Em 2020, completaram-se sessenta anos desde a inauguração da nova capital do Brasil em 21 de abril de 1960. Mas, já desde os anos iniciais de sua construção, em fins da década de 1950, Brasília foi objeto de intensa controvérsia e de publicações variadas que buscaram divulgar e legitimar a iniciativa de mudança da capital do Rio de Janeiro para o Planalto Central. Apenas em fins da primeira década do século 20, emergiram estudos e análises nos quais se mostrava uma preocupação mais clara, ainda que em geral breve, no sentido de retomar a historiografia existente sobre a capital e criticar seus pressupostos. Ainda assim, são escassos os trabalhos dedicados a traçar um panorama mais abrangente dos escritos a respeito da capital e sua história. Este trabalho busca contribuir nesse sentido ao traçar um quadro de estudos, trabalhos e registros sobre Brasília realizados desde fins da década de 1950 até a atualidade, nos quais a perspectiva de análise volta-se nem tanto para a arquitetura, mas para a história da cidade, de seu plano ou de aspectos diversos de sua vida urbana.
Longe da intenção de realizar um levantamento completo ou de estabelecer um rol de autores principais, apontam-se aqui algumas vertentes de análise e abordagem de Brasília em textos publicados ao longo desse amplo arco temporal. Neste panorama, consideramos fundamentais os aportes não apenas de arquitetos e urbanistas, mas de também de profissionais de outras áreas das ciências humanas, tais como historiadores, antropólogos e geógrafos. Privilegiamos os trabalhos de caráter monográfico sobre a capital, mas também citamos alguns livros seminais no campo disciplinar da História do urbanismo e do planejamento, nos quais Brasília desempenha papel peculiar na constituição da análise.
Destacaremos aqui cinco vertentes de análise: a de apologia à capital e a sua revisão, a crítica à cidade modernista, as análises morfológicas, geográficas e históricas e ainda as representações sociais. Não se trata de uma classificação estanque, mas de uma tentativa de identificar algumas chaves de leitura e de interpretação. Algumas dessas vertentes tenderam a se mostrar de modo mais claro em determinados períodos, mas também permanecem incidindo em trabalhos recentes, nos quais nem sempre se atenta para os propósitos ou o contexto de elaboração das referências mencionadas. É possível perceber também uma inflexão nos estudos conduzidos nos últimos anos, com uma abertura para novos temas e problemas a partir de fontes também pouco usuais.
A vertente apologética e sua revisão crítica
Já desde meados dos anos 1950, vieram à luz livros, artigos, crônicas e registros diversos nos quais a mudança da capital para o interior foi apresentada como ideal coletivo acalentado há séculos e corolário de uma marcha de afirmação da nacionalidade iniciada já na época colonial. A intenção de dar lastro histórico à cidade ainda em construção fica evidente em títulos como Raízes históricas de Brasília. Datas e documentos (1) de 1960, “Brasília e seus antecedentes” (2) do mesmo ano ou “Os idealizadores de Brasília no século 19” (3) de 1975. Publicações diversas sobre a História de Brasília basearam-se na apresentação cronológica e linear de uma série de momentos considerados marcantes na História do Brasil, nos quais grandes personagens teriam sugerido a mudança da capital para o interior: Marquês de Pombal, Tiradentes, José Bonifácio, Varnhagen e, finalmente, Juscelino Kubitscheck. Esse roteiro costuma envolver ainda momentos ou episódios considerados fundamentais, tal como a inclusão de dispositivo constitucional em 1891 para mudança da capital, a realização de comissões exploradoras no planalto central, o comício em Jataí em 1955 quando Juscelino Kubitschek foi interpelado por um dos presentes – conhecido como “Toniquinho” – e o sonho premonitório de Dom Bosco, em 1883, sobre a criação de uma nova civilização, em suposta alusão à Brasília.
Nessa linha, Brasília seria a culminância de uma sequência de projetos para interiorização da capital desde o século 18: “uma velha e boa ideia” (4). A referência a projetos de mudança da capital supostamente aventados há séculos desconsidera o específico sentido da noção de capitalidade em cada um dos contextos e em geral não apresenta evidências ou fundamentação documental. Diversos registros nessa vertente foram feitos por protagonistas da construção de Brasília, tal como o próprio presidente Juscelino Kubitschek (5) e também Ernesto Silva (6), diretor da Novacap (empresa paraestatal criada em 1956 para gerir o planejamento e a construção da nova capital). Seja em discursos amplamente divulgados à época ou em memórias publicadas posteriormente, tais registros legitimavam-se na autoridade daqueles que teriam testemunhado fatos de perto e buscavam afirmar seu próprio papel nos acontecimentos. Ao lado desses protagonistas, também simpatizantes e apoiadores diversos – jornalistas, diplomatas, funcionários da Novacap – escreveram textos acerca da história de Brasília, muitas vezes precedidos por uma breve apresentação do próprio JK, que vinha dar chancela à obra.
A elaboração de uma visão canônica acerca da construção de Brasília evidencia-se também na publicação da Coleção Brasília, desde 1960, pelo Serviço de Documentação da Presidência da República. A série de dezoito volumes tinha o objetivo de “oferecer aos estudiosos os elementos documentais relativos à interiorização da capital do Brasil, tanto de seu aspecto histórico quanto do político, social e econômico” (7). Nessa, como em outras publicações emanadas de órgãos oficiais ou de apoiadores da ideia de Brasília, mostra-se uma visão tradicional de documento como supostamente neutro e de interpretação inequívoca.
Esse conjunto de registros e publicações de caráter apologético e em defesa da construção de Brasília pode ser entendido no contexto da controvérsia gerada pela iniciativa. Como apontou Vania Losada Moreira, em 1958 havia sólida oposição contra a mudança da capital, ainda que se note também uma crescente adesão da opinião pública ao longo do governo de JK (8). Ainda em fins da década de 1950, revistas especializadas e periódicos de grande circulação veicularam artigos alertando sobre os problemas que decorreriam da localização da capital no planalto central (9). As estratégias para dar respaldo histórico a Brasília podem ser vistas como parte de um esforço político no sentido de conquistar adesões, neutralizar oposições e valorizar a iniciativa pessoal do presidente JK.
No entanto, publicações de caráter apologético não se restringiram ao período inicial de construção de Brasília e continuaram a vir à luz nos anos 1970 e 1980, como, por exemplo, em A epopeia da construção de Brasília (10). Alguns dos tópicos estabelecidos por essa vertente de leitura da história da capital, tal como a referência a um projeto de mudança da capital alentado desde os tempos da colônia ainda têm força em interpretações correntes. Mais do que mero anacronismo, a persistência de argumentos e tópicos dos discursos iniciais de apologia à Brasília sugere a necessidade de investigar seus possíveis novos significados e reinterpretações quando retomados em distintos contextos.
Os discursos políticos e narrativas de protagonistas tornaram-se, mais recentemente, objeto de estudo de vários autores que destrincharam seus artifícios retóricos e explicitaram seus pressupostos, considerando a noção de mito fundamental para sua elaboração. Já em meados dos anos 1980, Paulo Bicca apontou alguns dos “mitos” que envolveram a construção de Brasília, tais como a ideia de eficiência técnica de seu plano, a “aparência de solidariedade” entre classes sociais e o suposto caráter exclusivamente público de seu empreendimento (11). James Holston (12) deteve-se na “mitologia do projeto” de Lucio Costa, expressa, conforme sua análise, em artifícios retóricos e na representação de figuras arquetípicas tais como o eixo e a cruz. Já nos anos 2000, Laurent Vidal (13), Viviane Ceballos (14) e Márcio de Oliveira (15) dedicaram-se à análise do modo como discursos mistificadores de legitimação de Brasília mobilizaram argumentos históricos. Brasília teria sido envolta, nas palavras de Vidal, num “casulo mitológico” que teria vindo blindá-la de críticas e oposições (16). Numa linha similar, Vania Moreira questionou o sentido histórico dos textos sobre o passado de Brasília, ressaltando que “a ideologia vestiu-se de história e de forma sistemática buscou legitimar a construção da nova capital”, tomando o lugar da historiografia crítica (17).
A crítica à cidade modernista – e seu contraponto
O início da construção de Brasília despertou atenções internacionais e levou arquitetos, jornalistas, escritores e intelectuais provenientes de outros países a visitarem seus canteiros de obras e a registrar suas impressões em diários, jornais e revistas. Um momento marcante foi a realização, em setembro de 1959, do Congresso Internacional Extraordinário de Críticos de Arte, com o tema “A cidade nova – síntese das artes”, cujas reuniões se deram em São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília. Alguns dos textos de participantes do Congresso, junto a uma seleção de críticas e avaliações de Brasília dos anos 1950 a 2010, podem ser lidos na Antologia organizada por Alberto Xavier e Julio Katinsky (18). Entre 1956 e 1964, Brasília foi vista como uma “má interpretação da arquitetura moderna” por Sibyl Moholi-Nagy (19), um fracasso “como proposta objetiva” por Françoise Choay (20), e como expressão dos “problemas insolúveis” da cultura arquitetônica e urbanística de fins dos anos 1950 por Bruno Zevi (21). A ideia de uma cidade árida, artificial e burocrática foi bastante veiculada por comentadores internacionais dessa época, quando se estabeleceram alguns dos tópicos críticos que viriam ser reiterados continuamente. Em livros canônicos da historiografia em Arquitetura e Urbanismo da década de 1970, incorporaram-se preconceitos e equívocos sobre a cidade recém-construída (22).
Numa outra linha, a publicação, em 1961, de Brazilian Architecture, de autoria de Henrique Mindlin, retomou uma narrativa sobre a arquitetura brasileira – já antes expressa no volume Brazil Builds, de 1943 – em que se inseriu Brasília como desdobramento singular das experiências modernistas iniciadas no Rio de Janeiro (23). Mais tarde, um outro clássico da historiografia da arquitetura moderna brasileira, o livro derivado da tese de Yves Bruand apresentada em 1971 e publicado no Brasil em 1981, consolidou tal esquema interpretativo, vendo Brasília como “apoteose do urbanismo brasileiro” e realização de um “antigo sonho” (24).
Apesar da polêmica inicial em torno de Brasília, depois do golpe de 1964 a discussão parece ter sido em certa medida tolhida pelo impacto duradouro das obras de caráter apologético e pelas implicações de abordar uma cidade que se tornara palco e símbolo da ditadura militar instituída em 1964. Conforme avaliou Laurent Vidal, Brasília foi, durante quase duas décadas, assunto tabu para as ciências sociais brasileiras (25).
Ainda assim, estudos seminais acerca de Brasília foram realizados na década de 1970, embora alguns deles só tenham sido publicados ou conhecidos mais amplamente décadas depois. Uma análise mais abrangente da concepção e da construção da capital foi publicada pela historiadora de arquitetura Norma Evenson em 1973, no livro Two Brazilian capitals (26), após sua estadia no Brasil entre 1966 e 1967. Até então, a maior parte das análises e comentários detinha-se na concepção planejada por Lucio Costa, nos projetos de arquitetura de Niemeyer e eventualmente nos demais projetos apresentados ao Concurso Nacional de 1956 para escolha do plano da nova capital. Mas, no trabalho de Evenson e, principalmente, no trabalho do mesmo ano do antropólogo David Epstein (27), já se mostra uma preocupação em ir além da análise do projeto. Fruto de sua tese de doutorado, o livro de Epstein pode ser considerado um marco na análise da cidade, pois significou o enfrentamento, de modo claro e abrangente, do problema das formações urbanas precárias situadas na periferia do Plano Piloto.
O campo disciplinar da Antropologia foi mesmo responsável por iniciar críticas mais detidas e fundamentadas em análises de vivências e percepções da capital. Com base em pesquisa de campo realizada em fins dos anos 1970, o também antropólogo Gustavo Lins Ribeiro (28) analisou a experiência do operariado na construção da capital, mostrando os modos de exploração da força de trabalho nos canteiros de obra. Ainda no início dos anos 1980, James Holston (29) esteve em Brasília para o trabalho de campo que serviu de base para sua tese de doutorado, publicada em 1989 com o título The modernist city e tendo a primeira edição brasileira em 1993. O livro permanece como referência clássica da crítica a Brasília, em sua densa análise de premissas e paradoxos do projeto e no exame do que denominou de “abrasileiramento” da cidade construída. Tópicos como a “morte da rua”, a ausência de vida urbana e os espaços hostis aos pedestres são retomados, por exemplo, em apreciações recentes de Ian Gehl (30) e Rem Koolhas (31). Por outro lado, o livro de James Holston (32) também suscitou questionamentos como os de Abilio Guerra (33) e Adrián Gorelik (34) acerca dos métodos de análise da arquitetura moderna. Frederico Holanda (35) concordou com a análise de Holston acerca dos mitos em torno de Brasília, mas, de resto, julgou sua tese expressão de “uma visão reducionista e dogmática”.
Análises históricas, morfológicas e espaciais
No período de distensão política no Brasil de meados dos anos 1980, a preocupação com políticas públicas e questões sociais sobrepôs-se ao estudo da forma das cidades (36). A expansão dos estudos sobre Brasília foi parte de um novo momento na produção da pesquisa histórica sobre a cidade e o urbanismo no Brasil. Num panorama geral, a autonomização em relação à prática projetual e a consolidação de espaços acadêmicos específicos para a pesquisa começaram a dar forma a um campo disciplinar próprio da História da Cidade, que permaneceu, porém, aberto às trocas interdisciplinares (37).
Os estudos realizados sobre a capital também se voltaram às condições políticas e sociais da sua construção. Mas, em pesquisas desenvolvidas por pesquisadores ligados à Universidade de Brasília, a configuração e a organização espacial estiveram ao centro das preocupações, seja na análise do território metropolitano do Distrito Federal, no âmbito da disciplina de Geografia, seja na análise da dimensão morfológica dos espaços urbanos.
Um marco nos estudos de Brasília foi a publicação, em 1985, do texto A metrópole terciária, do geógrafo Aldo Paviani (38), baseado em pesquisas realizadas desde os anos 1970. Ali se distinguiram fases de evolução da cidade e se reconheceu seu peculiar caráter metropolitano, caracterizado por um sistema urbano interligado, de caráter esparso e polinucleado. O trabalho de Aldo Paviani foi importante também ao congregar arquitetos, antropólogos, economistas e outras especialistas numa série de coletâneas multidisciplinares, inicialmente publicadas pela editora Projeto, desde 1978 e depois reeditados pela EdUnB, por ocasião do cinquentenário da capital em 2010, nos volumes da Coleção Brasília (39). Os vários textos reunidos nessa Coleção tratam de aspectos diversos do processo de urbanização e de produção do espaço metropolitano de Brasília, sublinhando a segregação socioespacial.
Ainda na Universidade de Brasília, e em diálogo com a produção do grupo de Aldo Paviani, estabeleceu-se uma duradoura linha de estudos sob liderança de Frederico de Holanda. Em sua tese de doutorado defendida em 1997 na Universidade Londres e publicada pela EdUnB em 2002, com o título O espaço de exceção, Holanda (40) baseou-se na teoria de sintaxe espacial desenvolvida por Bill Hillier e Julienne Hanson e em estudos de uma série de cidades e centros cerimoniais na história antiga e moderna, para chegar à análise da formação socioespacial de Brasília. Uma das contribuições de Holanda, ao lado de Maria Elaine e Gunther Kohlsdorf, foi a análise de Brasília como “mosaico morfológico”, incluindo aí cidades-satélites, anteriores acampamentos de obras e núcleos preexistentes do Distrito Federal (41). A abordagem morfológica teve ainda desdobramentos em propostas de patrimonialização de Brasília, nos anos 1980, conduzidas por um grupo de trabalho no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan chamado GT-Brasília (42). E, mais recentemente, as análises das dimensões socio morfológicas de Brasília vem levando a estudos acerca das transformações urbanas na escala da metrópole e dos problemas acerca de sua governança.
Em pesquisas na área de Arquitetura e Urbanismo, após os anos 1980, observa-se um esforço por parte de pesquisadores e críticos brasileiros no sentido de superar “a ênfase em gênios isolados e heróis que marcava, então de forma quase exclusiva, a historiografia da arquitetura brasileira [do século 20]” (43) Manifestou-se uma consciência mais clara da historicidade do moderno (44). Como parte do movimento de reavaliação da produção modernista, houve estímulo para se repensar a posição de Brasília – por vezes considerada modelo, clímax ou ocaso – numa trajetória mais complexa e estratificada. Ainda nos anos 1980, a reorganização de acervos documentais e o apoio de instituições locais em muito facilitaram a realização de pesquisas sobre Brasília. E, desde os anos 1990, houve importantes iniciativas editoriais de divulgação de estudos até então inéditos ou de acesso limitado, com destaque para a produção da EdUnB nas efemérides do cinquentenário da cidade
Uma inflexão na historiografia e na crítica de Brasília foi impulsionada também, desde os anos 1980, pela presença de Sylvia Ficher no corpo docente da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de Brasília – FAU UnB, após ter feito seus estudos de pós-graduação na Universidade de Columbia, na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo – FFLCH USP e na École des Hautes Études en Sciences Sociales. Seus trabalhos pautam-se pelo rigor no trato da documentação e pela sistematização de dados, aliados a métodos de análise provenientes do campo da morfologia e da geografia. Pesquisas conduzidas ou orientadas por Sylvia Ficher permitiram ampliar o leque dos “paradigmas” da concepção do Plano Piloto, analisar os desenvolvimentos desse projeto em várias escalas, apontar preexistências no território do Distrito Federal e revelar a atuação de outros profissionais além dos protagonistas usuais (45). Tais estudos somam-se a outras pesquisas recentes sobre a organização inicial do território do Distrito Federal e os planos urbanísticos ainda pouco conhecidos de suas cidades-satélites e núcleos rurais (46). Ao lado disso, temas tradicionais na abordagem de Brasília, tais como o Concurso para o Plano Piloto de 1956-1957 receberam análises inovadoras (47).
Representações sociais
Nos últimos anos, pesquisas provenientes de campos diversos da historiografia vêm buscando desvendar as especificidades da cidade em contínua transformação, com suas variadas expressões culturais. Sem deixar de lado a documentação escrita tradicional ou os projetos e planos urbanísticos, emergiu para análise uma gama mais diversificada de fontes, provenientes não apenas de autoridades e experts, mas também de moradores do Plano Piloto ou de localidades distantes dele, migrantes de épocas diversas e observadores externos. Fotografias, revistas, filmes, depoimentos orais, músicas e poesias passaram a ser vistos como expressão de representações sobre a cidade, possibilitando analisar experiências cotidianas vivenciadas de modo subjetivo ou compartilhadas por certos grupos sociais.
Já desde a década de 1970, pesquisas sobre Brasília contaram com entrevistas como fontes alternativas às narrativas dominantes e como expressões das vozes de indivíduos ou grupos marginalizados. Mas, em estudos recentes afeitos ao campo da história cultural, as fontes orais são consideradas em seu valor intrínseco e não apenas complementar, em análises sobre as representações expressas em falas e escritos de pessoas que vivem no Plano Piloto ou em cidades-satélites, além de grupos específicos tais como escritores e cordelistas (48).
A partir dos anos 2000, surgiram ainda estudos acerca da produção fotográfica sobre Brasília, considerando as fotos não como registros fiéis da realidade, mas como documentos vinculados aos contextos culturais e políticos em que foram produzidos e veiculados, adquirindo papel central no processo de difusão e legitimação de obras e ideias modernas, mas também sujeitos a reinterpretações. As trajetórias e a produção de fotógrafos como Marcel Gautherot, Mario Fontenelle e Thomaz Farkas foram analisadas segundo tais pontos de vista, considerando-se as revistas como um meio privilegiado de divulgação (49).
Como se lê em artigos dos dois volumes do dossiê Brasília da revista Urbana publicados em 2018 e 2019, análises acerca de representações sociais da cidade basearam-se em fontes diversas: memórias e depoimentos orais, grafites, filmes, registros críticos e literários, revistas, fotografias etc (50). As análises tratam, por um lado, de revisitar a cidade recém-construída e sua peculiar paisagem, cedo marcada por conflitos e contradições. Por outro lado, muitos dos estudos recentes dedicam-se à metrópole contemporânea, onde emergem os imaginários e universos simbólicos daqueles que a vivenciam no cotidiano e recorrem a táticas para ocupar ou habitar seus disputados espaços. As representações dos habitantes de Brasília levam a contradizer lugares-comuns da crítica à cidade modernista e revelam experiências muito distintas do que fora preconizado à época da concepção da capital.
Breves considerações finais
Brasília pode ser vista como construção simbólica realizada por meio de imagens, narrativas e discursos produzidos em meio a ampla controvérsia. Em seus primórdios, a nova capital foi defendida como aspiração secular e corolário da afirmação de um Brasil moderno. Em contraste, mereceu, na mesma época, a condenação de críticos que a viram como expressão autoritária e epítome da falência do modernismo. Se, num certo momento, pretendeu-se afirmar uma história de Brasília, trata-se agora de problematizar os diversos processos envolvidos em sua formação urbana, que está longe de estar esclarecida e recusa-se a simplificações.
notas
1
PORDEUS, Ismael. Raízes históricas de Brasília. Datas e documentos. Fortaleza, Imprensa Oficial, 1960.
2
MENDES, Horácio. Brasília e seus antecedentes. brasília, (4): 30-43, ano 4, abr. 1960.
3
ANDRADA E SILVA, Raul. Os idealizadores de Brasília no século 19. Revista de História, ano XXVI, v. LII (103), São Paulo, jul./set. 1975.
4
COUTO, Ronaldo Costa. Brasília Kubitschek de Oliveira. Coleção Metrópoles. Rio de Janeiro, Record, 2001, p. 31.
5
KUBITSCHECK, Juscelino. Por que construí Brasília. Brasília, Senado Federal, 2000.
6
SILVA, Ernesto. História de Brasília: um sonho, uma esperança, uma realidade. Brasília, Coordenada, 1970.
7
BRASIL. SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Antecedentes históricos. Coleção Brasília. Rio de Janeiro, v. 1, 1960, p. 9.
8
MOREIRA, Vânia. Brasília: a construção da nacionalidade: um meio para muitos fins. Vitória, Edufes. 1998, p. 82-87.
9
VIEIRA, Tamara Rangel. No coração do Brasil, uma capital saudável: a participação dos médicos e sanitaristas na construção de Brasília (1956-1960). História, Ciências, Saúde-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 16, suplemento 1, jul. 2009, p. 289-312 <https://bit.ly/3jouMAt>.
10
VASCONCELOS, Adirson. A epopeia da construção de Brasília. Brasília, edição do autor, 1989.
11
BICCA, Paulo. Brasília: mitos e realidades. In PAVIANI, Aldo (Org.). Brasília, ideologia e realidade: espaço urbano em questão. São Paulo, Projeto, 1985, p. 101-113.
12
HOLSTON, James. A cidade modernista: uma crítica de Brasília e sua utopia. São Paulo, Companhia das Letras, 1993.
13
VIDAL, Laurent. De Nova Lisboa a Brasília: a invenção de uma capital (séculos 19-20). Brasília, EdUnB, 2009, p. 243.
14
CEBALLOS, Viviane. "E a história se fez cidade...: a construção histórica e historiográfica de Brasília”. Dissertação de mestrado. Campinas, IFCH Unicamp, 2005, p. 23.
15
OLIVEIRA, Marcio de. Brasília: o mito na trajetória da nação. Brasília, Paralelo 15, 2005.
16
VIDAL, Laurent. Op. cit.
17
MOREIRA, Vânia. Op. cit., p. 66.
18
XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio Roberto (Org.). Brasília: Antologia Crítica. São Paulo, Cosac Naify, 2012.
19
MOHOLI-NAGY, Sibyl. Brasília: conceito majestoso ou monumento autocrático? In XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio Roberto (Org.). Op. cit., p. 60-65.
20
CHOAY, Françoise. Brasília: uma capital pré-fabricada. In XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio Roberto (Org.). Op. cit., p. 58-59.
21
ZEVI, Bruno. Seis perguntas sobre a nova capital sul-americana. In XAVIER, Alberto; KATINSKY, Julio Roberto (Org.). Op. cit., p. 66-71.
22
ZEIN, Ruth Verde; LIMA, Ana Gabriela Godinho. What we really know about Brasilia? Misleading and prejudice in canonical books. 6th International Seminar Docomomo 'The Modern City Facing the Future'. Brasilia, 6th International Seminar Docomomo, Anais, 2000.
23
FERNANDES, Luis Gustavo; MARTINS, Carlos Alberto Ferreira. Interpretando a historiografia da arquitetura moderna. Brasilia e monografias entre 1959 e 1972. Docomomo Brasil, v. 1, 2018, p. 50-58.
24
BRUAND, Yves. Arquitetura Contemporânea no Brasil. São Paulo, Perspectiva, 2003, p. 352.
25
VIDAL, Laurent. Op. cit.
26
EVENSON, Norma. Two Brazilian capitals: Architecture and Urbanism in Rio de Janeiro and Brasília. London, Yale University Press, 1973.
27
EPSTEIN, David. Brasilia, plan and reality: a study of planned and spontaneous developments. Berkeley, University of California, 1973.
28
RIBEIRO, Gustavo Lins. O capital da esperança: a experiência dos trabalhadores na construção de Brasília. Brasília, Editora UnB, 2008.
29
HOLSTON, James. Op. cit.
30
Cf. VALENCIA, Nicolás. Jan Gehl: "Do chão, onde vivem as pessoas, Brasília é uma merda”. ArchDaily Brasil, São Paulo, 5 jul. 2017 <https://bit.ly/2ZOXPoY>.
31
KOOLHAAS, Rem. Brasília por Rem Koolhaas. ArchDaily Brasil, São Paulo, 29 ago. 2016 <https://www.archdaily.com.br/br/794076/brasilia-por-rem-koolhaas>.
32
HOLSTON, James. Op. cit.
33
GUERRA, Abilio. Lucio Costa – modernidade e tradição: montagem discursiva da arquitetura moderna brasileira. Tese de doutorado. Campinas, IFCH Unicamp, 2002 <http://www.repositorio.unicamp.br/handle/REPOSIP/280682>.
34
GORELIK, Adrián. Brasília, o museu da vanguarda, 1950 e 1960. In Das vanguardas à Brasilia: cultura urbana e arquitetura na América Latina. Belo Horizonte, UFMG, 2005, p. 151-190.
35
HOLANDA, Frederico. O espaço de exceção. Brasília, EdUnB, 2002, p. 41. Ver também HOLANDA, Frederico. Brasília: cidade moderna, cidade eterna. Brasília, FAU UnB, 2010.
36
FERNANDES, Ana; GOMES, Marco Aurélio A. de Filgueiras. História da Cidade e do Urbanismo no Brasil: reflexões sobre a produção recente. Cienc. Cult., São Paulo , v. 56, n. 2, abr. 2004, p. 23-25 <https://bit.ly/3fJWWnk>.
37
PEREIRA, Margareth da Silva. O rumor das narrativas: a história da arquitetura e do urbanismo do século 20 no Brasil como problema historiográfico – notas para uma avaliação. ReDObRa, v. 13, 2014, p. 201-247; MELLO, Joana; CASTRO, Ana Cláudia Veiga. História e historiografia da arquitetura e da cidade. Apresentação da Sessão Temática: Teoria e método em História da Arquitetura e da Cidade. Anais do IV Anparq, jul. 2016 <https://bit.ly/3eOSToy>.
38
PAVIANI, Aldo. A metrópole terciária. In PAVIANI, Aldo (Org.). Op. cit., p. 57-79.
39
PAVIANI, Aldo (Org.). Brasília, Ideologia e Realidade. Espaço Urbano em Questão. São Paulo, Projeto Ed/CNPq, 1985; PAVIANI, Aldo (Org.). Urbanização e metropolização. A Gestão dos Conflitos em Brasília. Brasília, Coleção Brasília, EdUnB/Codeplan, 1987; PAVIANI, Aldo (Org.). Textos de pesquisas do Núcleo de Estudos Urbanos e Regionais. Brasília, Coleção Brasília, EdUnB, 1988; PAVIANI, Aldo (Org.). A conquista da cidade: movimentos populares em Brasília. Brasília, Coleção Brasília, EdUnB, 1991; PAVIANI, Aldo (Org.). Brasília: moradia e exclusão. Brasília, Coleção Brasília, EdUnB, 1996; PAVIANI, Aldo. (Org.). Brasília – gestão urbana: conflitos e cidadania. Brasília, Coleção Brasília, EdUnB, 1999; PAVIANI, Aldo; GOUVÊA, Luiz Alberto de Campos (Org.). Brasília: controvérsias ambientais. Brasília, Coleção Brasília, EdUnB, 2003; PAVIANI, Aldo; FERREIRA, Ignez Costa Barbosa; BARRETO, Frederico Flósculo Pinheiro (Org.). Brasília: dimensões da violência urbana. Brasília, Coleção Brasília, EdUnB, 2005; PAVIANI, Aldo. Brasília: A Metrópole em Crise. ensaios sobre urbanização. Brasília, Coleção Brasília, EdUnB, 1989.
40
HOLANDA, Frederico. O espaço de exceção (op. cit.).
41
KOHLSDORF, Maria Elaine. As imagens de Brasília. In PAVIANI, Aldo (Org.). Brasília, ideologia e realidade: o espaço urbano em questão. São Paulo, Projeto, 1985, p. 161-190. KOHLSDORF, Maria Elaine. Brasília, mosaico morfológico. Anais do Seminário sobre História da Cidade e do Urbanismo, Rio de Janeiro, Prourb/FAU UFRJ, p. 680-687. KOHLSDORF, Maria Elaine, KOHLSDORF, Gunter, HOLANDA, Frederico de. Brasília: permanência e metamorfoses. In DEL RIO, Vicente; SIEMBIEDA, William. (Org.). Desenho urbano contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro, LTC, v. 1, 2003, p. 39-55.
42
PERPÉTUO, Thiago Pereira. Uma cidade construída em seu processo de patrimonialização: modos de narrar, ler e preservar Brasília. Dissertação de mestrado. Rio de Janeiro, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, 2016. SILVA, Jéssica Gomes da. O GT-Brasília na trajetória de patrimonialização da capital. Dissertação de mestrado. Brasília, FAU UnB, 2019.
43
ZEIN, Ruth Verde. Tradição moderna e cultura contemporânea. In ZEIN, Ruth Verde. Leituras críticas. São Paulo, Romano Guerra, 2018.
44
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45
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sobre a autora
Maria Fernanda Derntl é professora e pesquisadora na FAU UnB. Bolsista produtividade CNPq. Arquiteta e urbanista, mestre e doutora pela FAU USP. Autora do livro Método e Arte: urbanização e formação de territórios na capitania de São Paulo, 1765-1811 (Alameda, 2014) e organizadora do Dossiê Brasilia da Revista Urbana (Ciec-Unicamp, 2018-2019).