O habitar
“Todos os dias a Avó regava a casa como se faz a uma planta. Tudo requer ser aguado, dizia ela. A casa, a estrada, a árvore. E até o rio deve ser regado”.
Mia Couto (1)
Antes de falecer, a arquiteta inglesa Alison Smithson nos deixou um recado sobre as coisas simples da vida que atravessam os interesses da arquitetura, mas que partem de uma sensibilidade incomum ao discurso e à prática atual. Em Small pleasures of life, de 1993, Smithson nos apresenta, através de pequenos desenhos seguidos por algumas frases (2), uma série de ações cotidianas relacionadas ao uso da casa. Essas ações representadas pelos desenhos demonstram, de certa maneira, sua preocupação em valorizar os pequenos atos e as pequenas coisas do dia a dia que tornam a nossa vida mais agradável. Em outras palavras, os desenhos representam os pequenos prazeres da vida contidos no ato de habitar a casa. Portanto, ao se observar o desenho-diagrama, somos induzidos a uma espécie de apagamento da arquitetura enquanto protagonista do espaço. Se pensarmos numa relação entre figura e fundo, partindo desse diagrama, certamente a arquitetura faria o papel de fundo, já que o papel de figura estaria reservado aos acontecimentos, e desde essa perspectiva se reforça uma ideia de espontaneidade da vida doméstica que está intrínseca como um dos objetivos da arquitetura enquanto disciplina que programa o espaço do habitar.
Esses pequenos prazeres cotidianos (“embriões de vida”) estão relacionados à arquitetura através de acontecimentos banais e só podem ser observados através de um entendimento das sutilezas incomensuráveis que envolvem nossa área de atuação enquanto arquitetos e urbanistas, e nesse sentido Alison Smithson foi muito precisa em seu diagrama. Sim, a arquitetura surge para que esses acontecimentos possam ocorrer espontaneamente e, portanto, ela não é o próprio acontecimento. Ao mesmo tempo, pode-se dizer que esses prazeres se relacionam com a arquitetura por meio do bem-estar e até mesmo do acolhimento proporcionado, em alguma medida também por ela, ao próprio indivíduo que habita e utiliza a casa e seus objetos (coisas). Contrariamente, podemos pensar que essa ligação imediata com os objetos (no sentido materialista do termo) não se dá simplesmente através da abundância, do consumo de mais coisas, ou mesmo através da opulência das coisas da casa e sua consequente substituição, mas através de uma simplicidade e espontaneidade que é complexa justamente por não ser determinável e que, na verdade, nada mais é que o próprio ato de habitar a casa na sua mais plena imanência.
“Do que se passa por trás das pesadas portas dos apartamentos só se percebem no mais das vezes os ecos perdidos, os fragmentos, os esboços, os contornos, os incidentes ou acidentes que se desenrolam nas chamadas “partes comuns”, esses leves ruídos de feltro que os gastos tapetes de lã vermelha abafam, esses embriões de vida comunitária que vão sempre se deter nos patamares” (3).
Para Heidegger, os termos “habitar”, “construir” ou simplesmente “coisa”, tão comuns no nosso cotidiano arquitetônico, tomam um sentido muito mais lato do que o empregado no senso comum, deflagrando assim uma série de desencadeamentos no modo de pensar a casa que desfazem em certa medida sua noção de simples máquina de habitar. Partindo dessa ampliação de sentido colocada pelo filósofo, fica evidente também o seu inverso, ou seja, como esses termos são utilizados de forma restrita e limitada em nosso discurso dentro da profissão de arquiteto e urbanista. Isso, evidentemente, acaba, por consequência, se refletindo na maneira como entendemos e projetamos o próprio espaço que é construído hoje através da arquitetura.
Redução do sentido ético da arquitetura
Pensar em certa redução de sentido da arquitetura através da linguagem pode ser uma maneira para tentar entender desde outra perspectiva o acontece quando a prática arquitetônica se atomiza, se desfaz em fragmentos ou se aproxima de uma prática demasiadamente relacionada ao hiperconsumo. Assim, ao buscarmos relações entre a maneira como pensamos e a forma como agimos na nossa profissão, estamos na verdade pensando a partir do conceito de ética. E aqui cabe ressaltar a diferenciação entre a ética e a moral, assim como já colocou em certo momento Antonio Negri (4). A ética, ao que parece, poderia ser mais bem esclarecida ou ainda ser mais aprofundada em nossos debates dentro da profissão, pois ela acaba passando pelo mesmo processo de redução de sentido comentado anteriormente, se restringindo a ser uma espécie de sinônimo da moral associado ao corporativismo de classe que está mais voltado aos interesses regulatórios, regimentais e econômicos da profissão. Portanto, neste texto, quando nos aproximamos do tema da ética, assumimos aqui seu entendimento a partir de Negri, ou seja, da maneira como cada indivíduo constrói a si mesmo como sujeito moral, o que, por outro lado, nos leva a questionar as próprias estruturas prescritivas que determinam o conceito de moral.
Assim, quando pensamos na ética dentro da profissão, podemos perceber que alguns avanços no sentido de se pensar numa ética profissional mais abrangente estão sendo lentamente colocados em pauta. Isso, de certa forma, já pode ser identificado através dos esforços de inúmeros profissionais que se dedicaram para a criação de um conselho independente para a profissão, o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil – CAU BR, fundado em 2011. Através desse órgão, um código de ética próprio – aprovado em 2013 (5), passou a ser desenvolvido e aperfeiçoado, pois, como sabemos, essas questões exigem uma atualização constante que sincronize nossa conduta pública aos novos modos de vida e às novas tecnologias que acabam impondo novas demandas sobre a profissão. Mas essa reflexão sobre a ética na profissão não deve partir das mesmas estruturas prescritas que determinam um conjunto de regras a serem obedecidas, e, sim, da formação de uma consciência coletiva e humana. Portanto, pensar a partir da ética pode nos levar a ultrapassar a ideia de um simples conjunto de regras ou de condutas padronizadas que fixam um modo de agir na profissão. Assim, irá depender sempre do sujeito e da consciência formada e adquirida por ele, para que se consiga determinar uma condição ética que poderá servir realmente como um norteador de uma conduta que possa ser colocada em prática, sendo essa uma construção em constante movimento.
Na publicação de Ética em Arquitetura e Urbanismo – Comentários ao Código de Ética e Disciplina do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil (2018), de autoria de João Honório de Mello Filho, e disponibilizada pelo CAU BR a todos os profissionais do país, percebe-se o esforço da entidade de classe em aportar aos profissionais um aprofundamento mínimo sobre o tema da ética na profissão. Mas, como o próprio autor destaca, esse tema ainda não despertou grande interesse em nossos profissionais. Segundo Mello Filho, ainda que se realizem seminários regionais sobre os temas da ética e da moral na profissão, se percebe, todavia, uma falta de textos pertinentes relativos aos domínios práticos ou mesmo teóricos que envolvem a profissão desde essa temática.
Para reforçar essa importância, Mello Filho apresenta nessa publicação um apanhado teórico que busca ressaltar uma distinção entre os conceitos de ética e moral para, a partir daí, colocar os termos que determinam a base de um entendimento para uma possível ética profissional, ou uma espécie de estatuto ético que decorra num compromisso público pactuado entre seus representantes. Desse modo, o texto busca reforçar que a ética profissional “não se limita às condutas apenas voltadas para as atividades, atribuições e campos de atuação estritamente profissionais”, demandando também implicações com a coletividade pública.
“O processo de produção de um código de ética deve ser por si só um exercício de ética. Caso contrário, não passa de um mero código moral defensivo de uma corporação. A formulação de um código de ética precisa, pois, envolver intencionalmente todos os membros do grupo social que ele abrangerá e representará. Isso exige um sistema ou processo de elaboração de baixo para cima, do diverso ao unitário, construindo consensos progressivos, de tal modo que o resultado final seja reconhecido como representativo de todas as disposições morais e éticas do grupo” (6).
Como o autor lembra, os códigos profissionais estabelecem que o profissional deva trabalhar em favor dos interesses do cliente, mas sem deixar de lado os interesses da coletividade pública. No entanto, essa premissa pode entrar em contradição quando se valora demasiadamente a ética no sentido estrito da “ética consumista”, ou seja, de uma exagerada valorização das demandas dos clientes ou do mercado em desfavor das preocupações ecológicas ou sustentáveis, por exemplo. O que se vê hoje, salvo algumas exceções, é que uma ética voltada à sustentabilidade só se justifica quando acompanhada de um artifício de venda que valide e justifique seu investimento e sua utilização, ou seja, a preocupação com o desperdício e o esgotamento de recursos entram como parte do contexto econômico, mas normalmente em segundo plano. Diante disso, se estabelecem aqui algumas questões relativas aos princípios éticos fundamentais que também formulam e ampliam a ética no sentido lato visando, ao menos aqui, colocar em pé de igualdade conceitos de sustentabilidade e de preocupações ecológicas com os já valorizados conceitos de economia e mercado pensando num equilíbrio de forças, ou seja:
“Uma presunção razoável é que, mediante os princípios da sustentabilidade – mesmo que diante de incertezas –, os recursos naturais sejam empregados de forma a preservá-los para o tempo que ainda virá. Assim, a obrigação ética é procurar suprir as necessidades presentes sem esgotá-las, de forma a não privar de seu uso as futuras gerações humanas.
A adoção das melhores práticas nesse sentido visa – em médio e longo prazos – a um futuro com melhor qualidade, em uma perspectiva razoável para as gerações vindouras, garantindo-lhes a manutenção dos recursos naturais indispensáveis” (7).
Diante desta incompatibilidade visível entre o discurso e a prática, o presente ensaio se propõe a pensar a seguinte questão: e, se levássemos o conceito de ética às últimas consequências, no que resultaria a prática? É nesse contexto que este ensaio se insere para forjar sua crítica relativa à certa perda de sentido do exercício da profissão vista a partir da ampliação do sentido de ética em arquitetura e urbanismo. Simultaneamente a esse processo de perda ou diminuição de sentido, vivemos uma situação em que se percebe uma tendência recorrente a se fabricar situações que atuem a nosso favor enquanto arquitetos (e urbanistas) em busca de oportunidades de negócios. Algo como a criação de desejos artificiais, não como potência do indivíduo catalisada pelo habitar na sua imanência, e sim relacionado a certo modo de se produzir arquitetura por ela mesma, baseado apenas na própria reprodução do sistema. Esse modo de produzir arquitetura é engendrado, por um lado, pelo consumismo exacerbado da sociedade e, de outro, pela necessidade de o próprio profissional buscar fontes de recursos que mantenham a rentabilidade e o fluxo de trabalho do escritório de arquitetura sempre em movimento.
Ética consumista na era produtivista
É nesse contexto que surge o conceito de produtivismo na arquitetura que corresponde a uma espécie de perversão da produtividade ou, a uma subversão daquilo que se produz por uma necessidade real. No modelo produtivista o valor e o objetivo do trabalho recaem, sobretudo, sob sua representação (seu desenho, sua forma, suas qualidades impressionísticas, sua pretensa originalidade) que consequentemente passa a ser um fim em si mesmo, ou seja, é o valor de troca que passa a ser supervalorizado em detrimento do valor de uso do objeto arquitetônico, acarretando no seu desequilíbrio (8). Nessa lógica, o que acontece, por consequência, é a sujeição da arquitetura à mera condição de produto substituível que move uma cadeia infinita de “re-produção”.
O produtivismo a que me refiro aqui também seria um tipo de produção que responde demasiadamente ao consumo e, de certa maneira, evidencia o lado mais compulsivo da nossa sociedade pós-moderna. Esse mesmo conceito tem como objetivo a produção de bens e produtos (ou ainda os serviços, no caso do arquiteto e urbanista) que, a partir de sua pretensa qualidade, valor de exposição ou performance, possam alimentar uma cadeia produtiva de escala massiva. De certa maneira, pensar nesse conceito levado às últimas consequências seria o mesmo que pensar na mercantilização do mundo, um mundo onde tudo passa a ser regido pelas leis do mercado, desprezando, em muitos casos, todos os valores que não estejam atrelados à lógica do lucro, do espetáculo e do progresso da própria cadeia produtiva. E, nesse mundo, consequentemente, ou somos reprodutores, ou somos consumidores.
Não é de hoje que se estudam as ligações entre a produção de valor e as crises urbanas do Ocidente. David Harvey, em Cidades Rebeldes (9), demonstra a maneira como hoje em dia o capital especulativo manipula e controla a oferta e a demanda por novas casas, tendo como objetivo final obter o maior lucro possível através de financiamentos hipotecários que movem uma cadeia de produção de habitações estimuladas por políticas públicas. Nesse processo, o que acontece, na maioria das vezes, é uma contínua expansão dos fluxos de capital fictício, com o objetivo de “manter intacta a crença que o capital pode ser um ‘autômato que se valoriza por si mesmo’” (10). Como o próprio Harvey lembra, esses processos especulativos que envolvem a construção de casas, apesar de predatórios e perigosos em longo prazo, fomentam no curto prazo o aumento da atividade produtiva (gerando empregos e rendas), elevando os índices da economia e validando esse modelo como forma de desenvolvimento. Entretanto, o que os defensores desse modelo de desenvolvimento desconsideram é que, muitas vezes, o próximo passo nesse ciclo é a (de)formação das chamadas “bolhas financeiras” que podem acarretar no colapso do próprio sistema financeiro.
Ainda assim, ao redor do mundo, e, consequentemente, aqui no Brasil, já é prática recorrente dos governos estimularem o avanço da economia através da construção massiva de moradias explorando a demanda. Nesse sentido, Harvey lembra que esse é um processo que vem se desenvolvendo desde muito tempo, tendo início nos Estados Unidos, mas se espalhando por todas as partes e colocando a condição da casa não mais como uma necessidade imediata da população, mas sim como um gerador de fluxos financeiros que sustentam o sistema de produção de riqueza através da especulação imobiliária.
“Durante as décadas de 1950 e 1960 essas políticas funcionaram, tanto do ponto de vista político quanto macroeconômico, uma vez que sustentaram duas décadas de um desenvolvimento elevado dos Estados Unidos, cujos efeitos se espalharam por todo o mundo. A construção de moradias passou para outro patamar, totalmente em relação com o crescimento econômico. ‘É um padrão que se repete há muito tempo”, escreve Binyamin Applebaum, “os norte-americanos se recuperarem das recessões construindo casas e enchendo-as de coisas’” (11).
Assim, parece que a casa, partindo desse processo, é mero pretexto para se seguir produzindo, ou para alavancar um crescimento econômico que se justifique por ele mesmo. Essa produção pela produção tem reflexo na arquitetura, que acaba sendo o modelo operatório que sustenta, em certa medida, esse sistema financeirizado. Dessa maneira, o que vem acontecendo na profissão passa até certo ponto pelo que chamamos anteriormente de modelo produtivista de se fazer arquitetura.
E, portanto, para que a profissão de arquiteto e urbanista se adapte a esse modelo produtivista e à lógica imposta pelo mercado dos dias de hoje, percebe-se o surgimento de uma nova forma de atuar dentro da profissão que se adapta ao modelo operatório ideal desse modo de produção. Esse novo perfil profissional diz respeito a um indivíduo que passa a desconsiderar ou a deixar em segundo plano a condição do arquiteto como “técnico-humanista” assim como as preocupações ligadas ao contexto ético-social que envolvem a disciplina arquitetura e urbanismo enquanto dispositivo indispensável para a organização espacial da cidade, partindo de um entendimento de sua dimensão pública, mesmo quando se trata de um encargo privado. Esse novo perfil profissional conectado excessivamente às necessidades do mercado passa a condicionar, em muitos casos, suas proposições às estratégias ligadas ao marketing e ao mundo corporativo, como, por exemplo, os modelos de branding e networking aplicados à gestão do escritório e à marca que representa sua arquitetura enquanto produto.
Para esse profissional, que agora passa a pensar e agir também através da lógica do profissional de relações públicas, preocupado demasiadamente com o seu “perfil na rede” em relação à demanda de visibilidade social, o modelo de negócios direciona a tomada de decisões, e são as lógicas incorporadas ao plano de expansão financeira que passam a ditar uma forma de atuar onde já não importa tanto a obra em si, mas sim o seu valor de troca enquanto objeto-produto, ou seu valor de exposição enquanto marca, assim como a condição do seu “eu” tornar-se protagonista na cena arquitetônica vaidosa e exibicionista. Surge então um perfil profissional engajado nas práticas de mercado diretamente aplicadas à arquitetura, ou seja, a administração financeira do negócio acaba determinando a própria arquitetura como ideologia. Esse novo profissional seria uma espécie de “arquiteto-empreendedor” que se desenvolve em consequência dessa cadeia de produção massiva descrita a partir do modelo produtivista, e que o português Pedro Levi Bismarck descreve como reflexo do seguinte processo:
“A consequência mais visível tem sido a dissolução absoluta do vínculo entre condição disciplinar e exercício da profissão, às mãos da morte dessa figura do arquitecto enquanto profissional liberal (esse indivíduo que era à vez artista e homme de lettres, técnico e humanista) e a sua substituição por essa outra figura que é o arquitecto empreendedor (inscrito totalmente nas leis universais e transcendentes do mercado), para quem a arquitectura só pode ser uma prestação de serviços, um exercício puramente privado, onde não cabem certamente desígnios intelectuais sobre o desenho da cidade e do espaço do comum (porque a crise não deixa tempo, porque a encomenda pública quase cessou, porque o aparato legislativo e burocrático é imenso). Neste quadro, a “arquitectura” como disciplina reduz-se ao exercício da “profissão”, isto é, os problemas da arquitectura passam a ser os problemas da profissão. É aquilo que poderíamos chamar a privatização da arquitectura, do seu saber colectivo e da sua dimensão pública, a transformação do arquitecto num mero técnico de operações logísticas, ainda que, pontualmente, dotado de um discurso “poético” (esse, sim, salvífico), que apenas serve para encobrir o desencanto generalizado em que a profissão se encontra, ao mesmo tempo que faz da arquitectura um produto cultural de excepção, onde se confunde visibilidade cultural com visibilidade social” (12).
Não é difícil, portanto, relacionar esse novo modus operandi aos modelos de “re-produção” de arquitetura praticada hoje nos moldes do sistema econômico e ideológico vigente. Para sobreviver no mercado, todos nós somos, de alguma maneira, sujeitados, estimulados a fazer uso de práticas midiáticas e produtivistas sem nem mesmo nos questionarmos. Assim somos atomizados, empurrados coercitivamente pela própria liberdade de fazermos aquilo que o sistema nos induz sem nos obrigar, pois necessitamos de um fluxo de trabalho que nos dê sobrevida e garanta ao menos o futuro imediato. É assim que a lógica financeira molda a prática arquitetônica de forma sutil, envolta em uma aura de liberdade e de empreendedorismo que nos impulsiona cada vez mais a criarmos o nosso próprio personagem de arquiteto criativo e bem-sucedido nas redes sociais, moldando e fabricando nossa própria visibilidade. Como coloca Byung-Chul Han em Sociedade do Cansaço (2017), já não temos um sistema que nos obriga a trabalhar através da força, já não há mais a necessidade de uma “sociedade disciplinar” como colocava Foucault, nossa luta agora é contra nós mesmos, competimos contra o nosso próprio eu (somos “empresários de si mesmos”), que cada vez mais deve se superar para avançar e prosperar na sociedade do desempenho e da competição que resulta na autoexploração e nas crises psíquicas do eu (produzindo deprimidos e fracassados).
Modo de reprodução produtivista na arquitetura
Se a produção de casas e infraestruturas urbanas passa pelo processo produtivista de forma mais explícita e massiva, como já demonstrou Harvey, existem dentro da nossa prática profissional formas mais sutis (quase invisíveis) do emprego desse modelo produtivista que também podem ser problematizadas, como tentaremos demonstrar aqui. Até mesmo práticas que poderiam representar o inverso do produtivismo, ou seja, práticas que valorizem os espaços já construídos podem passar pelo mesmo processo, dependendo apenas de como olhamos para o problema. Nesse contexto, pensemos, por exemplo, nos projetos de reformas, tão comuns na prática arquitetônica. Nesses casos, é bastante corriqueiro, dependendo da condição financeira de determinado cliente, propormos uma renovação geral dos ambientes, sugerindo a eliminação de todos os objetos existentes e que acreditamos não ter mais valor de uso ou mesmo estarem ultrapassados ou obsoletos.
Sabemos, de antemão, que as reformas da casa são muitas vezes necessárias e contribuem para um melhoramento do ambiente doméstico. Assim, reformamos a casa também com o intuito de nos sentirmos renovados e melhor acomodados, ou, ainda, para adaptar a casa a uma nova necessidade de uso. Já que é fato que a própria padronização dos projetos (e principalmente das práticas projetuais) que se refletem na arquitetura construída acabam não dando conta de responder às reais necessidades das pessoas e seus usos específicos. Portanto, ainda temos que dar respostas àqueles espaços construídos como reflexo de processos genéricos que buscavam responder ao “cidadão-tipo” que somente existem nas teorias prescritas de uma arquitetura anacrônica. Mas também reformamos, simplesmente, porque somos, enquanto consumidores, tentados e estimulados a consumir a todo o momento, e aí entra o papel do arquiteto no processo de produção e substituição sem fim que também envolve a arquitetura enquanto prática sistêmica.
Reformar a casa alterando sua estrutura física existente realmente pode ser uma forma de renovar os espaços e consequentemente sentirmos essa transformação que o próprio cotidiano nos impõe, mas, definitivamente, não é a única. Em um momento em que tanto se discute questões como aquecimento global, sustentabilidade ou mesmo crise econômica (austeridade), parece oportuno pensarmos em outras possibilidades de renovar os nossos ambientes além das práticas consumistas que também envolvem o exercício do projeto através da renovação material. Portanto, partiremos aqui de alguns parâmetros de análise sobre a prática de projetos que estão diretamente ligadas ao mercado da construção, e que muitas vezes são vistas como reduto acrítico com respeito às práticas mais reflexivas no sentido lato, já que estas demandam um tempo mais prolongado no processo de desenvolvimento de uma ideia, mas poucas vezes dispensado na prática preocupada em dar respostas rápidas e afirmativas.
Construir, habitar e pensar a casa
Em Construir, Habitar, Pensar (1954), Heidegger nos explica através da etimologia, desde o idioma alemão, que as palavras construir e habitar estão conectadas em sua origem (a própria palavra usada no antigo alto-alemão para dizer construir, “buan”, significa habitar) e ambas nos remetem ao verbo ser/estar (bin), o que, de certa forma, recupera uma dimensão ampla do significado de um estar no mundo, ou seja, somos e estamos no momento em que habitamos o mundo. A partir dessas colocações de Heidegger, podemos então nos aproximar de um entendimento mais amplo do que seria também o construir, mas não somente no sentido de “produção” como estamos acostumados a empregar a palavra na arquitetura (Heidegger mesmo comenta que o construir no habitar caiu no esquecimento), mas também através de um construir (bauen) a partir do próprio habitar (buan), e dessa forma nos remetendo ao sentido de proteger e de cuidar do crescimento para dar tempo aos seus frutos.
“A maneira como tu és e eu sou, o modo segundo o qual somos homens sobre essa terra é o Buan, o habitar. Ser homem diz: ser como um mortal sobre essa terra. Diz: habitar. A antiga palavra bauen (construir) diz que o homem é à medida que habita. A palavra bauen (construir), porém, significa ao mesmo tempo: proteger e cultivar, a saber, cultivar o campo, cultivar a vinha. Construir significa cuidar do crescimento que, por si mesmo, dá tempo aos seus frutos. No sentido de proteger e cultivar, construir não é o mesmo que produzir. A construção de navios, a construção de um templo produzem, ao contrário, de certo modo a sua obra. Em oposição ao cultivo, construir diz edificar. Ambos os modos de construir – construir como cultivar, em latim, colere, cultura, e construir como edificar construções, aedificare – estão contidos no sentido próprio de bauen, isto é, no habitar. No sentido de habitar, ou seja, no sentido de ser e estar sobre a terra, construir permanece, para a experiência cotidiana do homem, aquilo que desde sempre é, como a linguagem diz de forma tão bela, “habitual”. Isso esclarece porque acontece um construir por detrás dos múltiplos modos de habitar, por detrás das atividades de cultivo e edificação. Essas atividades acabam apropriando-se com exclusividade do termo bauen (construir) e com isso da própria coisa nele designada. O sentido próprio de construir, a saber, o habitar, cai no esquecimento” (13).
Nesse texto apresentado por Heidegger, ele ressalta que esse esquecimento dos significados essenciais da linguagem, como no caso do bauen (construir), se dá em favor de uma facilidade de utilização do significado que está num primeiro plano, ou num emprego direto da palavra a uma necessidade cotidiana, deixando de lado essas aproximações da linguagem que ampliam seu sentido e que, consequentemente, que vão caindo no esquecimento. E é exatamente isso que parece acontecer com o nosso uso cotidiano da linguagem também na arquitetura. Entretanto, ele salienta que:
“Enquanto não pensarmos que todo construir é em si mesmo um habitar, não poderemos nem uma só vez questionar de maneira suficiente e muito menos decidir de modo apropriado o que o construir de construções é em seu vigor de essência. Não habitamos porque construímos. Ao contrário. Construímos e chegamos a construir à medida que habitamos, ou seja, à medida que somos como aqueles que habitam” (14).
Para Heidegger, se quisermos encontrar esse vigor essencial do habitar, devemos pensar também na antiga palavra bauen no antigo saxão “wuon” e no gótico “wunian” que nos remetem consequentemente ao “permanecer” e ao “de-morar-se”.
“O gótico “wunian” diz, porém, com clareza ainda maior, como se dá a experiência desse permanecer. Wunian diz: ser e estar apaziguado, ser e permanecer em paz. A palavra Friede (paz) significa o livre, Freie, Frye, e fry diz: preservado do dano e da ameaça, preservado de..., ou seja, resguardado. Libertar-se significa propriamente resguardar. Resguardar não é simplesmente não fazer nada com aquilo que se resguarda. Resguardar é, em sentido próprio, algo positivo e acontece quando deixamos alguma coisa entregue de antemão ao seu vigor de essência, quando devolvemos, de maneira própria, alguma coisa ao abrigo de sua essência, seguindo a correspondência com a palavra libertar (freien): libertar para a paz de um abrigo. Habitar, ser trazido à paz de um abrigo, diz: permanecer pacificado na liberdade de um pertencimento, resguardar cada coisa em sua essência. O traço fundamental do habitar é esse resguardo. O resguardo perpassa o habitar em toda a sua amplitude. Mostra-se tão logo nos dispomos a pensar que ser homem consiste em habitar e, isso, no sentido de um de-morar-se dos mortais sobre essa terra” (15).
Pretende-se, aqui, salientar essa ligação apresentada por Heidegger de modo que se tenha em mente as ideias de que o “habitar” se relaciona ao “de-morar-se” e ao “resguardo” junto às coisas para refletir a partir dos termos colocados de início sobre a questão da renovação e da substituição nos processos de reformas da casa que envolvem a prática de arquitetura. Assim, podemos pensar, de certa maneira, a partir das colocações de Heidegger, que esse “resguardo” não é levado em conta em muitas das situações em que se aplicam os projetos de reforma, ou seja, não se dá tempo para um “de-morar-se” junto às coisas (a obsolescência acelerada dos objetos nos condena a não pensarmos nessa aproximação), uma vez que as coisas já não estão mais ligadas ao indivíduo que habita. As coisas da casa ou a própria casa, nesse sentido, são meros objetos de consumo (sujeitos à substituição infinita). Não há relação de pertencimento ou mesmo uma aproximação materialista entre o homem e as coisas que habitam a casa, a relação é apenas de caráter utilitário e seu uso é de curto prazo, ou seja, não há um crescimento de uma relação entre as partes (o indivíduo e as coisas) que ative um “vigor de essência” das coisas enquanto coisas que nos pertencem, como faz, por exemplo, o colecionador, mas não por sua compulsão, e sim por sua atenção e cuidado com as coisas. Para que exista esse “crescimento”, acredita-se aqui que deva existir uma aproximação e um cuidado que exige certo tempo e certa dedicação (“de-morar-se”) com respeito à coisa que cresce em relação ao sujeito e passa ganhar importância a partir dessa relação de uso e cuidado.
A demora junto às coisas é, no entanto, a mencionada simplicidade a quatro. “Essa simplicidade constitui o resguardo mas não como uma quinta coisa acrescentada. Ao contrário. A demora junto às coisas é o único modo em que a demora própria da simplicidade dos quatro alcança na quadratura uma plenitude consistente. No habitar, a quadratura se resguarda à medida que leva para as coisas o seu próprio vigor de essência. As coisas elas mesmas, porém, abrigam a quadratura apenas quando deixadas como coisas em seu vigor. Como isso acontece? Quando os mortais protegem e cuidam das coisas em seu crescimento. Quando edificam de maneira própria coisas que não crescem. Cultivar e edificar significam, em sentido estrito, construir. Habitar é construir desde que se preserve nas coisas a quadratura” (16).
Como o objetivo aqui é, principalmente, o de pensar em como podemos reinterpretar (para aproveitar) as coisas que temos, é de extrema importância entender essa aproximação dos significados apresentada por Heidegger para aportar uma “nova” sensibilidade ao materialismo do discurso que envolve o conceito de reaproveitamento. O discurso da sustentabilidade também sofre com o processo de perda de sentido lato de seu significado, já que normalmente ele está atrelado à pratica da reciclagem (que se dá através das sobras produzidas pelo próprio consumo), encerrando assim o tema no campo da produção, da tecnologia ou da manufatura, mas nem sempre sendo relacionado ao uso, não questionando assim suas causas e simplesmente agindo sob seu efeito.
Para estar aberto a essa sensibilidade em relação aos objetos (e que poderíamos denominar aqui de uma espécie de “materialismo sensível”) parece oportuno também lembrar outra palavra que faz parte do vocabulário arquitetônico (talvez até com uma conotação de menor importância) e que Heidegger também tratou de nos dar algumas lições. Em Que é uma coisa? (1962), Heidegger discute basicamente, acerca do sentido de verdade da palavra coisa. Nesse ensaio, ele nos explica que podemos compreender a palavra “coisa” “num sentido restrito, num sentido lato e num sentido ainda mais lato”. A coisa no sentido restrito significa algo que está disponível, visível ou que está ao alcance da mão. Já no sentido lato, pode significar qualquer assunto, qualquer coisa que aconteça como acontecimentos, eventos. Num sentido ainda mais lato, Heidegger cita Kant que fala da “coisa em si” para distingui-la da “coisa para nós”.
“Uma coisa em si é aquela que não é acessível para nós homens, através da experiência, tal como uma pedra, uma planta ou um animal. Qualquer coisa para nós é também, enquanto coisa, uma coisa em si, quer dizer, torna-se conhecida de modo absoluto no conhecimento divino absoluto; mas nem toda a coisa em si é uma coisa para nós. Uma coisa em si é, por exemplo, Deus, tomada a palavra, tal como Kant a entende, no sentido da teologia cristã. Quando Kant chama a Deus uma coisa, não quer dizer que Deus seja uma gigantesca formação gaseiforme, que oculta algures a sua essência. Coisa significa aqui, apenas, segundo um rigoroso uso da linguagem, o mesmo que “qualquer coisa”, aquilo que é o contrário do nada” (17).
Com isso, Heidegger nos demonstra que a questão da “coisa” oscila no seu significado, pois a ela pode ser atribuído um sentido restrito, lato ou o mais lato de todos (Kant), e, portanto, sempre vai permanecer arbitrário o limite pelo qual fixamos o significado da palavra “coisa”.
“Ao colocarmos a questão “que é uma coisa?”, deter-nos-emos no primeiro sentido; e, na verdade, não somente para nos mantermos próximos do uso da língua, mas porque a questão acerca da coisa, mesmo quando é entendida no sentido lato, ou no mais lato de todos, aponta, a maior parte das vezes, para este sentido restrito e parte, em primeiro lugar, dele. Ao perguntar “que é uma coisa?” visamos agora as coisas que estão a nossa volta. Consideramos o que está mais próximo da vista, o que se pode agarrar com a mão. Na medida em que prestamos atenção a isto, vê-se claramente que aprendemos qualquer coisa com o riso da criada. Ela queria dizer-nos que deveríamos, antes de mais, prestar atenção ao que se passa a nossa volta” (18).
E, aqui, talvez esteja uma boa lição para o discurso da arquitetura, isso porque, para Heidegger, “aprender com o riso da criada” é apenas uma metáfora que remete a essência do “que é uma coisa?” e que vem de uma história que tem origem no começo da filosofia ocidental com os gregos, no século 7 a.C., contada por Platão em seu diálogo Teeteto. Nesse diálogo, Platão conta que Tales teria caído num poço quando se ocupava com a esfera celeste e olhava para cima. Ao cair no poço, uma criada de Tales teria começado a rir da situação, pois entendia que Tales queria, com tanta paixão, ser sabedor das coisas do céu, que lhe permaneciam escondidas as coisas que se encontravam diante de seu nariz e sob seus pés (19). Portanto, Heidegger diz que a questão do “que é uma coisa?” deve determinar-se como uma daquelas de que as criadas se riem, “uma verdadeira criada deve ter sempre qualquer coisa de que se possa rir”. O que pode nos levar a pensar que estarmos mais atentos ao que está a nossa volta (ou sob nossos pés) pode ser uma boa maneira de evitar uma queda no poço que representa, em certa medida, a própria perda de sentido da prática da arquitetura.
Sensibilidade materialista
O arquiteto holandês Herman Hertzberger, em seu livro Lições de Arquitetura, propõe um estudo da arquitetura a partir da reciprocidade da forma e do uso e defende que a forma determina o uso e a experiência, mas, ao mesmo tempo, é determinada por eles já que a forma pode ser interpretável e consequentemente influenciada. Nesse estudo, um dos focos de atenção de Hertzberger está na ideia de que os projetos de arquitetura, normalmente, são baseados em interpretações de padrões coletivos que buscam abranger o maior número de pessoas e, nesse sentido, ele busca amparo para suas argumentações numa relação entre a língua e a fala.
“A relação entre uma interpretação coletiva e uma individual tal como a que existe entre forma e uso pode ser comparada à relação entre língua e fala. A língua é um instrumento coletivo, a propriedade comum de um grupo de pessoas capaz de usar esse instrumento para moldar seus pensamentos e comunica-los uns aos outros, contanto que sigam as convenções da gramática e da sintaxe, e contudo que usem palavras reconhecíveis, palavras que signifiquem alguma coisa para o ouvinte. O admirável é que cada indivíduo pode ser entendido por outro mesmo quando expressa sentimentos e preocupações muito pessoais de uma maneira altamente pessoal. Além disso, a fala não é apenas uma interpretação da língua, mas a língua, por sua vez, também é influenciada pelo que se fala, e, no devido tempo, a língua muda sob esta influência constante. Pode-se dizer então que a língua não apenas determina a fala, mas a própria língua é ao mesmo tempo determinada pela fala. A língua e a fala relacionam-se dialeticamente” (20).
Como se sabe, na época em que Hertzberger escreveu esse livro, o autor vinha sendo bastante influenciado pelo pensamento estruturalista dos anos de 1960, principalmente o pensamento de Claude Lévi-Strauss. Segundo Hertzberger, o estruturalismo denotava, inicialmente, um modo de pensar que derivava da antropologia cultural e que se tornou proeminente em Paris durante esse período exercendo forte influência sobre as ciências sociais. O termo estruturalismo, segundo ele, trata, sobretudo, das relações entre os padrões coletivos e as interpretações individuais, fato que o inspirou a pensar na arquitetura também a partir desses mesmos parâmetros.
“Grosso modo, a “estrutura” equivale ao coletivo, ao geral, ao (mais) objetivo, e permite a interpretação quanto ao que se espera e ao que se exige dela numa situação específica. Poderíamos também falar de estrutura com relação a um edifício ou a um plano urbano: uma forma ampla que, mudando pouco ou nada, é adequada para acomodar situações diferentes porque oferece continuamente novas oportunidades para novos usos” (21).
No livro de Hertzberger, ele nos apresenta uma série de obras de arquitetura em que a função original para qual foram construídas tais obras passou a ser um motivo subjacente, já que o uso, com o passar dos tempos, foi demonstrando outras possibilidades à então forma originária, o que consequentemente acabou ampliando o significado destas obras. Naturalmente, como arquiteto que é, Hertzberger está interessado em desvendar dispositivos projetuais que partam dessa relação entre a forma e o uso com o objetivo de estudar possibilidades de alcançar uma maior “polivalência” da arquitetura por meio de um estudo com bases estruturalistas. Nesse empenho de demonstrar a capacidade de projetos que possuam uma maior ambiguidade das formas, o autor busca separar sua ideia de “polivalência” de um conceito bastante em voga hoje em dia e que parece ter caído no gosto de um discurso midiático e também enfraquecido de sentido, a “flexibilidade”. Diz Hertzberger:
“Flexibilidade se tornou a palavra mágica, tinha de ser a panaceia para curar todos os males da arquitetura. Contanto que o projeto dos edifícios fosse neutro, pensava-se, eles poderiam servir a vários usos e poderiam, portanto, pelo menos em teoria, absorver e abrigar a influência de épocas e situações de mudança. Isto seria pelo menos um passo à frente, mas, na verdade, a neutralidade consiste apenas na ausência de identidade, em outras palavras, na falta de traços característicos. O problema da mudança não é tanto uma questão de ter de adaptar e mudar traços característicos, mas de, antes de tudo, possuir estes traços característicos! “Flexibilidade significa – já que não há uma solução única que seja preferível a todas as outras – a negação absoluta de um ponto de vista fixo, definitivo. O plano flexível tem seu ponto de partida na certeza de que a solução correta não existe, já que o problema está num estado permanente de fluxo, i.e., é sempre temporário. A flexibilidade parece inerente à relatividade, mas, na verdade, está ligada apenas à incerteza, à falta de coragem em nos comprometermos e portanto à recusa da responsabilidade inevitavelmente ligada a cada ação que empreendemos. Embora uma formulação flexível adapte-se a cada mudança que surja, não pode ser nunca a melhor e mais adequada solução para nenhum problema; pode fornecer qualquer solução em qualquer momento, mas nunca a melhor solução. A flexibilidade representa, portanto, o conjunto de todas as soluções inadequadas para um problema. Dado isto, um sistema que se mantém flexível por causa da mudança dos objetos que devem ser acomodados dentro dele produziria a mais neutra das soluções para problemas específicos, mas nunca a melhor solução, a mais adequada” (22).
Marcada essa diferenciação que busca afastar sua ideia de “polivalência” da neutralidade inevitável que, segundo ele, está contida no conceito de “flexibilidade”, o autor também critica a especificidade oriunda do funcionalismo que, de acordo com ele, é consequência do excesso de expressão do arquiteto e que também pode limitar as possibilidades de uma maior polivalência na arquitetura. Inevitavelmente, as preocupações de Hertzberger estão centradas no projeto, ou seja, em como os arquitetos devem organizar o pensamento ou o processo metodológico projetual para conseguir maiores possibilidades de ampliação do uso através da interpretação individual dos usuários dos futuros objetos projetados. Nesse sentido, ele comenta sobre a possibilidade de um ajuste no projeto que ofereça o máximo de “incentivos” aos usuários a fim de que estes produzam associações através das formas “inacabadas” e menos determinadas pelo projetista que adota o princípio da reciprocidade de forma e uso como ponto de partida projetual. Com isso, o autor postula que seja dado aos usuários um papel mais importante na configuração de seus ambientes, mas não com o objetivo de estimular uma maior individualidade, e sim como forma de retomar o equilíbrio entre o que o arquiteto deve fazer pelo usuário e o que o arquiteto deve deixar que o usuário faça sozinho.
“Oferecer ‘incentivos’ que despertem associações nos usuários, que, por sua vez, conduzam a ajustamentos específicos adequados a situações específicas, pressupõe – não obstante o deslocamento de ênfase – um projeto mais elaborado, baseado num programa de requisitos mais detalhado e sutil. A razão para criar incentivos é elevar o potencial inerente ao máximo. Em outras palavras: colocar mais em menos, ou tirar menos do que se pode tirar mais. Pode-se dizer que para cada situação aplica-se o seguinte: incentivo + associação = interpretação.
Nesta questão o próprio ‘incentivo’ é uma espécie de constante, que produz uma multiplicidade de interpretações por meio de associações variáveis. E, se substituirmos ‘incentivo’ por ‘competência’ e ‘interpretação’ por ‘desempenho’, estaremos de volta à analogia linguística, já descrita. Assim como a posição do arquiteto diante da estrutura coletiva é interpretativa – i.e., a de usuário -, sua posição diante dos usuários de sua arquitetura é a de tornar seu projeto interpretável por eles. Deve ficar claro para o arquiteto até onde ele pode ir e onde ele não deve fazer imposições: ele deve criar espaço e deixar espaço, nas proporções adequadas e com o equilíbrio adequado” (23).
Mas, como aqui pretendemos tratar de uma forma de reinterpretar aquilo que já está dado, essas ideias relacionadas ao projeto propostas por Hertzberger não podem mais ser aplicadas diretamente, já que suas ideias sugerem que o arquiteto se antecipe através de amplo estudo formal para obter essas condições de polivalência. Entretanto, quando o autor comenta sobre o tema da “forma como instrumento”, ele está na verdade nos dando um caminho para pensarmos, não mais como arquitetos que se antecipam aos futuros acontecimentos, ou que pelo menos pretendem se antecipar, mas, sim, para que pensemos nesse resguardo com as coisas que temos e que aqui buscamos refletir através de Heidegger. A esse respeito, comenta Hertzberger:
“Quanto mais influência pudermos exercer pessoalmente sobre as coisas à nossa volta, mais nos sentiremos emocionalmente envolvidos com elas, mais atenção daremos a elas e mais inclinados estaremos a tratá-las com cuidado e amor.
Só podemos desenvolver afeição pelas coisas com as quais nos identificamos – coisas sobre as quais podemos projetar nossa própria identidade e nas quais podemos investir tanto cuidado e dedicação que elas se tornam parte de nós mesmos, absorvidas pelo nosso próprio mundo pessoal. Todo esse cuidado e dedicação faz com que o objeto pareça precisar de nós, não apenas no sentido de que podemos decidir em grande parte o que acontece a ele, mas também no sentido de que o objeto passa a ter um lugar na nossa vida; esse tipo de relacionamento também pode, evidentemente, ser considerado como um processo de apropriação mútua. Quanto mais uma pessoa está envolvida com a forma e o conteúdo de seu ambiente, mais esse ambiente será apropriado por ela e, assim como toma posse de seu ambiente, o ambiente se apossa dela” (24).
Práticas materialistas
Xavier Monteys, em um artigo chamado El arte de aprovechar las sobras (25), trata justamente de um aproveitamento mais prolongado dos nossos bens de consumo como os utensílios domésticos ou as mobílias da casa e todas as suas sobras que poderiam ser mais bem aproveitadas. Nesse texto o autor tenta demonstrar como podemos transformar os espaços domésticos a partir de um “re-arranjo” desses mesmos equipamentos que já possuímos, evitando assim a sua substituição. Partindo desses termos, o existente (a casa e seus equipamentos) é a ferramenta que interroga o próprio sentido de habitar que, dessa maneira, se refaz, invertendo a lógica do consumo. Transportando a reflexão aos vícios e aos hábitos cotidianos, Monteys escreve: “Rehabitar a casa, voltar a usá-la de maneira mais simples, desinibida e verdadeira, mais que submeter-se a reformas, devem reformar-se os modos de usar”. Ou seja, antes que pensemos em fazer algo novo, ele propõe que poderíamos pensar em usar de outra forma aquilo que temos. E aqui encontra-se um alinhamento ao pensamento filosófico de Martin Heidegger a respeito do “resguardo” como “traço fundamental do habitar”, “resguardo que perpassa o habitar em toda sua amplitude”.
Em seu texto, Monteys também questiona a ideia de sustentabilidade a partir de novas construções, de novas casas construídas com materiais reciclados e “eco-eficientes” que continuam a reproduzir o modelo de substituição do existente pelo novo. Em um momento em que o mundo vive sérios problemas econômicos e climáticos, parece contraditório seguir esse modelo, já que existe uma grande quantidade de objetos e de imóveis desocupados na maioria das metrópoles, fruto da especulação imobiliária que poderiam ser aproveitados se mudássemos nossos hábitos. “Não seria melhor reciclar – ou melhor, re-habitar – as casas já feitas em lugar de construir novas casas com materiais reciclados?” (26).
Com muitos imóveis desocupados, seguir pensando em construir novas casas, ainda que sejam pré-fabricadas, parece algo a favor do fluxo econômico inconsequente, mesmo com a promessa de que sejam recicláveis, desmontáveis e de alta eficiência energética, pois estamos ampliando o número de construções e aumentando o desperdício. Assim, podemos dizer que não estamos aproveitando toda energia dispensada na construção do que já temos, e, nesse contexto, faz todo sentido o questionamento de Xavier Monteys sobre o discurso já desgastado e capturado pelo mercado da sustentabilidade como mais uma forma de estimular o consumo:
“Mereceria uma reflexão até que ponto uma parte do ‘discurso sustentável’ não é mais que uma desculpa para seguir construindo de forma acrítica. O problema talvez seja o consumo energético, mas também é o excesso e a superabundância” (27).
Nesse artigo, Monteys apresenta algumas propagandas (publicidade) governamentais e de bancos da Espanha que oferecem financiamentos à população e que usam como artifício de convencimento a ideia de que elas poderão renovar toda sua casa comprando tudo novo, ou como diziam os anúncios: Cambielo todo (Troque tudo), tomando um financiamento no banco. O que representa desse modo jogar todos os antigos móveis fora e renovar sua mobília ou mesmo reformar toda sua casa, reproduzindo assim a lógica da substituição, de trocar, renovar, substituir, consumir. Seguindo, o autor trata justamente da ideia de que podemos usar as coisas velhas, porque velho não significa que algo seja inútil ou que esteja morto. Normalmente, a vida útil dos produtos antigos é mais longa que a de um produto novo, portanto, poderíamos perder mais tempo para pensar como aproveitar melhor as coisas que temos em vez de substituí-las, o que volta a cruzar o pensamento de Heidegger se pensarmos no seu entendimento do que seria o “construir”.
“Construir é edificar lugares. Por isso, construir é um fundar e articular espaços. Construir é produzir espaços. Com a articulação de seus espaços, o espaço emerge necessariamente como spatium e como extensio na conjuntura dotada do caráter de coisa construída. O construir, porém, nunca configura “o” espaço. Nem de forma imediata, nem de forma mediata. Assim é que, por produzir coisas como lugares, o construir está mais próximo da essência dos espaços e da proveniência essencial ‘do’ espaço do que toda geometria e matemática” (28).
Monteys cita como exemplo do “re-habitar” proposto por ele a ideia de mudar os móveis da casa de lugar uma prática bastante comum e intuitiva feita frequentemente pelas pessoas e que pode ser relacionada essa sensibilidade proposta pelo conceito de “re-habitar” que, segundo ele, serve também como crítica ao projeto, já que esta prática pode revelar novas proposições ou mesmo colocar à prova a capacidade de transformação dos espaços projetados. Assim, acrescenta Monteys, quando mudamos a disposição dos móveis, estamos alterando também a forma de usar a casa, que pode ser entendida também como uma mudança estrutural, se pensarmos nos termos propostos por Hertzberger importados do estruturalismo. Portanto, mudar os móveis de lugar é sim uma forma de re-habitar a casa.
“Rehabitar significa que o mesmo espaço pode servir para duas funções diferentes; não importa tanto o grau de diferença ou a relatividade dos espaços. Nos entediamos ao ler e ouvir constantemente que o espaço deve adaptar-se às necessidades ‘mutantes’ dos usuários, mas, entretanto, esta qualidade está contida em muitos espaços que não foram pensados com este propósito, como por exemplo o ensanche barcelonês” (29).
Rehabitar é também o nome do projeto proposto por seu grupo de pesquisa chamado Habitar da UPC de Barcelona para o Ministério de Habitação do Governo da Espanha que trata de levar a público um conjunto de reflexões e exposições que instiguem a reflexão sobre o sentido do projetar e do habitar defendido por esse grupo através de práticas arquitetônicas anticonsumistas que vão na contramão da lógica ditada pelo mercado imobiliário, buscando, assim, demonstrar fragilidades aparentes do discurso arquitetônico empregado de forma acrítica.
“Rehabitar supõe uma abordagem distinta do projeto arquitetônico. Pelo menos sempre que consideremos, é claro, o projeto como uma ferramenta por excelência para a formalização de uma nova proposta. Em nosso ponto de vista resulta interessante que os resultados de uma casa modificada para o reaproveitamento sejam mais próximos do acerto que aquelas propostas que planejam conseguir uma casa ideal. Por que conseguimos melhores resultados melhorando um edifício, mesmo que pontualmente, do que quando o projetamos novo?
Esta questão provavelmente está vinculada à ideia do projeto ou proposta como crítica do já existente, mais do que como ideia abstrata. Qualquer um de nós já escutou expressões como ‘Eu queria criar [...]’, ‘Meu projeto propõe [...]’ etc. Estas expressões, no fundo, são manifestações de que o projeto se concebe como um ato criativo original, como um ponto de partida, como se não existisse nenhuma etapa anterior. Rehabitar pode ser também uma forma de enfocar no projeto de arquitetura e discutir abertamente suas limitações, particularmente no campo que nos ocupa” (30).
Assim, o grupo de pesquisa barcelonês tenta definir uma forma de atuação que leve em consideração o sujeito que habita a casa como agente transformador ativo, e não simplesmente como um consumidor passivo, pois pretende transportar as alterações aos modos de usar a casa e seus equipamentos. O objetivo desse trabalho é ressaltar que a ideia de rehabitar não é o mesmo que reabilitar, já que a segunda ideia vai na direção da reforma e da substituição. Já no seu caso (rehabitar), o que se pretende não são intervenções plásticas, mas, sim, modificações de “como” usar os espaços existentes, marcando assim o papel das pessoas na transformação do habitar. Desse modo, o discurso de Monteys trata, mais do que tudo, de um tema que também já foi tratado por Nicolas Bourriaud em seu livro Pós-Produção, revelando um conceito artístico empregado pelo autor francês que trata de manifestações contidas na arte contemporânea que questionam a ideia de: “o que podemos fazer de novo”, e colocam em evidência o contraponto de: “o que podemos fazer com o que já temos”, ou seja, como podemos aproveitar o existente para criar partindo de subversões e desvios de função de coisas já existentes?
Portanto, acredita-se aqui que o uso das coisas da casa, assim como coloca Xavier Monteys em seu artigo, passa por um processo de significação da própria “coisa”, pois a ideia de reaproveitar o que já temos de outra maneira conforma uma ampliação do sentido restrito do termo, passando a valer assim um sentido mais lato. Mas não das coisas por elas mesmas, e sim através do sujeito que observa, usa e reinterpreta tal coisa dotando-a de significados próprios.
Arquitetura como responsabilidade ética
Nesse sentido, o trabalho de Anne Lacaton e Jean-Philippe Vassal para a Praça Léon de Aucoc de 1996, em Bordeaux na França pode ser paradigmático. Nesse trabalho, o escritório francês recebeu como encargo da Câmara Municipal de Boudeaux (França) um projeto que se enquadrava no plano de embelezamento da cidade que tinha por objetivo melhorar as condições dos espaços públicos locais. No caso específico da praça Léon de Aucoc, uma praça de forma triangular, ladeada por árvores, com alguns bancos posicionados em sua periferia e um espaço para jogar petanca (pétanque, um tipo de jogo de bocha muito praticado na França), caracterizavam o espaço como uma típica praça de bairro. Em torno da praça, casas com fachadas sóbrias e bem desenhadas formavam um excelente exemplo de arquitetura imobiliária e de habitação pública coletiva que, segundo os próprios arquitetos, favorecia o entendimento do contexto como algo em boas condições o que também condicionou sua abordagem:
“Na nossa primeira visita ficamos com a sensação de que esta praça já era bonita por si só, por sua falta de sofisticação. Ela possui a beleza do que é obvio, necessário, certo. Seu significado emerge diretamente. As pessoas parecem se sentir em casa, em uma atmosfera de harmonia e tranquilidade que vem se formando ao longo de muitos anos” (31).
Os arquitetos então passaram algum tempo monitorando o local através de uma atenta observação ao cotidiano da praça e, após isso, começaram a conversar com os frequentadores do espaço, para, assim, buscar entender sobre quais seriam as reais necessidades para um futuro projeto a ser desenvolvido ali em vista do plano de embelezamento proposto pelas autoridades locais. Nesse encaminhamento, em certo momento, começaram a se autoquestionar sobre a própria ideia do que seria “embelezamento”, ou seja: a que se resume isso? “Será que isso envolve a troca de um piso por outro mais novo? Ou a troca de um banco de madeira por um banco com um design mais up-to-date em pedra? Ou a substituição de uma luminária padrão por uma outra mais elegante?”
Partindo desse questionamento, os arquitetos então chegaram à conclusão de que o enfeite não teria lugar ali, pois a praça, segundo eles e segundo os próprios moradores e frequentadores, já era bonita assim. Portanto o projeto encaminhado à Câmara Municipal propunha fazer nada além de um serviço de manutenção, substituindo o cascalho existente, exigindo que o serviço de limpeza seja feito com mais frequência, além do tratamento da vegetação existente e de uma alteração no tráfego de automóveis que melhorasse o uso da praça e pudesse assim satisfazer a população local.
“Era necessário limpá-la, tratar uma doença das árvores que fazia tombar resina sobre os bancos impedindo, assim, as pessoas de se sentarem neles durante dois meses da Primavera; a arquitetura também é isto” (32).
Com isso, Lacaton & Vassal estariam agindo responsavelmente, se recuperássemos o pensamento de Vilém Flusser sobre a responsabilidade (33) ao pensar os objetos de uso apresentada em seu livro O Mundo Codificado. Também pode ser comparado a um processo de se fazer arquitetura sem construir nada, assim, Lacaton & Vassal estariam fazendo “arquitetura sem edifícios” como sugere Nathan Silver em seu texto “Arquitetura sem edifícios” (34) que trata basicamente de demonstrar que a arquitetura pode estar mais além do desenho ou mesmo da construção.
“Às vezes nem é preciso fazer nada. Não é por sermos arquitetos que forçosamente temos de substituir o que já existe e construir de novo” (35).
Portanto, através dessas reflexões, podemos imaginar que a arquitetura pode ser, algumas vezes, invisível aos olhos do mercado, pode ser sutil, pode ser até mesmo um questionamento e, assim, toda materialidade se desfaz por alguns instantes de nosso imaginário. Mas logo nos damos conta que a materialidade nesse caso é sensível, pois está no processo de permanência do que já está materializado, concebido, construído. Assim, o caso da praça francesa é um exemplo invertido da arquitetura sem edifícios de Nathan Silver, é um exemplo de sustentabilidade se pensamos em sustentar o que já existe, em não mais construir, substituir, botar fora. O que remete a um estranho fenômeno corrente nos processos de modernização do mundo que passam pela arquitetura, e que se assemelha ao que se denomina aqui de Síndrome de Leônia (uma síndrome que remete à cidade imaginária de Ítalo Calvino e que pode ser entendida como algo caracterizado pela dúvida entre o desejo pelas coisas novas e diferentes, ou o desejo de expelir, de afastar de si, expurgar uma impureza recorrente através das coisas materiais) (36). Essas reflexões têm como objetivo final resgatar o tema do desperdício desnecessário, assim como o esgotamento dos recursos naturais estimulados pela relação produção-consumo da qual fazemos parte através dos nossos projetos de arquitetura.
Portanto, no trajeto percorrido até aqui por este ensaio procurou-se deslocar o modo de pensar a profissão através de uma retomada das dinâmicas (in)visíveis do cotidiano (se possível, levando o debate para mais além dos desgastados discursos de “consumo responsável” e “desenvolvimento sustentável”) trazendo projetos e práticas que se aproximam de lógicas anticonsumistas a fim de resgatar um sentido amplo da ideia de habitar contida em Heidegger (acredita-se que através do entendimento desse conceito filosófico seja possível pensar um modo de operar que relaciona o fazer ao pensar reverberando uma ética do habitar-construir que pode ser transportado ao caso em questão e que está identificado nos projetos apresentados, no sentido de uma ética radical ou uma ética levada às últimas consequências como a pergunta-chave do texto sugere).
O objetivo dessa tentativa proposta pelo texto está em questionar as lógicas consumistas e produtivistas que fazem parte do nosso modus operandi sem que nem percebamos a fim de provocar um tensionamento do próprio conceito de ética que parece já cristalizado. Sem nenhuma intenção de reduzir o pensamento sobre prática a qualquer moralismo de ocasião e tendo em conta as múltiplas esferas de atuação e reverberação da profissão, se afirma aqui, que é nessa condição de técnico-humanista identificada no texto que manifestamos e acreditamos que esteja uma possibilidade de agir aqui e agora. E, portanto, é tarefa do “pensar a profissão”, não só como profissionais ou prestadores de serviço através de uma ética realmente generosa e hospitaleira, mas também como habitantes e usuários dos espaços projetados que desviam das rotas programadas, buscar formas colocar em crise seu modo de atuar constantemente, pois acredita-se aqui que somente assim poderemos levar adiante a tarefa da construção de uma ética no seu sentido “ainda mais lato”.
notas
1
Mia Couto. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo, Companhia das Letras, 2016.
2
Cito algumas: “Trabalhar ou escrever com uma trepadeira na sua janela; ver a luz do sol se espalhar pelo chão ou ter acesso fácil aos bens sem sentir sua presença o tempo todo”.
3
PEREC, Georges. A vida modo de usar. São Paulo, Schwarcz, 2009, p. 16.
4
“A moral é um conjunto de regras que servem para conferir uma conduta a vida. Em sentido amplo, a moral é um conjunto de valores e de regras de ação propostas aos indivíduos por intermédio de estruturas prescritivas (família, instituições educativas, igrejas, partidos etc.). Contrariamente, a ética diz respeito à maneira pela qual cada um constrói a si mesmo como sujeito moral”. NEGRI, Antonio. 5 Lições Sobre Império. São Paulo, Dp&a, 2003, p. 182.
5
“A finalidade precípua do Código de Ética e Disciplina, orientando o Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil a instaurar, defender e manter as normas de conduta dos profissionais. Essa conduta foi historicamente delineada a partir de um propósito humanista e preservacionista do patrimônio socioambiental e cultural, e encontra-se intrinsecamente relacionada com o direito à cidadania e com o aperfeiçoamento institucional dos campos de atuação da Arquitetura e Urbanismo”. MELLO FILHO, João Honorio de. Ética em Arquitetura e Urbanismo: Comentários ao Código de Ética e Disciplina do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil /. Brasília, Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Brasil, 2018.
6
Idem, ibidem, p. 42.
7
Idem, ibidem, p. 153.
8
ZAMBONI FERREIRA, Guilherme. LO-FI. Aproximações e Processos Criativos. Da fonografia à arquitetura. Dissertação de mestrado. Porto Alegre, Propar UFRGS, 2017, p. 98-108
9
Harvey, David. Cidades Rebeldes. São Paulo, Martins Fontes, 2014.
10
Idem, ibidem, p. 100.
11
Idem, ibidem, p. 107.
12
BISMARCK, Pedro Levi. Exercício de arquitectura. Público, Lisboa, mar. 2018 <https://bit.ly/38sACNw>.
13
HEIDEGGER, Martin [1951]. Bauen, Wohnen, Denken. conferência pronunciada por ocasião da "Segunda Reunião de Darmastad. Vortäge und Aufsätze. Pfullingen, G. Neske, 1954.
14
Idem, ibidem.
15
Idem, ibidem.
16
Idem, ibidem
17
HEIDEGGER, Martin. Que é uma coisa? Lisboa, Edições 70, 1987, p. 17.
18
Idem, ibidem, p. 18.
19
Idem, ibidem, p. 14-15.
20
HERTZBERGER, Herman. Lições de Arquitetura. São Paulo, Martins Fontes, 2006, p. 92.
21
Idem, ibidem, p. 95.
22
Idem, ibidem, p. 146.
23
Idem, ibidem, p. 169.
24
Idem, ibidem, p. 170.
25
MONTEYS, Xavier; CALLÍS, Eduard; PUIGJANER, Anna. El arte de aprovechar las sobras. Revista Quaderns d’Arquitetura i Urbanisme, n. 259. Seccion: Domèstica. Barcelona, Editorial COAC, 2009.
26
Idem, ibidem.
27
Idem, ibidem.
28
HEIDEGGER, Martin [1951]. Bauen, Wohnen, Denken (op. cit.).
29
MONTEYS, Xavier; CALLÍS, Eduard; PUIGJANER, Anna. Op. cit.
30
Idem, ibidem.
31
Place Léon Aucoc, Bordeaux. Lacaton & Vassal <http://lacatonvassal.com/index.php?idp=37#>.
32
Faria, Óscar. Uma arquitectura da liberdade. Publico, 13 jan. 2004 <https://www.publico.pt/culturaipsilon/jornal/uma-arquitectura-da-liberdade-182929>.
33
“A responsabilidade é a decisão de responder por outros homens. É uma abertura perante os outros. Quando decido responder pelo projeto que crio, enfatizo o aspecto intersubjetivo, e não o objetivo, no utilitário que desenho. E se dedicar mais atenção ao objeto em si, ao configurá-lo em meu design (ou seja, quanto mais irresponsavelmente o crio), mais ele estorvará meus sucessores e, consequentemente, encolherá o espaço da liberdade na cultura”. FLUSSER, Vilém. O mundo codificado. São Paulo, Cosac Naify, 2015, p. 196.
34
SILVER, Nathan. Arquitectura sin Edificios. In JENCKS, Charles; BAIRD, George. El significado en Arquitectura. Rosario, Hermann Blume Ediciones, 1975, p. 311-319.
35
SOROMENHO, Ana. Arquitetura é um ato de generosidade. Expresso, Seção Cultura, 15 set. 2016 <https://expresso.pt/cultura/2016-09-15-Arquitetura-e-um-ato-de-generosidade>.
36
CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. São Paulo, Companhia das Letras, 1990, p.105.
sobre os autores
Guilherme Zamboni Ferreira é arquiteto e urbanista (ULBRA, 2004), Master Degree in Theory and Practice of Architectural Design (ETSAB UPC, 2012) e mestre em Teoria, História e Crítica da Arquitetura (Propar UFRGS, 2017).
Carlos Mario Fisgativa Sabogal é filosofo (Universidad del Quindío, 2008), mestre em Filosofia (Pontifica Universidad Javeriana, 2012) e doutorando em Filosofia (Universidad de Buenos Aires).