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research

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architexts ISSN 1809-6298


abstracts

português
A visão de mundo renascentista definiu a criação de um estandarte para o modo único de perceber e representar o espaço. Experimentos demostram que os modos de representação do espaço não são neutros e podem interferir na percepção espacial.

english
The Renaissance worldview defined the creation of a ensign for a unique way of perceiving and representing space. Experiments evidence that the techniques of representation of space are not neutral and can tamper with spatial perception.

español
La cosmovisón renascentista definió la creación de una insígnia para una forma única de percibir y representar el espacio. Experimentos demuestran que los modos de representación espacial no son neutrales y pueden interferir con la percepción espacial.


how to quote

REZENDE, Michela Perígolo; PORTO, Renata Maria Abrantes Baracho. Representação espacial e visão de mundo. Arquitextos, São Paulo, ano 21, n. 250.06, Vitruvius, mar. 2021 <https://vitruvius.com.br/revistas/read/arquitextos/21.250/8029>.

Na arquitetura e urbanismo faz-se uso de vários modos de representação espacial. Pensar e perceber o espaço, historicamente, desencadeou a criação de diferentes modos de representar. Espera-se traduzir o espaço existente ou idealizado em um plano, seja em um papel ou em uma tela de um computador, através de plantas, fachadas, cortes, esquemas, perspectivas, e de certo modo, também através de escritos, textos, fotografias e do cinema; e mais recentemente as tecnologias de modelagens em espaços virtuais. Estas representações estão baseadas na concepção de um espaço cartesiano, objetivo, mensurável, ordenado, infinito e padronizado. De modo diferente, croquis livres e representações mais artísticas, e por vezes icônicas, não assumem a grade ortogonal cartesiana como referência. Neste caso, a representação espacial pode ser bem mais subjetiva, heterogênea, finita e pessoal. Ao que parece, toda representação leva consigo uma normatização, um dogma norteado por um estandarte que simboliza os valores a ela associados. Neste sentido, ela nunca seria neutra.

Para este artigo, como fundamento do caminho que define o modo de ver e representar o espaço recorreu-se a argumentações teóricas sobre a percepção e representação procurando destacar as bases do pensamento renascentista em sua normatização e definição do ambiente visual como cenário, bem como nos seus possíveis desdobramentos nos ambientes virtuais atuais. Procurou-se analisar se a determinação de um modo padrão de representação do espaço como uma linguagem universal pode levar a uma homogeneização da percepção, ou domesticação do olhar. Foram assinaladas críticas de alguns autores sobre a arquitetura contemporânea em seu predomínio sobre a visão e apresentados alguns experimentos que procuram corroborar com o estudo proposto além vislumbrar alternativas pedagógicas para atenuar ou driblar estes efeitos.

Entre perceber e representar

As delimitações dos conceitos de percepção e de representação estarão sempre atreladas, não sendo possível mesmo alterar um sem comprometer o outro. O fisiológico, mas também o psicológico afeta a percepção humana. Desta forma, o espaço per se, externo, não seria muito autoexplicativo, dotado de características únicas que gerassem percepções universais. Esta heterogeneidade da percepção se torna quanto mais evidente quando comparamos culturas muito distintas como a cultura africana negra e a europeia branca (1), mas poderia também ser percebida em nuances mais sutis em qualquer interface entre culturas mesmo em um universo mais específico como o da arquitetura.

Representar o mundo em que se vive, ou aquele em que se quer viver, sempre foi uma necessidade humana. Desde as representações rupestres até as atuais representações em ambientes virtuais, o ser humano almeja registrar algo que lhe é caro. Também na representação da arquitetura, diante de um universo de possibilidades, a escolha do que e como será representado parece passar por um crivo de valores. “Dessa forma, as pessoas tendem não apenas a selecionar os estímulos de acordo com sua capacidade de poder vê-los e senti-los, mas também pelo desejo e discernimento entre o que se quer e o que não se quer aprender” (2).

Por este caminho, visto a representação enquanto imagem; até mesmo a escrita; um meio na qual a informação revela ou oculta, haverá sempre um distanciamento entre a imagem e a realidade, e à consequente desvalorização da última.

Cabe aqui vislumbrar um paradigma diametralmente oposto ao perfil geral dos arquitetos da atualidade, mesmo que pareça estar cada vez mais no campo da ficção. Um arquiteto que não representa, que não pro-jeta através de um pensamento racionalizador linear, que faz do pensar um fazer, e do fazer o pensar. Um perfil assim rebela, ou simplesmente ignora o dispositivo da representação da imagem e com isso também a sua representatividade social. Pensando assim, “devemos entender que a representação mantém uma relação de essência com o duplo, com o duplo corpo. E que essa palavra seja aqui compreendida não só no seu sentido de corpo carne, mas também de corporação, e corpo social” (3). Por outro lado, o não representar presente em arquiteturas espontâneas de algumas culturas tradicionais ou populares, poderia indicar uma aproximação maior entre a proposição mental e o objeto, e a uma maior vivificação dos espaços.

Jonathan Crary (4), no campo de estudos relacionados com mídias, destacou importantes mudanças ocorridas a partir do Renascimento e que culminaram nos dias atuais. O modelo renascentista da “câmera escura”, que predominou até fins do século 18, gerou um distanciamento do sujeito em relação ao mundo, pela própria configuração do aparelho que isola o primeiro e transforma tudo ao seu redor em exterior. O ato de ver foi descorporalizado, uma vez que o corpo físico não participava do processo de significação. Para o autor o sujeito assumiu a posição de espectador, onde também Pável Floriênski (5) e Erwin Panofsky (6) o compararam a um ciclope estático (referenciado ao olho direito em que se apoia a técnica da perspectiva) que assiste a um mundo também estático e cartesiano. Talvez a crítica maior não tenha sido tanto a visão em si, afinal ela deve ser usada, não nos pretendemos ciclopes, mas muito menos cegos. Mas a questão latente ainda pouco explorada por eles, pelo menos com o viés que é proposto aqui, é a normatização da visão.

A partir do século 19 novos aparatos técnicos de visualização (como estereoscópio que produz visão binocular e tridimensional através da sobreposição de planos multifocais) reposicionaram o sujeito. Com este novo aparato, a visão se materializou e se corporificou (atentemos que não na realidade, mas na imagem) se fundindo com as muitas possibilidades agora aferidas ao sujeito. O sujeito assumiu a posição de observador, ou mesmo voyer, devido sua maior relação de intimidade com a imagem. Contudo não deixava de obedecer às prescrições do aparelho. Machado reafirma esta diferenciação entre espectador e observador uma vez que “não havendo ponto de fuga ou ponto de vista únicos, não há também hegemonia de um código perspectivo unilocular, como aquele que norteou toda a história da iconografia ocidental a partir do século 15” (7).

Embora também assinalemos a mudança ocorrida na relação entre a representação mental e o objeto, como reafirma Machado a partir das teorias de Crary, entendemos que o paradigma da visão de mundo do Renascimento, o seu estandarte, ainda hoje não foi superado e sim sofreu um upgrade. Nesta nova faze deste paradigma, o sujeito parece ter sido engolido pelo cenário, dada as próteses acopladas ao seu corpo que o inseriu em um outro tipo de imagem, e mais recentemente na realidade virtual.

Avançando um pouco mais até onde Crary teorizou, poderíamos supor que a posição em que o sujeito ocuparia a maior expansão sensorial e consciencial seria a de contemplador. Contemplar, examinar e considerar profundamente. Sua origem etimológica veio da junção de duas palavras de raiz latina, cum – com e templum – templo. Se colocar em um estado de grande atenção e comunhão com o objeto a ponto de torná-lo sagrado. Mircea Eliade (8) fez referência a este estado alcançado pelo sujeito de algumas culturas tradicionais quando cunhou o termo hierofania. Contudo, achamos demasiado otimista especular que o avanço da tecnologia possibilitaria o retorno ou resgate do contemplador. Neste a percepção se mostraria pessoal, intransferível, e incodificável, o que parece fugir ao perfil das informações plausíveis de serem mapeadas e codificadas pelas novas tecnologias.

O estandarte para o modo único de perceber e representar o espaço

Pelo que alguns autores apontaram, pelo menos a partir do Renascimento e, sobretudo depois do Iluminismo, certas técnicas de representação passaram a predominar. De certo, esta predileção estava ligada à formatação da cultura contemporânea, ou antes, da pós-moderna (9). Sobre este modo instaurado de pensar e representar a arquitetura a partir de uma mente linear:

“É uma razão que ‘pro-jeta e é o ‘projeto’, elemento central da arte de construir, o que Alberti enfatiza na história da racionalidade ocidental junto com a dimensão mental que permite à arquitetura se deslocar para o campo das ars liberalis e se tornar uma das protagonistas do humanismo. O protagonismo dessa arte no humanismo se dá justamente por ela ser o paradigma de atos que derivam do pensamento, da teoria. Os líneamentís da arquitetura compreendem isso. Eles antecipam na mente, ao máximo possível, o que se terá depois no real e congregam em seus traços e ângulos as dimensões da firmitas, da utilitas/commoditas e da venustas, simultaneamente. A abstração do lineamentis não é, portanto, uma fantasia, idealização ou ideia” (10).

Por este pensamento, a arquitetura instaurada no Renascimento foi então colocada como protagonista do humanismo, e de certo, a todo pensamento vinculado a ele (11). A formatação de uma percepção e modo de representar universal a partir de uma visão de mundo única. A busca constante de uma padronização, catalogação e homogeneização do saber. Ao positivismo científico que prega um caminho único, progressista e higienizador. De modo que a arquitetura conquistou um novo status quando se instaurou uma linguagem douta para os indivíduos responsáveis pela ideia, os arquitetos.

Os renascentistas redescobriram os princípios da perspectiva cônica e aprimoraram a técnica desenvolvendo inúmeros experimentos que puderam alcançar o que se entendia como a representação da “realidade”. Leonardo da Vinci deixou claro o processo ao qual o artista deveria se colocar para produzir uma perspectiva:

“Demonstre como nada pode ser visto exceto através de um pequeno orifício através do qual passa a atmosfera preenchida de imagens de objetos que se cruzam em frente uns aos outros devido à profundidade, lados opacos do referido orifício. Para isso, nada imaterial pode descrever a forma ou a cor de um objeto, sendo este entendido como profundidade, um instrumento opaco é necessário se, através deste orifício, as imagens dos objetos assumirem cor e forma” (12).

O processo citado demonstrou a grande importância atribuída ao sentido da visão no período do Renascimento. Floriênski também descreveu que a própria invenção da técnica da perspectiva, segundo Virtrúvio, foi atribuída à Anaxágoras, filósofo grego do período pré-socrático (500 a.C.–428 a. C) a partir de técnicas provindas da representação de cenários teatrais. Para autor articulava-se a gênese na qual se encenaria a cultura moderna, onde todo o mundo é visto como cenário. De forma análoga, na configuração deste novo paradigma, Erwin Panofsky colocou “a perspectiva como um triunfo do sentido distante e objetivo da realidade, ou como a expansão da esfera do eu” (13).

Por aquela nova forma de ver, todo o mundo era um palco representado num teatro chamado The Globe. Como contrapartida, os títulos dados comumente a atlas e mapas, eram “tais com o Theatre of the Empire of Greate Britain e o atlas francês Théatre Français de1594”. Seguindo este caminho, mais adiante, nos deparamos com a construção de paisagens (rurais e urbanas) segundo os mesmos princípios do cenário teatral, uma vez que a natureza foi dessacralizada para ser dominada, explorada e emoldurada.

Para Fernando Freitas Fuão, “os primeiros passos para uma organização dos sentidos tal como compreendemos hoje foram dados no Quatrocentos quando se inventou a perspectiva e se utilizaram de vários instrumentos ópticos para a representação em profundidade” (14). Origem da padronização da percepção que tendeu a privilegiar o sentido a ela referenciado também para a arquitetura. “Sentido este que logo se fez reticulado como um tabuleiro seguindo as regras gramaticais da confecção da perspectiva: pirâmide visual albertiana, pontos imaginários no infinito, linha do horizonte, distância do observador etc.” (15). Deste modo a acomodação de ver o mundo em perspectiva não é um dado natural ao humano, e sim uma construção do ver. Se vemos o mundo hoje em perspectiva; ruas, paisagens, objetos, é porque construímos uma realidade em perspectiva, um mundo em uma profundidade horizontal, a representação em perspectiva constrói um mundo perspectivado e esse mundo perspectivado convalida a ficção da perspectiva, a ilusão da profundidade. Em síntese, a noção de profundidade em perspectiva se verifica quando temos uma construção do mundo segundo as regras da perspectiva (16).

Assim, parece coerente a argumentação inicial sobre a visão de mundo renascentista haver estabelecido um estandarte para um único modo de perceber e representar o espaço. Para as atuais mudanças na percepção através das modelagens virtuais, onde o observador é acoplado à máquina em seu modo de perceber e corporificar o espaço, o modo renascentista sofreu mutações consideráveis. Ao que parece, porém, vivenciamos um aprofundamento e uma radicalização das premissas humanistas de formatação e domesticação da visão. Só que agora, esta normatização estaria camuflada e sistematizada pela programação computacional no ambiente digital. Afinal a arquitetura virtual é regida por “um espaço geométrico organizado por pixels apresentados na tela e que se reproduz em qualquer superfície,” uma visão de mundo codificada para “um espaço matemático, binário, calculável, organizável, ordenável. A lógica da dominação passa pela lógica da matemática e de sua relativização cultural” (17).

O predomínio da imagem em nossa cultura e seus desdobramentos na arquitetura

Disciplinas como a arquitetura e o urbanismo pedem imaginação, capacidade de criar a partir de ideias, criar a partir de imagens, colocar a imagem em ação. Se as imagens mudam, espera-se que as ideias mudem também. Alterar os ingredientes de uma receita interfere no resultado, mas se a intenção for estandardizar um processo como fórmula, faz-se necessária a parametrização. Assim, atenta-se sobre uma linguagem codificada com uma resposta universal poder inibir o processo criativo se bloquear caminhos e relações entre entes que já não tenham sido previstos pela técnica usada.

Alguns autores ressaltaram como a invenção da representação em perspectiva "tornou os olhos o ponto central do mundo perceptual, bem como do conceito de identidade pessoal. A representação em perspectiva em si própria se tornou uma forma simbólica, que não apenas descreve, mas também condiciona a percepção” (18). Fuão no artigo O sentido do espaço. Em que sentido, em que sentido?, ao questionar sobre o sentido da arquitetura, parece querer sacudir as bases, questionar as normas estabelecidas, o determinismo arquitetônico. Sair do espaço cartesiano, ordenado, homogêneo e calculável para submergir na falta de sentido ou na Das Unheimlich (a inquietante estranheza) de Freud que demonstrou que os mecanismos do sentido passam pela falta de sentido, a desorientação e aqui, mais adequadamente ao tema, pela falta de codificação. Ressalta a importância da geometria ocidental moderna, “a regularidade dos espaços, os alinhamentos da cidade reticulada na formação do sentido moderno. Quanto mais a sociedade do espetáculo avança em sua trajetória ao nada mais rígida e especializada suas formas se tornam” (19). O autor aponta como possível caminho, um novo sentido ou paradigma que não mais se estabelece na profundidade ordenada produzida pela perspectiva renascentista, nem na verticalidade subjetiva religiosa medieval, mas sim em um sentido de superfície, baseado nos postulados existencialistas e na filosofia da dobra de Gottfried Wilhelm Leibnitz e Gilles Deleuze.

Mas atualmente, sobre este limiar das arquiteturas possíveis que os novos programas de modelagem 3D estão viabilizando, parece ser um assunto que traz grandes expectativas, mas também considerações. Estes novos modelos “permitem ao projetista, através de inputs alfanuméricos, modificar o output gráfico do programa computacional, incidindo indiretamente na forma gerada pelo software, como ocorre no projeto digital de processos generativos” (20). Por estes processos o arquiteto, e agora também toolmaker (construtor de ferramentas), almeja ter maior domínio e liberdade na criação de suas formas arquitetônicas. Começam a aparecer geometrias fractais e topológicas que não poderiam ser projetadas (ou talvez mesmo pensadas) pelos meios de representação mais tradicionais. Todo este processo possibilitado pela gestão da informação, que é capaz de colocar a forma em ação, ou como disse Vilém Flusser, “dar forma a algo” (21). A gestão pressupõe domínio, é um ato político que responde a certos ideais. De certo, a forma mais eficiente de alienação é o excesso de informação. As infinitas possibilidades e dados informatizados que podem ser disponibilizados nestes programas, se não forem devidamente compreendidas pelo sujeito, talvez pudessem mais confundir, desfocar ou iludir do que situar. A “nova relação com o saber” (22) pede inovações nas práticas pedagógicas uma vez que cognição humana passa também por uma metamorfose quando atrelada às recentes tecnologias.

Experimentos

Sobre a normatização do espaço através de sua imagem, seja no ensino ou na prática profissional no campo da Arquitetura e Urbanismo, reforça-se a importância de se retomar o tema da representação a fim de analisar se a determinação de um modo padrão de representação do espaço como uma linguagem universal e consequente manipulação da informação, pode levar a uma homogeneização da percepção, ou domesticação do olhar. Para contrapor a esta possível tendência, algumas alternativas pedagógicas podem ser criadas para atenuar ou driblar estes efeitos, chamando a atenção para a pluralidade e o sentido ideológico atrelado às representações. Necessário se faz ensinar sem limitar, abrindo possibilidades para modos de ver e registrar o mundo das mais variadas formas, sem domesticar a visão, a percepção, para que o registro seja o mais heterogêneo e rico possível, e finalmente, que o registro seja sempre um ato libertador, e não condicionante.

Apresentamos alguns experimentos realizados com alunos de Arquitetura e Urbanismo (desvelar e navegar) e com cidadãos da cidade de São Lourenço, Minas Gerais (espacializar e domesticar). Os primeiros experimentos foram trabalhos de alunos direcionados em disciplina ministrada pela autora, oferecida no primeiro período do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Izabela Hendrix em Belo Horizonte, no ano de 2014. Os dois últimos experimentos fazem parte de uma pesquisa maior intitulada “Estudo de Significância e representatividade da cidade de São Lourenço” (23) ainda em andamento.

Primeiro experimento: desvelar

Através de pesquisa de campo com a produção de mapas visuais, os alunos foram orientados a levantar a percepção de usuários de algumas praças de Belo Horizonte. Os alunos convidaram alguns usuários da praça estudada a fazer um rápido registro do espaço em no máximo quinze minutos. Estes registros evidenciaram a hierarquia de valores adotada de acordo com a idade e profissão de cada usuário. Reforçamos a ideia que representamos somente o que tomamos como valor e rejeitamos o excedente. Independente do lugar onde o usuário esteja é registrado o que ele mais valoriza e com o seu ponto de vista particular. Uma bióloga (28 anos) coloca uma árvore em primeiro plano, uma estudante de sociologia (23 anos) volta o olhar para as pessoas, um jovem militar (18 anos) admira a imagem masculina com uma visão bastante fálica, uma criança (9 anos) vê a mesma imagem de forma triste e opressora.

Mapas visuais de usuários da Praça da Estação, Belo Horizonte MG
Acervo das autoras

Segundo experimento: navegar

O “Diário de bordo” foi posto para os alunos de Arquitetura e Urbanismo como um instrumento pedagógico que visa incentivar e estabelecer fontes primárias de estudo para a percepção do espaço. Nesta dinâmica, cada aluno foi desafiado a construir um personagem e criar registros gráficos a partir da grade de valor do perfil estabelecido por ele. Seguindo a ordem: passarela por um artista criado pelos alunos; passarela pelo perfil Kandinsky; foto passarela; playground pelo perfil Kandinsky; playground por um adulto e uma criança; foto playground; Praça da Estação pelo perfil Carl-Henning Pedersen; foto Praça da Estação.

Para esta construção, foi discutido o valor do registro como linguagem e como nossos valores podem direcionar nosso olhar em uma representação. Com este objetivo, de forma lúdica e quase informal, esta ferramenta procura resgatar e liberar padrões espaciais e temporais a partir da experiência pessoal e intransferível de cada perceptor. Os espaços da própria escola, visitados diariamente pelos alunos, pretendeu-se que sejam vistos com outros olhos. No exemplo ilustrado, a passarela e o playground foram desconstruídos para atender a valores diferentes. Alguns alunos estudaram e criaram perfis de artistas, como Kandinsky, ou perfil de crianças.

Talvez uma das qualidades mais importantes do arquiteto seja aprender a se colocar no lugar daqueles a quem sua obra será direcionada, ou melhor, se colocar ao lado e projetar com eles. O arquiteto não projeta para si mesmo, ou para seus colegas afins. Ele projeta para uma comunidade de não arquitetos e precisa adquirir a sabedoria de projetar com seus “personagens”, assemelhando-se à vivência adquirida por um escritor. Usar as peculiaridades do oficio de arquiteto para ajudar a aflorar, tornar legível, dar voz àqueles a quem o projeto se destina.

Terceiro experimento: espacializar

Este estudo foi desenvolvido como um levantamento histórico e cultural da cidade de São Lourenço. Pela herança intelectual do século 19, passado e futuro eram entendidos como uma cadeia de eventos normalmente representados em uma linha do tempo. Porém teorias recentes apontam a compressão do tempo em tempo real, desvinculando-o do espaço. Como consequência, o espaço passou a ter uma predominância sobre o tempo, com uma justaposição do simultâneo, do próximo com o distante. Esta nova condição metaforiza o espaço tornando a diversidade palpável. “as partes desvilculam-se da flecha do tempo, possuem temporalidades próprias, constituem territorialidades específicas. Encontram-se, no entanto, no imersas num contexto que lhes é comum: o mundo” (24).

Deste modo, procurou-se ilustrar uma forma alternativa de representar um levantamento histórico usando a imagem para a espacialização de atributos temporais. Foram mapeados os atores e eventos mais relevantes no decorrer da formação da cidade, procurando também destacar o principal valor associados a eles, e, em alguns casos, os valores conflitantes. Percebe-se que o número de atores tendem a aumentar conforme a cidade começa a crescer. O campo referenciado inicialmente é a Serra da Mantiqueira associada às águas hidrominerais, apoiando-se no diagnóstico proferido pelo Companhia de Desenvolvimento de Minas Gerais – Codemge (25) que constatou que estas águas se formaram há mais de 30 mil anos. A partir destes dados foi proposto um palimpsesto histórico cultural onde camadas do tempo se sobrepõem a um espaço ressignificado por diferentes olhares de atores policênicos.

Principais atores da formação da cidade de São Lourenço
Elaborado pelas autoras

Palimpsesto Histórico Cultural da cidade de São Lourenço
Elaborado pelas autoras

Quarto experimento: domesticar

Nesta amostragem foi avaliada a visão da cidade de pelos estudantes, de idade entre doze e treze anos, de três diferentes escolas de representatividades socioeconômicas distintas: o colégio Laser Solar dos Lagos, escola bilíngue particular que atende crianças pertencentes à classe A e B, a Escola Estadual Professor Antônio Magalhães Alves – Polivalente, que atendem crianças pertencentes à classe C, e a Escola Municipal Dr. Emilio Abdon Povoa que atendem crianças pertencentes à classe D.

Foi desenvolvida uma cartilha onde o aluno, após preencher alguns dados pessoais (nome, idade, endereço, tempo em que reside na cidade), responde a cinco questões de múltipla escolha onde se repete a mesma pergunta: “Para você, qual espaço melhor representa a cidade? Marque com um x uma das alternativas ou sugira abaixo outra opção”.

a. Primeira questão em linguagem textual: a relação dos espaços foi gerada a partir de etapa anterior.

b. Segunda questão através de mapa: foto aérea do Google Earth com marcadores nos espaços da relação textual.

c. Terceira questão através de fotos: sete fotos, um croqui e uma imagem tratada através da plataforma Deep Dream Generator do Google (26) com o Deep Style.

d. Quarta questão através de croquis cedidos por uma arquiteta local que faz pinturas em cerâmicas dos pontos turísticos da cidade: sete croquis, uma foto e uma imagem Deep Style.

e. Quinta questão através do Deep Dream Generator: sete imagens Deep Style, uma foto e um croqui.

f. Foi pedido que a criança desenhasse em no máximo quinze minutos um croqui livre do espaço que considera o símbolo da cidade de São Lourenço.

g. Foi pedido que a criança falasse um pouco sobre o motivo de suas escolhas, suas dúvidas, se e porquê gostou de participar.

Exemplo de questão de múltipla escolha por imagens
Elaborado pelas autoras

 

Este artifício pretendeu verificar se há preferência ou aversão a certas técnicas de representação (27). Apesar dos dados coletados terem sido em menor número (28), verificamos que apenas dois alunos do Solar e um do Polivalente mantiveram suas respostas e leram bem todas as imagens. Os comentários gerais dos alunos demostraram satisfação em participar e somente dois questionaram o porquê de se fazer a mesma pergunta várias vezes. O procedimento parece ter mudado a compreensão das crianças sobre o objetivo do enunciado, que permanecia sempre o mesmo.

Os dados em que o aluno respondeu à pergunta sem aversão à técnica, lendo bem a imagem de forma coerente à escolha feita na questão textual, para as três escolas separadamente e de acordo com as técnicas de representação usadas obtivemos:

Google Earth: Solar 58%, Polivalente 56% e Dr. Emílio 33%.
Deep Dream: Solar 71%, Polivalente 61% e Dr. Emílio 52%.
Foto: Solar 92%, Polivalente 83% e Dr. Emílio 71%.
Croqui: Solar 29%, Polivalente 33% e Dr. Emílio 48%.

Para as técnicas do Google Earth, Deep Dream e Foto, os alunos leram melhor à medida que o nível sócio econômico se eleva. Já para a técnica do croqui, os alunos leram melhor à medida que o nível sócio econômico diminui. Este resultado leva a crer que, para este experimento, as crianças respondem de forma diferenciada para as técnicas de representação espacial e que o uso destas técnicas interferiu na percepção do espaço. Os resultados parecem também apontar que há uma crescente domesticação do olhar à medida que o padrão escolar se eleva e que representações mais icônicas, como os croquis, são mais aceitos pelas crianças de baixa escolaridade.

Arriscar para projetar...

Pier Lévy ressaltou que “a situação técnica inclina, pesa, pode mesmo interditar. Mas não dita” (29). Mas parece forçoso admitir “que o novo observador, ligado umbilicalmente ao computador, nos dispositivos de realidade virtual, e com o corpo literalmente coberto de próteses”, assemelhando-se à cultura protética assinalada por Bosi (30), “encarna até as últimas consequências esse novo sujeito alinhado às máquinas, colocado a operar como uma de suas partes e cujas atividades dependem de processos automáticos de codificação e regulamentação” (31).

Seria salutar se todos pudessem tomar uma postura crítica diante de qualquer modo de representação espacial... mas, sabemos que não é assim. Este papel cabe em especial aos professores de Arquitetura e Urbanismo. Não na posição de educadores, como detentores de um saber que cada vez se mostra mais volátil. Mas como instigadores dos novos profissionais críticos e criativos que este novo mundo parece exigir.

notas

1
YAÏ, Olabiyi Babalola. Odo Layé – Eloge de la vie-fleuve. Perspectives africainessur le patrimoineculturel. 14th ICOMOS General Assembly and International Symposium: ‘Place, memory, meaning: preserving intangible values in monuments and sites’. Victoria Falls, Zimbabwe, 2003 <http://openarchive.icomos.org/467/>.

2
IMAI, César. O processo projetual e a percepção dos usuários. Ambiente Construído, v. 9, n. 2, 2009, p. 107 <https://seer.ufrgs.br/ambienteconstruido/article/view/7410>.

3
FUAO, Fernando Freitas. A representação de Matias. Arquitexto, v. 4, Porto Alegre, 2005, p. 81.

4
CRARY, Jonathan. Thecniques of the Observer: on vision and modernity in the nineteenth century. London, October Books, 1990.

5
FLORIÊNSKI, Pável. A perspectiva inversa. São Paulo, Editora 34, 2012.

6
PANOFSKY, Erwin. La perspectiva como forma simbólica. Barcelona, Fabula, 2003.

7
MACHADO, Arlindo. A emergência do observador. Galáxia, São Paulo, n. 3, 2002. p. 233.

8
ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo, Martins Fontes, 2001.

9
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo, Edições Loyola, 2006.

10
BRANDÃO, Carlos A. Leite. Arquitetura, Humanismo e República: A atualidade do De re aedificatoria. Belo Horizonte, Editora UFMG, 2016, p. 126.

11
Flávio Kothe situa a figura e a obra De architectura de Vitrúvio como fundamentais para a formatação da arquitetura neoclassicista renascentista e para que a Igreja Católica da época construísse seus templos alinhados com os novos valores emergentes.

12
Leonardo Da Vinci, Codex Atlanticus, fol. 345 recto. Tradução das autoras.

13
PANOFSKY, Erwin. Idem, ibidem, p. 49.

14
FUAO, Fernando Freitas. O sentido do espaço. Em que sentido, em que sentido? Arquitexto, Porto Alegre, n. 3-4, 2003, p. 17.

15
FUAO, Fernando Freitas. O sentido do espaço. Em que sentido, em que sentido? (op. cit.), p. 17.

16
FUAO, Fernando Freitas. A máquina de fragmentos, a construção da arquitetura através dos primeiros instrumentos óticos: A domesticação da visão. Fernando Fuão ensaios e livros, out. 2012 <https://fernandofuao.blogspot.com>.

17
FUAO, Fernando Freitas. A representação de Matias (op. cit.), p. 83.

18
PALLASMAA, Juhani. Os olhos da pele. Porto Alegre, Bookman, 2011, p. 16.

19
FUAO, Fernando Freitas. O sentido do espaço. Em que sentido, em que sentido? (op. cit.), p. 18.

20
ROCHA, Isabel Amalia Medero. O programa e o projeto na era digital: o ensino de projeto de arquitetura em ambientes virtuais interativos. Tese de Doutorado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2009, p. 157.

21
FLUSSER, Vilém. O Mundo codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo, Cosac & Naify, 2007, p. 28.

22
LÉVY, Pier. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. São Paulo, Editora 34, 1995.

23
Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa – CEP da UFMG e obteve aprovação em 06/05/2019 com o parecer número 3.305.721. Tem por objetivo eleger o espaço símbolo da cidade de São Lourenço através de parceria entre a Prefeitura local e o Programa de Pós-graduação em Ambiente Construído e Patrimônio Sustentável da Universidade Federal de Minas Gerais, onde suprimido para preservar identidade do autor desenvolve tese de doutorado sob orientação da Professora Dra suprimido para preservar identidade do autor.

24
ORTIZ, Renato. Universalismo e diversidade. São Paulo, Boitempo, 2015, p. 81.

25
Codemge. SIGA – Circuito Das Águas. Belo Horizonte, Codemge, 2018.

26
Plataforma da Google que transforma fotos usando algoritmos de Artificial Intelligence – AI. Foi usado o Deep Style mesclando uma imagem de água com as fotos anteriores. Esta escolha foi feita pela forte referência apontada nas etapas anteriores quanto à representabilidade e significância das fontes hidrominerais que, historicamente e segundo os entrevistados, deram origem à cidade.

27
Para não prejudicar ou direcionar a escolha do espaço pela criança, estas perguntas por imagens terão peso menor na eleição final do espaço símbolo da cidade de São Lourenço.

28
Apesar do convite à participação tenha abrangido mais de 200 alunos, somente 83 alunos participaram da pesquisa. O Termo de Consentimento Livre e Esclarecido – TCLE enviado aos responsáveis, gerou desconfiança quanto à declaração dos possíveis riscos exigidos pelo CEP (leves riscos emocionais), além da complexidade da pesquisa sugerida pela burocracia dos TCLEs e Termo de Assentimento Livre e Esclarecido – Tale para menores.

29
LÉVY, Pier. As tecnologias da inteligência: o futuro do pensamento na era da informática. São Paulo, Editora 34, 1995, p. 186.

30
BOSI, Alfredo. Cultura como tradição. In FUNARTE. Tradição e contradição na cultura brasileira. Rio de Janeiro, Jorge Zahar/Funarte, 1987.

31
MACHADO, Arlindo. Op. cit., p. 234.

sobre as autoras

Michela Perígolo Rezende é arquiteta e urbanista (1998), mestre em Patrimônio e Sustentabilidade (2009) e doutoranda pela UFMG. Professora do curso de Arquitetura e Urbanismo do Centro Universitário Izabela Hendrix (2012-2018), é membro do Icomos Brasil e do Movimento DeDiCo.

Renata Abrantes Baracho é graduada em Arquitetura e Urbanismo (UFMG, 1990) e em Ciência da Computação (PUC Minas, 1989). Mestre em Ciência da Computação (UFMG, 1994) e doutora em Ciência da Informação (UFMG/Pennsylvania State University, 2007), é professora associada da UFMG e foi presidente da Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Ciência da Informação Ancib (2014–2016).

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