Certa vez Marshall Berman (1) criticou os cientistas sociais, dizendo que “retalharam a modernidade em uma série de componentes isolados — industrialização, construção, urbanização, desenvolvimento de mercados, formação de elites — e resistem a qualquer tentativa de integrá-los em um todo”. Contrariando tal resistência, observa-se que uma maneira pertinente de integrar as investigações sobre a modernidade é debruçar-se sobre o advento das ferrovias e sobre as transformações decorrentes de tal advento no que se refere à constituição e conformação de cidades, bem como de configurações sociais, além do silenciamento ou do esquecimento de memórias e identidades em função da emergência tecnológica ferroviária.
Compreende-se que o estudo da formação e transformação de espaços urbanos em relação à implantação de ferrovias constitui um fator fundamental para investigar questões relacionadas às formações identitárias, bem como para a legitimação de territórios dentro da experiência da modernidade. Por isso, este artigo aborda como os primeiros sistemas ferroviários influenciaram conformações urbanas e sociais em países centrais e no Brasil oferecendo passagens que identificam as particularidades de cada contexto, bem como indicam historicamente algumas das consequências da implementação de infraestruturas ferroviárias. Trata-se de um artigo de fundamentação centrado em referências que versam sobre o tema e, majoritariamente, em autores que se propuseram a pensá-lo a partir de uma perspectiva marxista, à luz do materialismo histórico e dialético, de modo que é possível engendrar uma crítica ao capitalismo a partir do mesmo.
Em consonância com Eric Hobsbawm, sabe-se que “nenhuma outra inovação da revolução industrial incendiou tanto a imaginação quanto a ferrovia, [...] o único produto da industrialização do século 19 totalmente absorvido pela imagística da poesia erudita e popular” (2). No entanto, sucede que, ao serem implantadas, as ferrovias contribuíram para constituição e perpetuação de um desarranjo social caracterizado exatamente na distinção entre o erudito e o popular. Foi, inclusive, observando este desarranjo que Karl Marx (3) teorizou e ilustrou o modo de produção capitalista, através da observação e análise do processo na Europa.
A modernidade das ferrovias: uma concepção de cidade e identidade
A partir do final do século 18 e início do século 19, o mundo em que vivemos foi intensamente transformado quando inovações tecnológicas romperam e se difundiram. Foi neste contexto que as ferrovias surgiram na Inglaterra atendendo a demanda das minas de carvão inglesas e, portanto, a demandas industriais e, logo em seguida, abarcando outros usos como o transporte de passageiros, o que as conferiu, sobremaneira, um papel no que se refere à sociabilidade e à constituição de identidades.
Em poucas décadas, as ferrovias se estabeleceram nos principais centros daquela época, no período caracterizado como Revolução Industrial, e se difundiram pelo mundo. Emolduradas pelo capitalismo e com o revolucionamento técnico dos meios de produção, as “coqueluches ferroviárias”, como alcunhou Eric Hobsbawm (4), constituíram um período de especulação aparentemente irracional que foi determinante para a transformação das condições materiais de produção e reprodução e, consequentemente, para uma reviravolta espacial e social que reverberou em muitos lugares do mundo, envolvendo inclusive a conformação e legitimação de territórios. Em dado momento e em determinados contextos, às ferrovias era conferida até mesmo a dimensão simbólica de poder e unidade nacional.
Ao passo que transformavam as noções humanas de espaço, tempo e velocidade, as ferrovias revelavam em si mesmas e de modo tangível, as transformações pelas quais passavam as sociedades. Para Hobsbawm, a razão para esta expansão intensa estava na paixão com que os homens de negócios e os investidores atiraram-se à construção de ferrovias. E compara: em 1830 havia cerca de algumas dezenas de quilômetros de ferrovias em todo o mundo. Já por volta de 1840 havia mais de 7 mil quilômetros, por volta de 1850 mais de 37 mil, sendo que a maioria foi projetada entre 1835-7 e especialmente entre 1844-7 (5). Estes dados demonstram não só a velocidade com que as primeiras estradas de ferro se estabeleceram nos principais centros naquela época, mas relatam a busca incessante pelo mais-valor na economia capitalista.
Em decorrência deste processo, já na segunda metade do século 19, era caótica a situação em centros urbanos desprovidos de planejamento, em função do acelerado e sem precedente crescimento demográfico. Porém, apesar das atribulações que envolviam a vivência nestes centros urbanos e que começavam a reverberar nas margens — em periferias das cidades e do mundo — o sentimento de progresso que os indivíduos experimentaram foi o que, de fato, teve mais relevância, mesmo que em paralelo experimentassem situações um tanto perturbadoras. Foi a partir de reflexões como esta que Berman construiu a sua concepção de modernidade. “Ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento, autotransformação e transformação das coisas ao redor — mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, tudo o que sabemos, tudo o que somos” (6). A partir disto, é possível vislumbrar o caráter das transformações sociais no momento da implantação das primeiras ferrovias e os seus desdobramentos na constituição de identidades e memórias de cada um, enraizadas e em diálogo constante com a coletividade, nos moldes do pensamento de Maurice Halbwachs (7).
Para Berman, a modernidade é capaz de anular fronteiras geográficas e raciais, de classe e nacionalidade, de religião e ideologia, ao mesmo tempo em que nela há permanente desintegração e mudança, luta e contradição. Nesse sentido, ao substituir a palavra “modernidade” por “ferrovia”, nada se perde. Assim como a experiência da modernidade, as ferrovias foram capazes de unir a humanidade em dado momento. Contudo, tal unidade teve um caráter paradoxal, instável e até mesmo efêmero, como o próprio carvão das locomotivas que se esvaía em fumaça. Tudo que é sólido desmancha no ar, assim como pensou Marx e tantos outros em seguida, mas neste caso, literalmente.
Nessa perspectiva, de maneira particular, o trem e as ferrovias se transformaram em alguns dos principais símbolos da modernidade. Segundo Hobsbawm, nenhuma outra invenção revelava para o leigo de forma tão cabal o poder e a velocidade da nova era. Literatura e expressões culturais confirmam esta constatação em diferentes abordagens. Para além de teorias e conceitos voltados à compreensão das situações e circunstâncias da existência nas cidades dentro da modernidade existem, por exemplo, manifestações artísticas que permitem a compreensão da constituição de identidades e memórias em paralelo às transformações nas configurações das cidades, das relações e estratificações sociais. A realidade ganhou representações em publicações e manifestações como, por exemplo, nas obras do inglês Joseph Turner, em especial Chuva, Vapor e Velocidade — O Grande Caminho de Ferro do Oeste (1884) e, cerca de um século depois, nos filmes Metropolis (1926), do diretor austríaco Fritz Lang e Tempos Modernos (1936), de Charles Chaplin.
Outra chave hermenêutica possível para compreender a modernidade paradoxal das ferrovias é por intermédio do pensamento de Georg Simmel. O teórico descreve o conflito e a harmonia como dois aspectos da mesma realidade, em constante interação, e característicos das novas circunstâncias próprias das grandes cidades. Em Soziologie, o autor ilustra:
“Quem vê sem ouvir fica muito mais inquieto do que aquele que ouve sem ver. Esse fato contém algo de muito característico da sociologia das grandes cidades. As relações recíprocas dos seres humanos nas grandes cidades caracterizam-se por um evidente predomínio da atividade do olhar sobre a do ouvido. As causas principais desse estado de coisas são os meios de transporte coletivos. Antes do aparecimento do ônibus, do trem, do bonde no século 19, as pessoas não conheciam a situação de se encontrar durante muitos minutos, ou mesmo horas, a olhar umas para as outras sem dizer uma palavra” (8).
Da atitude blasé que “resulta em primeiro lugar dos estímulos contrastantes que, em rápidas mudanças e compressão concentrada, são impostos aos nervos [...] parece originalmente jorrar a intensificação da intelectualidade metropolitana” (9). É justamente por isso que as grandes cidades constituem o lugar genuíno da atitude blasé. É nas cidades que tal atitude se conforma e é insistentemente reiterada cotidianamente.
Desse modo, o flâneur de Charles Baudelaire talvez seja um dos melhores exemplos das experiências vividas no contexto da modernidade, nas quais o indivíduo, ao mesmo tempo que se identifica com tudo, já não se identifica com nada. A modernidade é, em Baudelaire, uma conquista (10). Seu poema “À une passante” indica a fugacidade e efemeridade vivenciadas neste contexto. É por isso que é tão complexa a compreensão da identidade na experiência da modernidade, pois a mesma é indiferente, instável, paradoxal. Ao passo que aparece, através da história do pensamento ocidental, com o caráter de unidade, de pertencimento, de apropriação (11), o que vem a ser a identidade na indiferença senão a contradição, o esquecimento, o desapego?
Assim, a ferrovia simbolizada nas locomotivas, nos trilhos, nos vagões e, sobretudo na fumaça, acolhe o flâneur de Baudelaire, materializa a atitude blasé teorizada por Simmel, ilustra a unidade paradoxal da modernidade de Berman, concorre com a velocidade das transformações representada visualmente por Turner, reúne a disparidade de todas as condições materiais de produção e reprodução constatadas por Marx e dirigidas artisticamente por Lang e Chaplin caracterizando assim simultaneamente as novas concepções de cidade e de identidade no que concerne à existência humana na modernidade, na qual o ser é indiferente em sua própria identidade.
A partir das constatações, ilustrações e interpretações mencionados, é possível compreender a relação entre a modernidade, a concepção das cidades e a construção da identidade na existência moderna. De fato, estes aspectos estão intimamente relacionados com as ferrovias: estão nelas representados. Logo, o estudo da modernidade representada pelas ferrovias e sua relação com a formação das cidades que surgiram ou se fortaleceram ao seu redor, assim como da identidade do povo e das comunidades que ali se conformam, constitui uma investigação digna e sobretudo necessária.
As primeiras ferrovias e a cidade industrial
As primeiras ferrovias surgiram na Inglaterra no final do século 18 caracterizavam-se pela dimensão modesta e foram concebidas para atender a um pequeno número de indústrias. Contudo, em pouco tempo, elas se sofisticaram tecnicamente e se expandiram. Já no início do século 19, foram apropriadas e utilizadas para outras funções, como o transporte de passageiros, o que resultou em uma nova perspectiva acerca dos trilhos, dos trens e da infraestrutura ferroviária como um todo. A linha Stockton & Darlington, inaugurada em 1825, foi a primeira das modernas ferrovias. Entretanto, somente com a abertura da Liverpool & Manchester em 1830, configurou-se a noção de ferrovia na qual a relação entre o sistema ferroviário, passageiro e cidade seria estabelecida: a Liverpool & Manchester foi a primeira do mundo a realizar o transporte interurbano de passageiros.
Do mesmo modo, o transporte de passageiros em ferrovias nos Estados Unidos também já era uma realidade desde 1830, com o estabelecimento da linha Baltimore & Ohio. Logo, em 1831, foram inauguradas as primeiras linhas de passageiros na França e na Austrália, seguidas por Bélgica e Alemanha em 1835, Áustria, Rússia e Cuba em 1837, e Itália e Holanda em 1839. Não muito adiante, em 1840, as ferrovias estavam praticamente em toda a Europa, e em partes consideráveis da Ásia, América e Oceania (12).
As ferrovias sinalizaram novas concepções de cidade e de identidade social dentro da experiência moderna. Para Marshall Berman, se tentarmos identificar os timbres e ritmos peculiares da experiência moderna do século 19, a primeira coisa que observaremos será a nova paisagem desenvolvida e dinâmica: “Trata-se de uma paisagem de engenhos a vapor, fábricas automatizadas, ferrovias, amplas novas zonas industriais; prolíficas cidades que cresceram do dia para a noite, quase sempre com aterradoras consequências para o ser humano” (13).
Sobre este ponto, Lewis Mumford traz a perspectiva que caracteriza, enfim, o que se compreendeu como cidade industrial. Para o autor, os principais elementos do novo complexo urbano foram a fábrica, a estrada de ferro e o cortiço. Em si mesmos constituíam a cidade industrial (14). Na descrição de Mumford — que poderia servir para muitas cidades ao redor do mundo — “a cidade consistia em fragmentos dispersos de terra, com formas estranhas e avenidas incoerentes, deixadas por acaso entre as fábricas, as ferrovias, os pátios de embarque e os montes de restos” e na falta de regulamentação ou de planejamento, a própria ferrovia definiria o caráter e os limites das cidades nas quais a indústria consolidara-se como núcleo. Mumford constata ainda que os lugares de moradia eram, muitas vezes, situados dentro dos espaços que sobravam entre fábricas, galpões e pátios ferroviários.
Durante décadas do século 19 e até mesmo do 20, em vários centros, especialmente aqueles europeus e estadunidenses, a vida urbana e suburbana apresentou e propiciou conflitos, muitos deles engendrados pela implantação das primeiras ferrovias, mas não só. E como a construção de linhas férreas causou a expansão significativa das cidades, como consequência, surgiu em alguns países a ideia dos planos reguladores, que além dos objetivos funcionais, visavam aqueles econômicos. Nesse sentido, a emergência de planos reguladores pode ser um indicador da dificuldade de gestão do espaço urbano, da ignorância sobre a tecnologia ferroviária e da apreensão em relação aos desdobramentos da presença de linhas férreas, em outras palavras, da complexidade de gerir centros com concentração de pessoas e infraestruturas ferroviárias. Por outro lado, é preciso entender que o planejamento urbano pode ser um poderoso aparato político, posto que frequentemente os interesses de uns são atendidos em detrimento de outros em função daquele. Seja como for, é possível observar que naquele momento emergiram novos pontos de vista do que vem a ser a cidade e ao mesmo tempo que o caos dos centros urbanos fora extremamente criticado, com todas as suas desigualdades e precariedades, o crescimento urbano era visto como algo próspero. E, desse modo, as ferrovias — principalmente na imagística do trem — acabaram por se tornar uns dos principais símbolos de progresso e prosperidade.
A modernidade e a identidade (ou indiferença?) constituída com a chegada das ferrovias
Esse processo de transformação com o prelúdio da modernidade e do progresso do qual as ferrovias fizeram parte, não ficaria restrito à Europa. “Mal tinham as ferrovias provado ser tecnicamente viáveis e lucrativas na Inglaterra (por volta de 1825-1830) e planos para sua construção já eram feitos na maioria dos países do mundo ocidental, embora sua execução fosse geralmente retardada” (15). Este foi o caso do Brasil.
Ao observar o estabelecimento da ferrovia e da modernidade fora de grandes centros, e além disso, fora dos países centrais, percebe-se que certas distinções como contexto social, político e econômico, além de características geográficas, foram fatores determinantes para a distinção e, muitas vezes, acentuação de conflitos. É certo que as ferrovias na Europa e no Brasil foram implantadas em contextos díspares e tiveram rumos distintos. Todavia, o desarranjo social e as contradições pontuadas anteriormente têm similaridades na conjuntura brasileira.
O Brasil, assim como outros lugares ao redor do mundo, viveu o seu momento de “coqueluche ferroviária”. Foi entre os anos 1870 e 1920 que houve a maior expansão do sistema ferroviário brasileiro (16), em um processo parecidos com o observado no contexto europeu. Entretanto, devido às certas peculiaridades frente ao cenário mundial, o Brasil apresentou outros conflitos, principalmente em virtude de sua constituição capitalista tardia, periférica e dependente, e ao seu persistente papel primário-exportador na divisão internacional do trabalho e da produção — fruto de seu passado colonial. Em terras nas quais o aspecto da colonialidade incutiu marcas de difícil superação, a implantação de ferrovias e suas consequências não poderiam ser idênticas àquelas dos países centrais. Na América Latina, muitas das constatações relatadas anteriormente somente se aplicam se forem enfatizadas, enquanto outras, são improváveis. Portanto, a relação entre cidade, modernidade e identidade social relacionada às ferrovias neste contexto merece reflexões específicas.
Sendo a cultura uma acepção sem fronteiras, facilmente adaptável e transmissível, a modernidade representada pelas ferrovias logo seria reinterpretada no contexto brasileiro, em vários aspectos. A influência estrangeira nas ferrovias brasileiras foi a princípio inglesa, mas a participação norte-americana também foi grande (17). O papel da Inglaterra na transformação do modo de vida das sociedades tradicionais, “impondo os hábitos e as práticas culturais e de produção e consumo conforme o novo padrão da economia de base científico-tecnológica” é abordado por diversos autores, como Andrea Maia. Nesse contexto, “a estação de trem é uma vitrine desse novo modo de vida moderno” (18).
Com efeito, a identidade do sujeito brasileiro incorporou a modernidade a partir do advento das ferrovias no Brasil, já em meados do século 19. O processo de identificação esteve relacionado ao turbilhão de transformações e, principalmente, ao avanço tecnológico representado pela construção das ferrovias, consideradas durante muito tempo como parte significativa do sentimento de integração e conexão com o restante do mundo. Na opinião de Pablo Lima, foi por meio das ferrovias que o brasileiro se viu, finalmente, no mesmo patamar do estrangeiro. Para o autor, a ferrovia surge então como um instrumento capaz de possibilitar o rompimento com a situação de atraso cultural, transformando o país em nação civilizada (19).
As lideranças da época valeram-se de capital e tecnologia importada para a construção das ferrovias, enquanto a força de trabalho do escravizado e do imigrante, que dizia-se já chegar com um certo conhecimento técnico, foram essenciais. Nesse sentido, é preciso pontuar que por trás da chegada de mão de obra qualificada para trabalhar na construção das ferrovias, estava uma política de embranquecimento da população, que evidentemente coincide com o momento em que a escravidão perdia sua legitimidade mundialmente. Não é à toa que, no mesmo período, o governo brasileiro ensaiava a abolição do regime escravista.
Por outro lado, neste contexto, os governos e as próprias companhias férreas investiam na instrução prática de engenheiros e outros profissionais relacionados ao trabalho nas ferrovias. Foi quando apareceram novas profissões como topógrafos, desenhistas, maquinistas, telegrafistas, caldeireiros, fundidores, mecânicos, torneiros etc (20), o que nos leva a perceber que a história da influência social e cultural das ferrovias no Brasil permite a reflexão não só sobre a apreensão da modernidade e a constituição da identidade daquele que é passageiro e vislumbra-se com a estação e o trem, mas sobre o papel da inserção tecnológica na vida das pessoas que foram tornando-se partes do trilho condutor dos trens — através da sua força de trabalho — e, portanto, igualmente condutores de todo um arcabouço cultural de identidade indiferente.
As primeiras ferrovias no Brasil
A eclosão das ferrovias no Brasil no século 19 integrou um cenário de transformações que contribuiu para a conexão dos grandes centros, para o crescimento dos pequenos e formação de vários outros, principalmente nos arredores de locais que subsistiam através de atividades agrícolas. Antigas localidades do período colonial tiveram suas conexões físicas fortalecidas e dinamizadas ao longo das ferrovias brasileiras. Estudos demonstram que 300 a 400 cidades no Brasil nasceram a partir das ferrovias (21). Por outro lado, as ferrovias causaram também a decadência e abandono não só dos antigos caminhos, tornados inúteis, como também de numerosas povoações à margem destes e que ficaram longe das novas estradas.
Os primeiros projetos e iniciativas ferroviárias no Brasil aconteceram na década de 1820, e a primeira lei relacionada data de 1835. No entanto, a primeira ferrovia foi inaugurada somente em 1854, já com outra legislação em vigor (22): a Estrada de Ferro Mauá que ligava o Porto de Mauá a Fragoso, no Rio de Janeiro. Com apenas 14,5 km, longe de conectar grandes centros, a pequena linha que saía da Estação Guia de Pacobaíba representou o início uma época de muitas transformações, haja vista que nos anos seguintes muitas outras ferrovias foram inauguradas.
Para Telles, os impactos sociais foram sentidos em vários aspectos, dentre eles i) a facilidade de transportes, que criou o hábito de viajar e terminou com o isolamento social e cultural de pequenos núcleos; ii) o abandono a que foram relegados os antigos caminhos e as povoações que ficaram ao largo das novas estradas; iii) a valorização do trabalho livre, das chamadas artes mecânicas e da própria profissão do engenheiro; e, finalmente, 4) o choque de civilizações, entre o pessoal pacato e atrasado do interior e os engenheiros e técnicos, muitos dos quais estrangeiros, que invadiram esse interior para construir as estradas. É por isso que o sociólogo Gilberto Freyre escreveu: “Quem diz trem ou transporte diz todo um complexo socio-cultural” (23).
Os impactos descritos por Telles são capazes de sintetizar as transformações relacionadas à implantação das ferrovias no Brasil, mas não apenas isso, elas descrevem substancialmente o desenvolvimento do capitalismo no país, que teve como mecanismos importantes a instituição da propriedade privada, a abolição do escravismo e a ocupação de terras consideradas improdutivas, com uma postura essencialmente liberal do Estado. Eram estas as transformações que figuravam nas vitrines e que foram adquiridas em nome de “progresso” e “modernidade”. É preciso, antes de mais nada, considerar que as teorias do atraso e do progresso dos povos modernos no âmbito da civilização industrial se formularam com um ponto de vista europeu, não sendo satisfatórias e nem dignas da experiência brasileira (24). Partindo deste entendimento, observa-se que o termo “choque de civilizações”, por exemplo, fica banalizado ao remeter às circunstâncias nas quais estrangeiros invadem o interior do Brasil, onde estava então um pessoal supostamente “pacato e atrasado”. Tendo isso em vista, já é possível vislumbrar o impacto da implantação da infraestrutura ferroviária ao longo da história da conformação social e territorial brasileira.
A construção das ferrovias era vista como vanguardista e potencializadora da exportação das matérias-primas que tinham maior demanda nos mercados internacionais e que o Brasil contava com importante produção (25). Aparentemente, o processo de importação de tecnologia e exportação dos produtos seria um intercâmbio benéfico. De fato, a exportação total do café quase dobrou no período de apenas dez anos (1850-1860), o que atribui-se ao transporte do grão em ferrovias. Ora, o que antes era somente atividade agrícola, passou a ser uma única esfera das várias atividades industriais. Na visão de Francisco Foot Hardman, o conceito de indústria era suficientemente abrangente e plástico para abrigar as atividades agrícolas que recebessem os aperfeiçoamentos técnicos. Para o autor, as estradas de ferro representaram uma empresa de grande porte e sua rápida internacionalização, durante a segunda metade do século 19, foi um dos fatores básicos para que se articulasse com o mercado mundial (26).
Em contraponto, Lima afirma que os autores da memória oficial representam a ferrovia enquanto instrumento de expansão do progresso capitalista pelo interior do Brasil, mas estas construções imaginárias entusiásticas da locomotiva conduzindo a civilização ao sertão contrastam com a história das realizações ferroviárias no país (27). De fato, na esfera política as circunstâncias se transformaram significativamente durante o período de implantação e consolidação das ferrovias, fazendo com que o processo fosse prejudicado com a falta de planejamento ou descontinuidade de planos.
Construídas com a principal finalidade de consolidar rotas de comunicação entre interior e grandes centros — regiões de produção e exportação — as primeiras grandes ferrovias do país foram as principais responsáveis pela consolidação dos centros os quais conectavam e pelo surgimento e crescimento de pequenos centros entre tais localidades. As estradas de ferro das companhias Recife and São Francisco Railway e Estrada de Ferro Dom Pedro II, inauguradas em 1858, a Bahia and São Francisco Railway inaugurada em 1860, São Paulo Railway Company – SPR inaugurada em 1867 e a Companhia Paulista de Estradas de Ferro – CP inaugurada em 1872, são exemplos; já as companhias Recife and São Francisco Railway e Bahia and São Francisco Railway foram responsáveis por conectar parte do nordeste brasileiro, apesar de nem tudo ter sido construído como o planejado. Já a SPR, responsável pelo transporte ferroviário entre Santos e Jundiaí, fortaleceu as atividades das duas centralidades; e a Estrada de Ferro Dom Pedro II, cujos primeiros trechos foram inaugurados em 1858 e 1864, conectou grande parte do sudeste brasileiro, permitindo a integração entre parte das cidades de Minas Gerais, e dos estados Rio de Janeiro e São Paulo.
Em menos de um século foram construídas centenas de linhas férreas no Brasil, com características distintas: públicas e privadas, de administração estrangeira ou brasileira, em meio urbano, rural ou em trechos ainda não desbravados do território, voltadas ao escoamento de produção agrícola, articulação territorial, proteção de fronteiras etc. (28). E além da consolidação e formação de grandes centros, sem dúvida, as ferrovias foram responsáveis pelo surgimento de um novo tipo arquitetônico: aquele das construções de apoio à linha ferroviária como estações e plataformas, armazéns, depósitos e oficinas, além das estruturas necessárias para vencer obstáculos, como pontes, túneis e viadutos (29).
Com isso, nota-se que a influência dos complexos ferroviários na configuração urbana era sentida. Por outro lado, é possível afirmar ainda que as construções ferroviárias realizadas naquela época e, em especial, as estações, traziam à tangibilidade os paradoxos abordados anteriormente, em torno da ideia de modernidade. Ao mesmo tempo que indicam uma identidade local, até mesmo com inscrições de nomes de bairros e cidades, reforçando o sentimento de pertencimento e apropriação em relação à determinada localidade, indicam o desapego, uma vez que passada a roleta e deixada a plataforma de embarque, abriram-se oportunidades de deslocamento e transformação até então sem precedentes.
Uma viagem de trem
A principal provocação que o desenrolar deste artigo pretendeu trazer é a constatação de que o paradoxo representado pela modernidade está impresso nas ferrovias. Se ser moderno é encontrar-se em um ambiente que promete aventura, poder, alegria, crescimento e transformação, mas ao mesmo tempo ameaça destruir tudo o que temos, sabemos e somos, ser moderno pode ser igualmente definido na experiência de uma viagem de trem. As experiências espaciais e temporais da modernidade não possuem fronteiras: estar em um vagão em movimento é ao mesmo tempo estar em um lugar e estar em lugar nenhum. É impermanente, é paradoxal, como diria Berman. É blasé, como diria Simmel.
Industrialização, construção, urbanização e demais processos tidos como da modernidade, incluindo as transformações no próprio comportamento do ser humano e suas relações, tiveram como um dos principais, ou senão o principal símbolo, as ferrovias, assim como defende Hobsbawm. As obras artísticas que foram inspiradas pela modernidade e ao mesmo tempo a representam, como as de Turner, Chaplin e Baudelaire, estão a todo momento evidenciando a efemeridade vivenciada neste contexto no qual tudo que é sólido desmancha no ar, conforme Marx, e que se exprime com excelência no carvão queimado nas locomotivas. Por outro lado, considerar a estação ferroviária como uma vitrine da modernidade implica considerá-la passível de sentimento de pertencimento, parte importante e constituinte da identidade dos indivíduos e das sociedades que vivenciaram — ou vivenciam? — a modernidade.
Assim, apoiando-se em uma abordagem de contextos nos quais surgiram as primeiras ferrovias foi possível perceber o caráter de modernidade intrínseco, paradoxal, e a importância da relação entre ferrovias e cidades na construção de uma identidade social dentro da experiência moderna. Através das passagens trazidas, buscou-se explorar a visão de alguns autores que se debruçaram sobre o histórico do advento das ferrovias, visando apresentar particularidades contextuais que permitissem contrapor as realidades de países centrais com o caso brasileiro. Um aspecto inerente aos contextos abordados é que não havia planejamento urbano que considerasse previamente o impacto das ferrovias nas cidades. Consequentemente, muitas cidades foram criadas ou transformadas vertiginosamente, sem levar em consideração os impactos sociais ou ambientais das ferrovias, por exemplo, e por muito tempo, não se atentou para a situação efetiva das cidades em relação ao advento tecnológico ferroviário.
Uma distinção entre os contextos se dá essencialmente nos princípios das ferrovias. Enquanto nos países centrais as ferrovias foram inventadas visando principalmente a atividade industrial, e somente depois passaram a ser pensadas para o transporte de pessoas, no Brasil, as ferrovias já foram incorporadas pensando no transporte de cargas e de pessoas, mas aquelas eram essencialmente agrícolas. Outra distinção se dá nas distâncias que deveriam ser percorridas, que no primeiro caso são diminutas em relação ao segundo, já que o Brasil possui extensão territorial continental. A dimensão simbólica da ferrovia e principalmente da imagística do trem é enfatizada no caso brasileiro pelos mesmos motivos apresentados anteriormente e, consequentemente, a questão identitária se vê evidenciada. A esta última, acrescenta-se o sentimento de pertencimento proporcionado — paradoxal e digno da experiência moderna — a partir da sensação de pertencer a um só lugar ao mesmo tempo em que se está conectado ao mundo.
Com um salto na história para a atualidade, percebe-se que em países centrais a maior parte das ferrovias seguem ativas na vida urbana, tendo sido apenas adaptadas às realidades atuais. Já no contexto brasileiro, grande parte das ferrovias presenciaram os anos de sua decadência e estagnação a partir da segunda metade do século 20, simultaneamente ao incentivo ao rodoviarismo e à nova política instaurada no país. Seguiu-se um desmonte de muitas linhas, cujo espólio se degrada continuamente, e a concessão de muitas outras, majoritariamente para empresas que atuam no transporte de cargas, sendo este último um traço inerente ao neoliberalismo.
A partir do início do presente século, percebe-se o aprofundamento no estudo de alternativas de meios de transporte de passageiros no Brasil, apontando para um possível retorno do modal ferroviário em algumas localidades almejando cidades mais sustentáveis. Paralelamente, observa-se a tentativa de resgatar a memória relacionada às ferrovias e de preservar seu espólio. Em ambos os caminhos têm aparecido muitos obstáculos. Que este artigo seja útil para profissionais e pesquisadores que se interessam pela temática, visto que a carência de estudos análogos é real, e que possa motivar mais pesquisas nesse sentido.
notas
1
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. São Paulo, Companhia das Letras, 1986, p. 46.
2
HOBSBAWM, Eric. A era das revoluções: Europa 1789 — 1848. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1977, p. 61.
3
MARX, Karl. O Capital: Crítica da economia política. Livro 1. O processo de produção do capital. São Paulo, Boitempo, 2013.
4
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 62.
5
Idem, ibidem.
6
BERMAN, Marshall. Op. cit., p. 24.
7
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo, Vértice, 1990.
8
SIMMEL, Georg [1912]. Apud BENJAMIM, Walter. Baudelaire e a Modernidade. Belo Horizonte, Autêntica, 2015, p. 40.
9
SIMMEL, Georg. 1950 [1902]. A metrópole e a vida mental. In VELHO, Otávio Guilherme (Org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro, Zahar, 1967, p. 14.
10
BENJAMIM, Walter. Baudelaire e a Modernidade. Belo Horizonte, Autêntica Editora, 2015.
11
HEIDEGGER, Martin. Identidade e diferença. Petrópolis, Vozes, 2018, p. 9; 13; 20-21.
12
HOBSBAWM, Eric. Op. cit.
13
BERMAN, Marshall. Op. cit., p. 28.
14
MUMFORD, Lewis. A cidade na história. São Paulo, Martins Fontes, 1998, p. 484.
15
HOBSBAWM, Eric. Op. cit., p. 61.
16
BARAT, Josef. A evolução dos transportes no Brasil. Rio de Janeiro, IBGE/Ipea, 1978.
17
TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da Engenharia Ferroviária no Brasil. São Paulo, Notícia & Cia. 2011, p. 27.
18
MAIA, Andréa Casa Nova. Encontros e despedidas. História de ferrovias e ferroviários de Minas. Belo Horizonte, Argvmentvm, 2009, p. 46-7.
19
LIMA, Pablo Luiz de Oliveira. Ferrovia, sociedade e cultura, 1850/1930. Belo Horizonte, Argvmentvm, 2009.
20
TELLES, Pedro Carlos da Silva. Op. cit., p.27.
21
BOLOGNANI, Robson. Patrimônio Ferroviário: Aspectos Legais. I Fórum Nacional do Patrimônio Cultural, Ouro Preto/ Brasília, 2009, Iphan, 2012, p. 43.
22
CUELLAR, Domingos; OLIVEIRA, Eduardo Romero de. CORREA. Lucas Mariani. Una aproximación a la historia del ferrocarril en Brasil (1850-1950): Legislación, empresas y capitales britânicos. Associación Espanola de Historia Economica, Number 1602, February, 2016.
23
TELLES, Pedro Carlos da Silva. Op. cit., p. 54.
24
RIBEIRO, Darcy. Os Brasileiros: Teoria do Brasil. Petrópolis, Vozes, 1978.
25
SAUS, María Alejandra. Infraestructura ferroviaria y ciudad: su cambiante correspondencia espacial desde los paradigmas de la ciencia, la historiografía urbana y el urbanismo. Revista de Estudios Sociales, n. 45, abr. 2013, p. 144-157.
26
HARDMAN, Francisco Foot. Trem Fantasma: a modernidade na selva. São Paulo, Cia. das Letras, 1988.
27
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sobre a autora
Jéssica Rossone é arquiteta e urbanista (2016) e mestra em Ambiente Construído (2018) pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Doutoranda do Instituto de Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Publicou “A Teoria e prática do restauro arquitetônico: a influência da cultura europeia e seus desdobramentos na realidade brasileira” (Revista Arq.Urb, n. 16).