Povo, Curitiba, 18 jul. 2018 <https://bit.ly/3r8TTel>.

14
CARVALHO, André de Souza; SUGAI, Maria Inês. A Produção da Cidade Segregada: O Caso de Curitiba. Anais do II SEURB – Simpósio de Estudos Urbanos: a dinâmica das cidades e a produção do espaço, Campo Mourão, 2013 <https://bit.ly/3bzN2nu>.

15
CERQUEIRA, Daniel; LIMA, Renato; BUENO, Samira; COELHO, Danilo; ALVES, Paloma; REIS, Milena; MERIAN, Filipe. Mapa da Violência 2018 – Políticas públicas e retratos dos municípios brasileiros. Rio de Janeiro, IPEA, 2018 <https://bit.ly/3aUO0vy>.

16
DUDEQUE, Irã. Espirais de Madeira: uma história da arquitetura de Curitiba. São Paulo, Studio Nobel/Fapesp, 2001, p. 250.

17
SOSGISBR. Dados Climatológicos para Download, INMET, 2011 <https://bit.ly/3uvRAnv>.

18
VIEIRA, Alexandre; BRAGA, Jonatan; LAAT, Maria Lucia; coord. REIS, Paulo. Laboratório de experimentação urbana – Oficina teórico-prática sobre arte e cidade. Curitiba, Departamento de Artes UFPR, 2010.

19
FUÃO, Fernando Freitas. A Casa da Flor. In: FUÃO, Fernando Freitas (Org.). Arquiteturas Fantásticas. Porto Alegre, Editora UFGRS, 1999, p. 58.

20
SCHAEWEN, Deidi; MAIZELS, John. Fantasy Worlds. Colônia, Taschen, 2007, p. 8.

21
CARERI, Francesco. Op. cit.

22
FENIANOS, Eduardo. Pilarzinho, Bom Retiro e Vista Alegre: das varandas às tevês. Curitiba, UniverCidade, 2008.

23
FREITAS, Mário Sergio. Oficinas Caminhadas Observacionais. Portfólio online, 2016. <https://bit.ly/3koM7tU>.

24
RETTO JR., Adalberto. Tramas urbanas e territoriais. Estratégias narrativas para recompor memórias no projeto da cidade contemporânea: a revisão do Plano Diretor Participativo de São Manuel PDPSM. Arquitextos, São Paulo, n. 19.227.03, Vitruvius, mai. 2019 <https://bit.ly/3bHUqwX>.

25
CARERI, Francesco. Op. cit., p. 83.

26
FREITAS, Mário Sergio; CODOGNOTO, Rafael. Caminhadas Observacionais de Curitiba. Facebook <https://bit.ly/3q1We9y>.

27
EASTWOOD, Coca. Nas Ruas de Curitiba. Facebook <https://bit.ly/3uwHFy7>.

28
TAKEUCHI, Washington. Circulando por Curitiba: Grupo de Caminhadas Observacionais, 2011-2016 <https://bit.ly/2PcBqiO>.

29
CHAVES, Liliane Iten; FONSECA, Ken Flavio Ono. Design para inovação social: uma experiencia para inclusão do tema como atividade disciplinar. DAPesquisa, vol. 11, n. 15, 2016 <https://bit.ly/2P8UzSB>.

30
TRISOTTO, Fernanda. A cidade admirada a partir do detalhe. Gazeta do Povo, Curitiba, 18 ago. 2012 <https://bit.ly/3dMrxT7>.

sobre os autores

Mário Sérgio Freitas é doutor em Física e docente aposentado pela UTFPR-Curitiba, onde orientou projetos conectando a linguagem científica com a artística. Sua produção de esculturas ocupou espaços de arte em Curitiba; tem desenhos e fotografias reproduzidos em periódicos e livros de arte, incluindo fotos comentadas para a página EPOD (USRA/NASA).

Rafael Codognoto (Rafael Rodrigues de Oliveira) é bacharel em Pintura pela Escola de Música e Belas Artes do Paraná. Sua produção ocupa espaços de arte no Brasil e no exterior. Atuou como Professor no Atelier de Materiais Artísticos da Fundação Cultural de Curitiba, e integrou o Conselho Municipal de Cultura.

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